Mapa da viagem de Saint-Hilaire no RS

Trechos dos cadernos do naturalista francês que percorreu o Estado em 1820

Torres

4 de junho de 1820

"Sempre areia e mar. Enquanto nos dias anteriores só avistávamos uma praia esbranquiçada que se confundia com o céu na linha do horizonte, hoje, ao menos, deparamos dois montes denominados Torres, por que realmente avançam mar adentro, como duas torres arredondadas."

Osório (antiga Fazenda do Arroio)

15 de junho de 1820

"Paramos numa estância pertencente aos campos percorridos. É uma pequena casa muito mal construída, de pau-a-pique, mas coberta de telhas. Em redor, vi diversas carroças; aos lados, laranjeiras, currais e algumas casas de negros. O dono da casa deixou-me pernoitar ali, embora me tratasse friamente. Porém, mostrou-se um pouco mais afável quando me viu trabalhar; tinha ele um jogo de dominó, cujo uso não conhecia; ensinei-lhe a jogar e logo nos tornamos muito bons amigos."

Viamão (Capela do Viamão)

18 de junho de 1820

"Viamão está encravada numa coxilha donde se descortina vasta extensão de campos levemente ondulados, no meio dos quais se levantam tufos de bosque. Embora desfrute agradável situação, foi ela quase abandonada depois da fundação de Porto Alegre, que está melhor posicionada para o comércio. Compõe-se, principalmente, de duas praças contíguas e de formato irregular; numa delas se ergue a igreja. Depois de São Pa u lo, ainda não conheci outra igual a essa. Possui duas torres, sendo bem conservada, muito limpa, clara e ornamentada com gosto."

Porto alegre

21 de junho de 1820

"Ao entrar nesta cidade, surpreendeu-me o seu movimento, bem como o grande número de casas de dois andares que ladeiam as ruas e a quantidade de brancos aqui existentes. Veem-se pouquíssimos mulatos; a população se compõe de pretos escravos e de brancos, em número muito mais considerável, que se constituem de homens grandes, belos, robustos, tendo a maior parte a pele corada e os cabelos castanhos. Fácil perceber-se, desde o primeiro instante, que Porto Alegre é uma cidade nova; todas as casas são novas, e muitas ainda em construção; mas, depois do Rio de Janeiro, não tinha ainda visto uma cidade tão imunda, talvez mesmo a capital não o seja tanto."

Mostardas

3 de agosto de 1820

"Mostardas, sede de uma paróquia, existente sobre o istmo, em uma extensão de 25 léguas, compreendendo 1.500 habitantes de mais de dois anos. A aldeia está edificada no meio de areias e se compõe de cerca de quarenta casas que formam uma larga rua, muito curta, em cuja extremidade está a igreja, situada a igual distância das duas filas de casas. Há entre estas algumas cobertas de telhas, mas na maioria não passam de choupanas pobres. Em frente a Mostardas, do lado oeste, um lago do mesmo nome da aldeia. É muito piscoso, mas como aí só vivem peixes de água doce, com muitas espinhas, tal como a traíra, são desprezados pelos habitantes da região, acostumados a comer carne."

São José do Norte (Freguesia do Estreito)

5 de agosto de 1820

"A aldeia do Estreito era outrora mais para leste mas, como as casas foram enterradas pelos turbilhões de areia que o vento atira sem cessar das margens do mar, foram transferidas para o lugar onde se encontram atualmente e onde, sem dúvida, terão em breve a mesma sorte."

Rio Grande

6 de agosto de 1820

"A rua da Praia é larga, mas não perfeitamente reta; edificada de casas cobertas de telhas, construídas com tijolo, possuindo janelas envidraçadas; a maior parte delas é de um andar, várias com sacadas de ferro. É nessa rua que estão situadas quase todas as lojas e a maioria das vendas, umas e outras igualmente bem sortidas. No resto da cidade, não se contam pouco mais de seis a oito casas assobradadas, e as quatro últimas ruas compõem-se quase unicamente de miseráveis casebres de teto bastante alto, porém mal conservados, pequenos, construídos de pau-a-pique e onde moram pessoas pobres, operários e pescadores. Nas duas ruas principais, veem-se lajes na frente das casas, entretanto nenhuma delas é calçada; enterram-se aí os pés na areia, o que dificulta o caminhar."

