Memórias injustas

ROTEIRO e Reportagem

Bruno Felin

LÁPIS

Gilmar Fraga

Tinta

Gabriel Renner

Cor

Fernando Gonda

 

DESIGN DIGITAL

Diogo Perin

 

Primeiro, tente lembrar de algo marcante vivenciado recentemente – quem sabe uma briga em uma festa. Depois, imagine como estarão essas recordações após meses ou anos. Sobrariam poucos detalhes daqueles estranhos, certo? Você se arriscaria a decidir o futuro da vida de alguém com base apenas nisso?

É o que pode estar acontecendo bem perto, nas delegacias e nos tribunais, onde a memória ainda é uma das principais ferramentas usadas para colocar (ou não) pessoas na cadeia. A ciência garante: não adianta insistir, nosso cérebro não é uma máquina fotográfica, que grava recordações capazes de serem reproduzidas eternamente.

Inspirado por um diagnóstico de como são feitos os testemunhos e reconhecimentos no Brasil, produzido para o Ministério da Justiça e coordenado pela psicóloga da PUCRS Lilian Stein, o Planeta Ciência coloca a memória em xeque na história em quadrinhos abaixo. Descubra como o arcaico modelo de coleta de evidências adotado no país abre brechas para injustiças.

O CÉREBRO NÃO É UMA CÂMERA FOTOGRÁFICA

Que tal passar parte da vida em alguma das desumanas cadeias brasileiras por uma prova contaminada como as lembranças de Spinzelli? É quase impossível saber quantos já foram julgados assim, seja com base em falsas memórias ou outros defeitos do inconsciente – mas é algo angustiante de imaginar.

A importância dos testemunhos nos julgamentos pode ser medida pela opinião de policiais, juízes, promotores, advogados e defensores públicos: 90% deles consideram essa prova muito importante, principalmente pela frequente ausência de outras evidências técnicas. Sem nada concreto, como julgar, se não for ouvindo quem estava no local do fato?

A estatística faz parte de um relatório produzido para o Ministério da Justiça e coordenado pela psicóloga da PUCRS Lilian Stein, pós-doutora em Psicologia Cognitiva e que há décadas se dedica à chamada Psicologia do Testemunho. O trabalho, que também tem como pesquisador o advogado Gustavo Noronha de Ávila, doutor em ciências criminais pela PUCRS e professor da Universidade Estadual de Maringá, realizou entrevistas em profundidade com atores jurídicos de cinco Estados brasileiros. E os dados mostram que, entre o conhecimento acadêmico nessa área e as delegacias e os tribunais, há uma distância abissal.

– Alguns dados são muito estarrecedores. O principal deles é que estamos no mínimo 50 anos atrasados em relação aos avanços da ciência. Há países que já fizeram a reforma da reforma da reforma, incorporando os avanços nessa área, e a gente nem começou a discutir isso – preocupa-se Lilian.

Inglaterra, Nova Zelândia e Austrália, por exemplo, treinaram pessoas especialmente para esse trabalho. A técnica utilizada é a da entrevista cognitiva. Nela, o depoente precisa se sentir acolhido e ciente de todas as regras. Ele é quem conduz a conversa, com um relato livre, enquanto o profissional procura apenas ouvir. O grande diferencial está em técnicas que buscam recriar o contexto do fato (se havia algum som, cheiro, por exemplo). Só depois vêm as perguntas, que devem ser preferencialmente abertas, sem incluir novas informações. No fim, é solicitado que a pessoa lembre do fato do fim ao início, o que pode trazer novos detalhes ou até contradições. A gravação em vídeo também é uma forma de assegurar o registro literal do testemunho.

Como você viu ao longo da história em quadrinhos, a contaminação de lembranças pode ocorrer a qualquer momento depois dos fatos. Lilian costuma comparar a memória a uma pegada na neve. Perguntas fechadas, demonstração de imagens de possíveis suspeitos, publicações na imprensa, conversas com outras testemunhas, insinuações, pressões, entre outras práticas, são como se aquele registro fosse, aos poucos, pisoteado. Há pessoas que inclusive confessam algo que não fizeram! Além disso, do acontecimento ao julgamento, são anos de caminhada e novas nevascas. O que fica é uma construção do real, influenciada por todos esses estímulos.

Como há amplo desconhecimento dos riscos de se conduzir mal uma entrevista investigativa, segundo o relatório, o que se pratica hoje é uma mistura de técnicas baseadas em empirismo, em que juízes, delegados, promotores e advogados repassam suas experiências práticas a colegas. Apesar do genuíno desejo de todos em realizar o melhor trabalho, as entrevistas mostraram que poucos sabem como suas práticas podem ser decisivas para os julgamentos.

– Temos depoimentos de juízes que, ao ter conhecimento da Psicologia do Testemunho, disseram não conseguir mais julgar, porque as práticas são muito discrepantes – conta Ávila.

