Seus 86 hectares parecem ser muito à primeira vista, mas compõem apenas uma pequena fração do Sudoeste gaúcho que sofre com a degradação do solo. Hoje, o Estado abriga uma área equivalente a 6,9 mil campos de futebol em 1,6 mil areais de aparência desértica e vive um debate sobre como conter o avanço dessas manchas e o que fazer com as zonas já afetadas.

 

O termo deserto, na verdade, é inadequado. Um deserto se caracteriza pela falta de umidade, com menos de 250 milímetros de precipitação anual, enquanto os areais gaúchos brotaram ao longo dos últimos milênios principalmente por ação da água. Chuva não falta na região. O Instituto Nacional de Meteorologia aponta uma média anual de 1.492 milímetros de precipitação em Alegrete, ou quase 1,5 mil litros de água despejada em cada metro quadrado por ano. Zonas sujeitas à desertificação costumam receber quatro ou cinco vezes menos umidade do que isso.

Mas como pode nascer um falso deserto da chuva? A arenização, nome correto para descrever esse processo, ocorre em razão da fragilidade natural do solo na região onde predominam formações geológicas sedimentares chamadas Botucatu e Guará. Ali existe areia depositada há milhares de anos sob a superfície de vegetação herbácea. Chuvas muito concentradas abrem ravinas (fendas no solo por erosão) e voçorocas (fendas ainda mais profundas do que as ravinas), expõem essa areia e a arrastam consigo, cobrindo largas porções de campo. O vento termina por espalhar os grãos e unir depósitos de diferentes ravinas e voçorocas, formando, por vezes, um único e grande areal.

 

Como os areais só podem surgir onde há esse tipo específico de solo arenoso – razão pela qual o fenômeno se concentra em 10 municípios do Sudoeste (veja no infográfico) – é mito o temor de que mudanças climáticas ou ações humanas poderiam converter o Pampa em terra estéril. Mas moradores e pesquisadores das regiões afetadas se preocupam com o risco de avanço da arenização sobre o solo suscetível. Ações humanas como o uso do terreno para pecuária intensiva, monocultura ou o emprego de máquinas pesadas, que expõem a área à ação da água e do vento, podem favorecer a erosão e ampliar o número e a dimensão das manchas.

 

– O maior problema é que temos muito solo sensível na região de Alegrete. É preciso investir em educação e gestão ambiental para evitar que a arenização avance – opina o especialista em gestão ambiental e ex-prefeito do município Nicanor Sobrosa.

Nas últimas décadas, segundo o geógrafo Laurindo Antônio Guasselli, professor do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o tamanho dos areais se mantém mais ou menos estável. Um estudo apontou uma ligeira variação de 3.024 hectares afetados em 1989 para 3.027 hectares em 2005.

 

– Quando o clima está mais seco, a areia avança um pouco mais. Quando está mais úmido, a vegetação herbácea tende a cobrir o areal. É como uma pulsação entre os períodos mais secos e os mais chuvosos – descreve Guasselli.

 

Uma pesquisa mais recente identificou 4,9 mil hectares afetados no Estado (ou 6,9 mil campos de futebol – levando em conta a medida padrão de 105 por 68 metros), mas o número superior se deve a uma maior precisão do satélite usado para o mapeamento, e não a um aumento real na dimensão das áreas degradadas. Uma das pioneiras do estudo da arenização no Estado, a geógrafa Dirce Suertegaray, professora da Pós-Graduação em Geografia da UFRGS e doutora em Geomorfologia, lembra que novos pontos de degradação podem estar surgindo em razão de ações como a monocultura de soja:

 

– É um mito a ideia do Pampa virar deserto. Mas não se pode negar que, nas áreas frágeis onde houve usos intensivos como a monocultura, a arenização surgiu ou se intensificou.

 

O presidente da Associação dos Produtores de Soja do RS, Luis Fernando Fucks, afirma que a soja deixou de representar uma ameaça ao solo graças a técnicas modernas de manejo:

 

– O mau uso do solo já representou um problema, mas hoje temos técnicas diferentes, como o plantio direto. O produtor começa pela conservação do solo, não pela implantação da lavoura. A soja traz desenvolvimento econômico e permite conservar e até melhorar o solo.

 

Conforme um estudo publicado no livro Arenização – Natureza Socializada, o número de focos arenosos identificados passou de 1.497 para 1.634 entre 1989 e 2005 – um aumento de 9% nos pontos em que o Pampa chega a lembrar o distante Saara.

O avanço dos eucaliptos

Antigas áreas dominadas pela areia deram lugar, ao longo da última década, a plantações de eucaliptos no sudoeste gaúcho. À primeira vista, a substituição do amarelo pelo verde nas imagens de satélite pode parecer uma boa solução para o fenômeno da arenização, mas especialistas dizem que o eucalipto pode agravar a degradação do solo em vez de recuperá-lo. Experimentos indicam que medidas simples como criar barreiras em pontos de erosão são mais indicadas para frear os areais, mas esbarram na falta de políticas públicas.