Pelotas (Freguesia de São Francisco de Paula)

8 de setembro de 1820

"Não se vê em São Francisco de Paula um único casebre; tudo aqui denuncia bem-estar. Na verdade as casas só têm um pavimento, mas muito bem construídas, cobertas de telhas e guarnecidas de vidraças. Os habitantes de São Francisco de Paula são operários e, principalmente, negociantes. Algumas famílias do Rio Grande mudaram-se para aqui, e acredita- se que, dentro de pouco tempo, esta aldeia será aumentada de um grande número de novos habitantes, atraídos pela posição favorável, pela beleza da região e riqueza dos que já se acham aqui estabelecidos."

Praia da Capilha (Rio Grande)

22 de setembro de 1820

"Até se encontra mesmo quem, na idade de quinze ou dezesseis anos, jamais assistiu missa; o que não é muito de admirar, pois que, entre a fronteira e Rio Grande, somente se reza missa em Capilha, onde passei hoje. Capilha é simplesmente uma aldeia, com posta de algumas choupanas e de uma pequeníssima capela subordinada à paróquia do Rio Grande, mas sem capelão."

Chuí (antiga Estância do Xuí)

30 de setembro de 1820

"O Sr. Delmont quis, a todo o custo, acompanhar- me até aqui. A três léguas de sua estância, entramos numa casa, a única que encontramos em todo o percurso. Senhoras, cercadas das mais lindas crianças do mundo, trabalhavam com agulhas, agachadas sobre um estrado, elevado do chão cerca de um pé, e sobre o qual estavam estendidas peles de carneiro. Esses estrados são de uso geral. Constituem móvel essencial numa sala. Veem-se, além disso, uma mesa, duas cadeiras e algumas vezes uma cama de madeira, destinada aos hóspedes. Os donos da casa dormem num pequeno quarto separado. As casas aqui nunca têm soalho nem forro."

Montevidéu, Uruguai

De outubro de 1820 a janeiro de 1821

Barra do Quaraí (margens do Rio Quaraim)

27 de janeiro de 1821

"Nenhuma casa nem gado; entre tanto contavam- se outrora muitas estâncias, mas foram totalmente destruídas durante a guerra. São frequentes as tropas de jumentos selvagens. Meu vaqueano pegou com as boleadeiras um cavalo domado e marcado que se achava reunido a essas manadas."

Uruguaiana (Arroio Imbaá)

3 de fevereiro de 1821

"De acordo com meu vaqueano, os campos que percorri desde Belém (acampamento militar o Uruguai) e, hoje, são apenas refúgio de tigres, veados, avestruzes e cavalos selvagens, eram antigamente habitados por estancieiros portugueses, mas suas moradas foram duas vezes destruídas, durante a guerra, pelos gaúchos e eles não tiveram ainda a coragem de restabelecê-los pela terceira vez."

Itaqui (Fazenda do Deumeiro)

16 de fevereiro de 1821

"Ainda hoje fui tão bem recebido quanto ontem. À minha chegada, ofereceram-me mate; em seguida, almoçamos carne assada e frutas; enfim, às 5 horas fizemos um lauto jantar e aí nos serviram muitos pratos de carne, feijão, arroz, abóbora, pêssegos, melões, figos e melancias. Não faltou o vinho e havia à mesa pão, biscoitos e farinha de mandioca. O arroz tinha sido colhido na região, bem como o trigo com o qual tinham sido feitos o pão e os biscoitos."