Para o professor, há o agravante de que apenas uma parte dos crimes é investigada e chega ao processo penal:

– Pessoas com maior vulnerabilidade social também estão mais sujeitas a serem criminalizadas na comparação com outras classes, o que não quer dizer que cometam mais crimes. Elas sofrem uma dupla injustiça: além de estarem mais expostas à investigação, são submetidas a todos esses problemas relacionados à memória.

Reconhecimento de risco

Sabe-se que o reconhecimento de pessoas é uma das tarefas mais difíceis para a memória humana. Ainda mais quando o contato é por alguns segundos, em uma situação de nervosismo. Nancy Stabley, psicóloga que atua na Universidade de Augsburg, nos Estados Unidos, mostrou que, em situações com armas, o foco da vítima é direcionado para elas. As pessoas conseguem lembrar detalhadamente do revólver, mas não olham direito para o criminoso. Até pela fragilidade, os reconhecimentos têm menor importância para os juízes ouvidos na pesquisa de Lilian Stein: 42% deles dizem colocá-los em dúvida, devido ao tempo entre o inquérito e a fase processual. Já o testemunho é “muito importante” para 94% deles.

Preocupada com as vidas destruídas por más decisões, a organização americana Innocence Project tenta reverter casos de injustiça. Até hoje, 330 pessoas (que ficaram, em média, 14 anos presas por julgamentos incorretos) foram soltas com essa ajuda. Dessas, 75% por reconhecimentos incorretos – vítimas e testemunhas que, por falsas memórias ou outros problemas relacionados, produziram provas incorretas e decisivas.

Outro fator que dificulta o reconhecimento é a raça. O pesquisador Roy Malpass, da Universidade do Texas, demonstrou ser muito mais difícil reconhecer uma pessoa de uma raça diferente, porque normalmente não temos portfólio no cérebro para detectar os detalhes mais sutis.

Elizabeth Loftus, da Universidade da Califórnia, outra importante pesquisadora da Psicologia do Testemunho, realizou um teste de reconhecimento com militares americanos. Eles foram interrogados de forma muito agressiva, com tortura e outros procedimentos por 30 minutos. Depois, tiveram que reconhecer quem havia conduzido o interrogatório. Quando os militares receberam informações sugestivas, insinuando ser outra pessoa, muitos reconheceram um sujeito diferente, que pouco tinha a ver com o real torturador.

Como deu para perceber, entre as práticas da Justiça e o conhecimento científico, há um abismo e tanto. Lilian tenta resumir o tamanho do desafio:

– Fomos atrás de um diagnóstico para comparar com o que a ciência sabe. Se listássemos 10 coisas para não se fazer na coleta testemunhal e nos reconhecimentos, eu diria que as 10 são praticadas no Brasil. É como colocar um médico em uma sala de cirurgia com equipamentos de 50 anos atrás. Como você acha que ele fará um procedimento cardíaco nessas condições?

Opiniões

Psicologia do testemunho

 

Entrevistamos experientes atores da área criminal para opinar sobre o tema

DELEGADO

Cleber Ferreira

Diretor da Delegacia Regional

de Porto Alegre, quatro

décadas de atuação na polícia

TREINAMENTO

Ensinamos a teoria na academia, mas eles vão aprender mesmo na prática. Conseguimos passar coisas para tomar cuidado, como quando se colhe depoimentos de crianças ou idosos. Aos poucos, aprende-se a assimilar quando a pessoa tem um tique, a ver como o corpo fala, quando está mentindo ou não.

 

RECONHECIMENTO

Eu tenho muito receio dos reconhecimentos, principalmente quando se trata de estupro. Se for 99% de certeza, não me serve. Procuro só fazer o reconhecimento na delegacia quando segue todo o procedimento legal, com, no mínimo, outras três pessoas e duas testemunhas. Caso contrário, se a pessoa reconhece alguém no corredor, por exemplo, prefiro registrar apenas no depoimento.

 

TÉCNICAS

Eu nunca coloco informações nas perguntas, quem tem de me responder é a pessoa. Procuro o maior número de informações sobre ela para reduzir o seu mecanismo de defesa. Sutilmente, tento fazer com que ela sinta que se mentir, vai se dar mal.

Mas mesmo a confissão não basta, é preciso provas que a corroborem.

PROMOTOR

Marcelo Roberto Ribeiro

Procurador de Justiça do Tribunal de Justiça do RS. Foi promotor no Tribunal do Júri da Capital por 18 anos

FALSAS MEMÓRIAS

O tema é relevante. Principalmente considerando que, na grande maioria dos processos criminais, a prova testemunhal e os reconhecimentos são decisivos. São provas perigosas, pois carregam a influência e a emoção de pessoas ligadas ao réu e à vítima.  Um vacilo pode condenar um inocente ou absolver um culpado.

