A frustração com o impacto provocado pela empresa mobilizou população e autoridades, e deixou uma lição ao Rio Grande do Sul. Após mudar de controle acionário diversas vezes, a antiga indústria passou a se chamar CMPC Celulose Rio-Grandense e obedece, hoje, a critérios mais rigorosos de segurança ambiental. O cheiro não se espalha mais por dezenas de quilômetros ao sabor do vento, e a fina poeira provocada pelo corte da madeira deixou de cair sobre casas distantes. Mas os problemas não ficaram todos no passado.

 

Apenas nos últimos dois anos, período em que a planta industrial passou a operar com capacidade quatro vezes maior graças a investimentos de US$ 2,2 bilhões, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) impôs nove autuações à empresa por irregularidades (veja quadro). Em 1972, quando a fábrica começou a funcionar, o cenário era muito pior.

 

– O cheiro que chegava até Porto Alegre era insuportável. Quando o vento soprava para cá, a gente se sentia mal, com dor de cabeça. Era difícil até para tomar café – recorda a moradora da Zona Sul Marlene Corrêa Nascimento.

 

Ela e o marido, Maurício Nascimento, costumavam olhar para a margem oposta do Guaíba e observar com desencanto a fumaça espessa cuspida pela Borregaard. O que o casal não enxergava era ainda mais prejudicial ao ambiente.

 

– O cheiro ruim incomoda, mas, muitas vezes, o que mais polui não tem cheiro ou não é tão visível. Eram lançados poluentes diretamente no Guaíba – diz o ambientalista Francisco Milanez, presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan).

 

Um duto de 2,2 mil metros saía da planta industrial e mergulhava na água que abastece a Capital, onde lançava até 600 metros cúbicos de rejeitos por hora – coisas como fibra de celulose, compostos inorgânicos insolúveis e material orgânico. Em terra, o pó da madeira cortada entrava nas casas de Guaíba e nas vias respiratórias da população, provocando complicações de saúde. Em razão disso, o então secretário estadual da Saúde, Jair Soares, determinou o fechamento da Borregaard por três meses para que fossem cumpridas medidas mínimas de controle da poluição.

 

– O episódio da Borregaard nos deu mais experiência e sustentabilidade técnica para, depois, fazermos exigências mais duras também aos curtumes, que não tinham tratamento primário. Esse despertar ecológico trouxe vantagens – argumenta Jair.

Os efeitos nocivos sobre a região não foram surpresa para todos. Um laudo técnico elaborado por um servidor da então chamada Coordenadoria de Controle do Equilíbrio Ecológico, vinculada à Secretaria da Saúde, já alertava para o risco de poluição e sugeria a instalação do empreendimento em uma zona remota de São José do Norte – mas acabou convenientemente esquecido em alguma gaveta. O documento assinado pelo bioquímico Millo Raffin, já falecido, antecipava que o cheiro pestilento alcançaria longas distâncias conforme a direção do vento.

 

Além disso, a fábrica entrou em operação sem o devido alvará. Como o projeto havia recebido um carimbo de "alto interesse para a economia nacional" do governo militar da época em Brasília, o respeito aos trâmites burocráticos não foi uma prioridade. O governo estadual, sob as gestões de Walter Peracchi e Euclides Triches, sonhava com uma montadora de automóveis, mas também estava disposto a abraçar a celulose a qualquer custo.

 

– Ela (a Borregaard) não tinha nem alvará. O processo não teve o andamento técnico necessário. Com a pressa do governo de inaugurar, de ter emprego, descuidaram da parte ecológica. Mas isso contribuiu para que, hoje, nenhuma fábrica se instale sem respeitar o processo legal no Estado –sustenta Jair Soares.

Borregaard em ZH

Veja como Zero Hora noticiou o caso à época

empresa diz investir em prevenção

Lançado em 2013, o projeto que quadruplicou a planta industrial da CMPC Celulose Riograndense e a tornou capaz de produzir 1,8 milhão de toneladas de celulose por ano ampliou também as preocupações com a segurança do empreendimento. A empresa argumenta que vem investindo para reduzir ainda mais o risco de incidentes _ que levaram à aplicação de nove autuações por parte da Fepam em dois anos, desde julho de 2015. Além disso, no mês passado a empresa anunciou a interrupção de uma de suas linhas de produção até novembro para reparos em razão de um acidente ocorrido em fevereiro com uma caldeira.

 

A CMPC implantou ações, ao longo do último ano, estabelecidas em acordo com a Fepam por meio de um Termo de Compromisso Ambiental para combater riscos operacionais, emissão de materiais particulados, odor e ruído. Foram investidos cerca de R$ 20 milhões nestas melhorias, além de R$ 60 milhões destinados a evitar problemas envolvendo a eventual liberação de efluentes não tratados adequadamente.

 

Mesmo assim, duas ocorrências registradas pela Fepam envolveram o lançamento de efluentes fora dos padrões permitidos no ambiente. Em um dos casos, em 19 dezembro do ano passado, os poluentes escorreram até o Guaíba. No outro episódio, em abril deste ano, efluentes não tratados foram identificados na rede de esgoto pluvial.