São Borja

19 de fevereiro de 1821

"O que me impressionou, ao entrar na aldeia, foi, por um lado, o estado de decadência e abandono a que está reduzida e, de outra parte, o aspecto militar sob o qual ela se apresenta. Veem-se aí apenas soldados e fuzis; a cada passo encontramos sentinelas e, diante da casa do comandante, outrora residência dos jesuítas, estão alinhados vários canhões."

São Nicolau

9 de março de 1821

"Antes de entrar na aldeia, passei por um estreito caminho, ladeado de pessegueiros e de espessas urzes que já denunciavam bastante as ruínas que iria ver. Entrei numa rua bem larga, margeada de construções, contornadas de galerias e absolutamente semelhantes às de São Borja; mas quase não se veem moradores nas casas, as portas foram arrancadas, os tetos e as paredes caem em ruínas por toda a parte."

São Luiz Gonzaga

13 de março de 1821

"Encontrei nos índios de São Luís o ar alegre e franco como nos de São Nicolau, e, por outro lado, parecem mais saudáveis e mais satisfeitos. Têm a felicidade de serem administrados por um homem inteligente que, tratando-os com urbanidade, os obriga a trabalhar e tem o cuidado de providenciar que nada lhes falte. À tarde veio ele me visitar; fiquei contente pelas suas atitudes honradas e sua agradável palestra."

São Miguel das Missões

19 de março de 1821

"São Miguel é a primeira aldeia onde vejo realizar algumas reparações. Se, no início, tivessem atacado essas obras, quando necessário, as aldeias não estariam à beira de total destruição, mas numa região em que não se conserva o patrimônio público, não se pode esperar que os administradores cujo principal interesse é o lucro se dessem ao trabalho de mandar fazer reparos nas edificações que não lhes pertencem, e de que se importam bem pouco."

São João Velho

21 de março de 1821

"O terreno é muito desigual e sempre cortado de pastagens e matas. À medida que se distancia de São Borja, os bosques se tornam mais comuns e a qualidade dos pastos se altera para melhor. A erva endurece. Os subarbustos são aqui muito comuns, e os animais morrem quando não se lhes dá sal. Embora menos numerosos, os moscardos nos atormentaram bastante."

Santo Ângelo

22 de março de 1821

"A igreja, o curralão, e mesmo o convento caem em ruínas, e, das numerosas casas, apenas seis estão habitáveis. A população se eleva apenas a 80 pessoas, sem incluir as crianças com menos de oito a dez anos e, nesse número, não há mais de quinze homens em condições de trabalhar. Esses, no momento, estão ocupados em fazer mate, e são as mulheres que cuidam as plantações. Essas infelizes percorrem, diariamente, duas léguas para ir ao seu trabalho e duas léguas para dele voltar. Suportam todo o calor do dia, além de serem devoradas pelos moscardos."

Santa Maria (Capela de Santa Maria)

10 de abril de 1821

"A vila se compõe, atualmente, de umas trinta casas, que formam um par de ruas, onde existem várias lojas comerciais bem montadas. A capela, muito pequena, se acha numa praça, ainda em projeto."

Restinga Seca (Potreito da Estiva)

19 de abril de 1821

"Tenho sempre à minha direita a mesma cadeia de montanhas, mas aos poucos ela se vai distanciando. A região percorrida é muito desigual, com tufos de capim mais abundantes que as pastagens, e estas de má qualidade."

Cachoeira do Sul (Vila de Cachoeira)

23 de abril de 1821

"A Vila de Cachoeira, sede de dois juízes ordinários e lugar de extensa paróquia, fica numa posição agradável, à encosta de uma colina que domina o rio Jacuí. Esta vila, recém-criada, é ainda pequena; a praça pública está indicada por algumas casas esparsas."

Rio Pardo (Vila de Rio Pardo)

18 de maio de 1821

"A rua principal se encontra, parcialmente, pavimentada; a maior parte das outras ainda não. As casas de Rio Pardo são telhadas, algumas grandes e bem construídas; delas conta-se grande número de um e mesmo de dois andares, e quase todas que denunciam certa riqueza possuem sacadas de vidro."