A decoração na sala da casa de Titica, na Vila Maria da Conceição, bairro Partenon, em Porto Alegre, resume bem a trajetória de um dos nomes mais conhecidos do futebol de várzea do Estado. Nas paredes de madeira crua estão coladas dezenas de pôsteres dos mais diferentes times que defendeu. Troféus das mais diversas formas e tamanhos brilham por todos os cantos. Há também caricaturas do artilheiro, álbuns com fotos e recortes com reportagens em folhas amareladas. Uma TV 29 polegadas, daquelas antigas, e um aparelho de DVD também formam uma espécie de Museu do Titica. Na tela, imagens em VHS mostram lances do centroavante de 1m85cm que marcou mais de 600 gols na carreira – 500 em súmulas e cem não oficiais.

 

– Um pouco da minha vida está aqui nesta sala. Mas tenho história para encher a casa toda. E vai faltar lugar – diverte-se o atacante de 43 anos.

 

Titica, ou Luis Fernando Gonçalves Alves, encheria mesmo uma mansão com relatos vividos nos gramados desde muito cedo. Nascido em uma família ligada fortemente ao futebol – o pai Vorni jogou profissionalmente no Grêmio Santanense –, o menino de pernas fininhas e olhos grandes rapidamente tomou o gosto pela bola.

 

– Ganhei o apelido de Titica de um tio, o Paineilão, pois era miúdo, magrinho mesmo. Mas valente. Já ia para cima dos zagueiros grandões, encarava, driblava e batia bem na bola, uma qualidade minha – gaba-se o centroavante.

As peladas preenchiam os tempos de grandes dificuldades que os pais Vera Regina e Vorni tinham para sustentar ele e os irmãos. Titica tinha cinco anos quando a mãe tomou uma decisão que seria decisiva para o futuro do menino: levou-o para a Pequena Casa da Criança, instituição fundada pela Irmã Nely Capuzzo, que reúne ações de educação e profissionalização de pessoas em vulnerabilidade. A partir daí, a vida do pequeno Titica tomou outro rumo.

 

– A Pequena Casa foi uma salvação. Vivi minha infância, adolescência e boa parte da vida adulta lá, onde trabalhei como monitor – comenta.

 

A dedicação à comunidade da Vila Maria da Conceição sempre foi intensa. Assim como a paixão pelo futebol. Aos longos dos anos, o guri magrinho foi ganhando corpo. Aos 13 anos, o tio Paineilão, o mesmo que lhe deu o apelido, o chamou para um teste no União do Partenon. Nada de jogadas de efeito e driblezinhos inoperantes. Titica fez o que sabia: gols. De pé esquerdo, pé direito, de cabeça. Forte, fazia o trabalho de pivô com maestria. Não demorou para se destacar também no futsal. Em 1996, defendeu o ICA, de Guaíba, na Série Prata do Campeonato Estadual. Um aprendizado e tanto:

 

– O futsal foi fundamental para o meu crescimento como atleta. Eu era peladeiro até então. No salão, aprimorei a parte física, o posicionamento e a marcação.

 

Atuou um ano nas quadras até ser convidado para jogar a Segundona Gaúcha pelo São Gabriel, em 1998. Não deu certo, estava com a cabeça longe. A mulher, Ana Paula, acabara ganhar a filha Bárbara. A saudade e a falta de dinheiro o fizeram retornar à Vila Maria da Conceição.

 

– Foi uma pena, joguei poucas partidas. A grana estava curta lá e achei que não valia a pena, pois ela precisava que eu estivesse perto para ajudar. Peguei minhas chuteiras e voltei para casa – relata Titica sob o olhar atento de Ana Paula, que só balançava a cabeça concordando.

 

– Sempre fizemos uma boa parceria – destaca Ana Paula, 38 anos, casada com Titica há 25.

 

O foco então passou a ser total para o futebol amador. Sabia que poderia tirar o sustento da família dali. SE UM amigo convidasse para jogar futsal, topava. Se o chamassem  para uma partida de sete, topava. Futebol de campo, na Serra ou no Interior, encarava também.

 

Com cachê, claro.

 

– Ganhava R$ 150, R$ 200, R$ 300 por jogo. Dependia do lugar, do time.

 

Às vezes, no fim de semana, jogava de manhã, de tarde e à noite. Tinha uma saúde de touro.

Sobrava energia em Titica. E também liderança. Além de ser artilheiro, o atacante tinha uma veia de dirigente. Em 2001, foi um dos fundadores do time supercampeão Academia do Morro. Fazia gols, contratava jogadores e organizava o clube. O resultado de tanto empenho apareceu: foram 54 títulos conquistas em campeonatos amadores ao longo de 10 anos. Por sete vezes, Titica apareceu na seleção da antiga Copa Paquetá.

 

– Nosso time era o horror dos adversários. Tínhamos um grupo de muita qualidade e com vontade de vencer – salienta o goleador, que defendeu a Academia até 2011, último ano de participações do time em competições.

Titica aponta três segredos para ter alcançado sucesso no sempre duro futebol varzeano.

1) Ser mais esperto e firme do que o zagueiro ("era forte e chegava junto").

2) Ser objetivo ("não inventava, meu negócio era fazer gols").

3) Não beber ("sempre fui disciplinado, passava longe do álcool").

O atacante orgulha-se de ter resistido às bebidas até os 31 anos. Viveu de perto o problema do pai com álcool e não queria isso para ele.

 

– A bebida e as drogas sempre estiverem à minha porta. Era só esticar o braço. Mas tinha consciência de que não iria longe se entrasse nesta roubada. Meus amigos, familiares não entendiam como eu conseguia ficar de cara. Nunca precisei disso para brincar e ser um cara feliz. Só fui beber aos 31 anos, quando já não era tão competitivo. Mas bebo na boa, controlo bem – enfatiza, lembrando que teve um irmão morto a tiros por problemas com drogas.

 

Titica é um cara controlado. Famoso nos campos e quadras, conta com a admiração das pessoas da Vila Maria da Conceição por ser um líder comunitário ativo, sempre preocupado em ajudar:

 

– Preciso ser uma referência, um exemplo, nas só para as minhas filhas (Bárbara, 23 anos, e Hellen, 15), mas para todos aqui no morro. Se não, do que vale a vida?

 

Mesmo sem a mesma energia de antes, Titica segue fazendo gols.

 

Participa de torneios de veteranos pelo Estado vestindo a camiseta do Flamengo, da Vila Safira. A barba branca e a barriga arredonda mostram a passagem do tempo do goleador da camiseta número 20 – a 9, segundo ele, nunca deu sorte. Mas ele continua disposto para, quem sabe, aumentar o número de troféus da sala da casa do alto do morro da Vila Maria da Conceição. O Museu do Titica ainda tem espaço para novas conquistas.

"O Titica sempre foi uma referência dentro da área, por isso é conhecido como o Romário da Várzea."

Edison Murilo,

42 anos, colega do time Academia do Morro

TITICA,

O ROMÁRIO DA ZONA LESTE