Também houve um acidente envolvendo o vazamento de gases clorados, bastante tóxicos, que, segundo o auto expedido pela Fepam, causaram a "intoxicação de trabalhadores da empresa" atendidos no hospital do município. O gerente da Qualidade e Ambiente da CMPC, Clovis Zimmer, argumenta que as autuações se devem a "situações pontuais em que ocorreram desvios de não atendimento conforme legislação ou condicionantes de licença de operação que não se materializaram em impactos mensuráveis ao meio ambiente".

 

– As situações são decorrentes de falhas operacionais correspondentes ao período de ajustes de aprendizagem da nova planta industrial – afirma Zimmer.

 

A secretária estadual de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, Ana Pellini, acredita que nenhuma das ocorrências representou perigo imediato ao ambiente ou à população a ponto de exigir medidas mais duras. Mas o ex-diretor técnico da Fepam Jackson Müller demonstra preocupação com as repetidas ocorrências:

 

– Há um número elevado de autuações da empresa, nove em apenas dois anos. Elas demonstram fragilidade das instalações autorizadas, com problemas de odores, lançamento de efluentes fora dos padrões, incêndio e lançamento de gás cloro. Esse gás é muito perigoso, podendo causar a morte.

 

O presidente da Agapan, Francisco Milanez, sustenta que a melhor saída seria substituir o processo de branqueamento do papel com base em derivados do cloro por sistemas alternativos que usam materiais menos perigosos, como ozônio – ainda que isso exija adaptações da planta industrial e resulte em um papel de tom mais amarelado. Em nome da CMPC, Zimmer afirma que todos os problemas que geraram foram corrigidos pela empresa "de forma rápida":

 

– Os impactos, em sua grande parte, não resultaram em danos, e a empresa apresentou defesas administrativas relativas a todas as autuações junto à Fepam.

 

A companhia responde por cerca de 4,5 mil empregos diretos e 25 mil indiretos. Estima-se que, nos cinco primeiros anos de funcionamento da nova planta, serão gerados R$ 713 milhões em salários, lucros e impostos por ano no Estado.

COMO ESTÁ HOJE

Após mudar de controle acionário por diversas vezes, a fábrica quadruplicou sua produção desde 2013, com investimentos de US$ 2,2 bilhões. Gera 4,5 mil empregos diretos e 25 mil indiretos. Investiu em diversas tecnologias para evitar impactos ambientais como cheiro, serragem e ruído. Porém, ainda recebeu nove autos de infração da Fepam nos últimos dois anos por inadequações.

IRREGULARIDADES

Autuações aplicadas pela Fepam à empresa nos últimos dois anos e a justificativa da CMPC para cada uma:

Borregaard,

fábrica de mau cheiro

Em março de 1969, quando foi anunciada a construção da terceira maior indústria de celulose do mundo no município de Guaíba, os gaúchos exultaram com a promessa de empregos e desenvolvimento. O encantamento era tamanho que o governo brasileiro concedeu a Ordem do Cruzeiro do Sul a um dos diretores da companhia norueguesa Borregaard. Três anos depois, quando a fábrica entrou em operação, sua chaminé passou a exalar um odor tão forte de ovo podre, que chegava a provocar mal-estar e dores de cabeça. A população não sabia, mas o empreendimento nem sequer contava com alvará, e sua instalação à margem do Guaíba contrariava um parecer técnico que previra danos ao ambiente.

INSTALAÇÃO DA BORREGAARD

CAUSAS

O impacto ambiental tinha principalmente três origens:

1) Cheiro:

o odor que deu fama negativa à Borregard era provocado pelo lançamento de gás sulfídrico das chaminés. Essa substância é caracterizada pelo cheiro semelhante ao de ovo podre e era citado como causa de dores de cabeça e enjôo entre a população afetada.

2) Despejos industriais:

eram lançados cerca de 600 quilos de resíduos por dia no Guaíba, como fibra de celulose, através de uma tubulação com 2,2 mil metros que chegava ao canal de navegação.

3) Serragem:

além de cheiro, o vento também espalhava pelas redondezas serragem produzida pelas máquinas que picotavam a madeira. Isso era causa de irritação nos olhos e nas vias respiratórias dos moradores de Guaíba.

Mau cheiro na lembrança

Moradores da zona sul de Porto Alegre ainda se recordam da antiga fábrica

Alvo de protestos

À época, moradores da zona sul da Capital protestavam contra a empresa. Em Guaíba, houve manifestação a favor

Mudança ao longo das décadas

DESIGN

Thais Longaray

EDIÇÃO

Luan Ott e Pedro Moreira

IMAGENS

Fernando Gomes

TEXTO

Marcelo Gonzatto

O QUE FOI

Implantação de fábrica de celulose na Região Metropolitana, às margens do Guaíba, em 1972, responsável pela propagação de mau cheiro e por despejos industriais no manancial.

ÁREAS ATINGIDAS

Conforme a força e a direção dos ventos, o cheiro ruim era sentido até em Butiá, a cerca de 60 quilômetros de distância.