 

ENTREVISTA INVESTIGATIVA

A forma de inquirição é muito pessoal, pois nenhum juiz, promotor ou advogado é preparado, durante o curso de Direito ou em um curso especial, para a importante tarefa de tomada de depoimentos. Assim, de um modo geral, tudo é feito de forma muito empírica.

 

CONVICÇÃO DA TESTEMUNHA

Por certo, a maneira como uma pessoa se porta ao prestar depoimento influi na sua credibilidade. Mas temos pessoas hábeis para mentir, verdadeiros artistas. Costumo dizer que elas podem convencer mais do que outra que realmente viu, mas fica nervosa diante do aparato judicial.  Por isso, o convencimento vem mesmo do cotejo com outros testemunhos e provas do processo.

 

ADVOGADO

Aury Lopes Jr.

Criminalista, doutor em Direito Processual Penal e professor

da PUCRS

JUIZ

Alexandre Morais da Rosa

Juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC

AS PRÁTICAS

Há duas principais deficiências.

Uma é jurídica. O reconhecimento pessoal no Brasil é muito mal disciplinado no Código de Processo Penal. Ele não define sequer o número de pessoas que precisam participar dos reconhecimentos. O código remonta à década de 1940, absolutamente inadequado para a realidade atual. A outra é a prática. A polícia erra por falta de profissionais bem preparados para não constranger, não induzir.

 

PRÁTICAS JURÍDICAS

Estamos trabalhando na dimensão do empirismo. Precisávamos ter equipes formadas por psicólogos para obter reconhecimento sem poluição. Isso auxiliaria muito

na elucidação de crimes.

 

RECONHECIMENTO EM JUÍZO

Em juízo, não raras vezes os juízes não cumprem sequer o que está na lei. E se fazem verdadeiras atrocidades, como reconhecimentos informais. Precisamos definir melhor juridicamente e mudar as práticas, que são medíocres. Isso faz com

que reconhecimentos falsos ou errados sejam bastante comuns.

Isso é muito sério.

 

COMO SOLUCIONAR

Os tribunais brasileiros, por chancelar reconhecimentos feitos de forma errada e até ilegal, acabam matando a discussão. Quando aceitam qualquer coisa, não há terreno para discussões.  Se começarem a anular reconhecimentos mal feitos, haverá um debate que vai fomentar uma mudança de cultura. O grande problema é a estagnação na cultura judiciária, que deve ser revista já.

 

REPETIÇÃO DO RECONHECIMENTO

O reconhecimento é muitas vezes mal feito pela polícia e depois repetido em juízo, o que é questionável.  Na Europa, questiona-se inclusive se o reconhecimento pode ser repetido, pois as pessoas que participam do primeiro não estão no segundo, apenas o suspeito.

CONVICÇÃO DA TESTEMUNHA

Temos de decidir em dúvida. E as pessoas não gostam disso. Meus colegas (juízes) têm a ingenuidade de que decidem a partir da construção da verdade. Se você percebe que não existe a verdade, mas um lugar subjetivo cheio de furos, como você julga? Você terá mais dificuldade. Mas os caras não querem esse problema. Eles acreditam nas fantasias, na convicção das testemunhas e que a vítima não tem motivo para enganar.

 

MÁS PRÁTICAS

Eu vejo isso todos os dias. Reconhecimento de uma pessoa só, perguntas fechadas, como “ele estava com a arma quando atacou o senhor?”.  A pergunta já traz consigo a resposta, como se a pessoa já estivesse até reconhecido o cara. Em juízo, na delegacia, não importa. Acontece sempre.

 

COMO JULGAR

O problema é que, quando chega em juízo, já está contaminado.  Posso apenas dizer que o procedimento não deveria ter sido esse. Se não tem uma fonte independente, eu absolvo. Mas o tribunal que eu trabalho prende todo mundo. Para a maioria dos julgadores da Justiça Estadual de SC, falsas memórias não existem. Acham que isso é invencionismo da defesa para tirar a responsabilidade penal de quem é culpado. E, aí, não dá para ter uma discussão séria.

 

FALTA DE PROVAS

A minha taxa de absolvição é muito maior do que a de outras varas criminais da comarca em que eu trabalho. Se a coisa não começa direito, não tem uma fonte independente, eu absolvo. O Estado cria os crimes e tem de produzir todas as provas disponíveis para condenar alguém. O reconhecimento é uma prova medieval. Se tem outras possibilidades, por que não usam? Se o Estado tem centrais de monitoramento, pode confirmar que saiu uma pessoa do local do crime, isso vai confortando aquele reconhecimento.

Se nada é produzido, eu não condeno.

 

CONDENAR INOCENTES

Para mim, esse risco não vale. Mas uma parte dos juízes considera parte do jogo. Claro que, se for parente, é outra história.

A questão nem é essa. O que não podemos admitir é que, em 2015, a gente adote um modelo de produção probatória medieval. O Direito vive hoje num conto de fadas.