 

Como o terreno arenoso tem pouco valor, hectares degradados foram adquiridos nos últimos anos para o plantio de eucaliptos com fins comerciais no Rio Grande do Sul. Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os 10 municípios mais afetados pela arenização no Estado somavam 71.165 hectares de eucaliptos plantados em 2015 – o equivalente a quase cem mil campos de futebol.

 

O cultivo dessas árvores, além de pinus, também foi adotado como política pública nos anos 1970 e 1980 para conter as manchas de areia, mas essa medida é vista como um agravante à fragilização do solo por especialistas como a geógrafa Dirce Suertegaray.

 

– Alguns areais que parecem ter desaparecido na verdade estão, hoje, sob eucaliptos. O problema é que os eucaliptos não protegem o solo do processo que desencadeia a arenização, que é a formação de ravinas e voçorocas por erosão. Assim que essas árvores forem cortadas, o solo voltará a ficar exposto – observa Dirce.

 

Além disso, a cobertura do terreno por folhas caídas dificulta o florescimento de outras formas de vegetação, e o eucalipto tem um alto consumo de água – o que pode comprometer ainda mais a situação da terra já pobre em nutrientes. O doutor em Geografia e professor da UFRGS Roberto Verdum, coordenador da Pós-Graduação em Geografia, sustenta que medidas simples podem ser eficazes no controle da erosão e, como consequência, da formação ou ampliação das manchas de areia.

 

– Fizemos experimentos em que criamos barreiras físicas com tela ou galhos, em uma ravina, e isso ajudou a conter a erosão e, gradativamente, se observou a recomposição natural da vegetação típica dos campos, com espécies nativas – revela Verdum.

 

Algumas destas ações estão resumidas no Atlas da Arenização, organizado por Verdum, Dirce e o também professor da UFRGS Laurindo Antônio Guasselli. Barreiras de tela, de galhos e diques de pedras apresentaram bons resultados para conter o aprofundamento de ravinas em áreas afetadas no Sudoeste gaúcho. Não há, porém, programas para colocar em prática iniciativas como essas de forma abrangente no Estado.

 

– O problema é que faltam recursos para desenvolver bons programas de gestão ambiental – avalia o biólogo e ex-prefeito de Alegrete Nicanor Sobrosa.

 

Conforme o grupo de pesquisa da UFRGS, há uma nova tendência surgindo no mundo: preservar os areais já existentes como uma espécie de patrimônio natural, dadas sua origem e aparência singulares, e buscar a identificação de materiais de antepassados indígenas na região como ferramentas de rochas e de argila.

 

– Como é um processo de degradação do solo, sempre se pensou em corrigir isso. Mas, hoje, temos tentado pensar o contrário e trabalhar mais sob o ponto de vista de preservação de um patrimônio natural e antropológico – diz Guasselli.

 

Em nota, a Associação Gaúcha de Empresas Florestais sustenta que o eucalipto não representa ameaça: “(...) Os plantios atuais possuem licença ambiental, à exceção dos demais Estados brasileiros, sendo uma das únicas atividades agrícolas com tal necessidade. Tais plantios foram licenciados mediante realização de EIA-RIMA e com base em um zoneamento ambiental que leva em consideração a disponibilidade hídrica do solo. Portanto, não promovem déficit hídrico (...). Reforça-se que os plantios florestais, sejam naturais ou exóticos, promovem maior cobertura do solo evitando, assim, a ação direta das chuvas e dos ventos e promovendo a ciclagem de nutrientes no solo.

falsos desertos,

areais dos pampas

– Construí a minha casa com a areia do "deserto" – conta José Wagner Pereira de Souza, 40 anos, misturando orgulho e admiração enquanto aponta para a mancha amarelada a perder de vista em meio ao campo, a menos de um quilômetro de onde mora.

Souza encheu nove caçambas com a areia recolhida da brecha na vegetação do Pampa para ajudar a moldar paredes de alvenaria na localidade de Jacaquá, interior de Alegrete. Ali se encontra o Areal Costa Leite – como é chamado o ponto onde o verde deu lugar a uma paisagem lunar.

Solo arenoso

Em fotos, conheça  "falsos desertos" do Sudoeste

COMO SE FORMA UM AREAL

Onde ficam

Existência de grandes áreas tomadas pela areia na região sudoeste do Rio Grande do Sul.

ÁREAS ATINGIDAS

Variação no tamanho dos areais (em quantidade de campos de futebol)

Total

4.234 em 1989

4.238 em 2004/2005

COMO ESTÁ HOJE

Estudos indicam que os areais mantêm, ao todo, um tamanho mais ou menos estável. Há pontos em que houve diminuição da área contabilizada como areal em razão do plantio de eucaliptos, e outros em que há surgimento de novos focos de arenização, ainda sem grande extensão. O fenômeno está restrito a pontos do sudoeste gaúcho onde o solo é naturalmente rico em areia devido às rochas sedimentares (arenosas) na região.

Do alto, conheça os areais do interior de Alegrete

DESIGN

Thais Longaray

EDIÇÃO

Luan Ott e Pedro Moreira

IMAGENS

Fernando Gomes

TEXTO

Marcelo Gonzatto