Sair ou ficar?

Povo reconhecido pelo amor à terra a ponto de carregar a pecha de bairrista, o gaúcho vive uma contradição com o solo onde nasceu. Apesar do apego ao Rio Grande do Sul e a seus costumes típicos, como o ritual do mate de mão em mão e o churrasco aos domingos, MAIS DE um QUARTO da população gostaria de passar seus últimos anos de vida fora do Estado. Outro tanto acredita que seus filhos só conseguirão alcançar os sonhos longe do pago.

Não é de hoje que os moradores da antiga Província de São Pedro cogitam partir de mala e cuia rumo a outros destinos, como demonstra a maciça migração de agricultores em busca de pasto e terra fértil no Centro-Oeste e no Norte, nos anos 1970. Hoje, segundo a pesquisa Persona, são o medo da violência e a falta de emprego que insuflam milhões de gaúchos a cogitarem o recomeço em outras plagas. O resultado sugere um desafio aos gestores públicos e à sociedade para melhorar as condições de vida na região.

é o equivalente a 3,2 milhões de pessoas dispostas a viver a aposentadoria fora da querência

dos 1,8 mil entrevistados não se veem envelhecendo no Pampa

dos pesquisados acham que os filhos terão de se mudar do RS para obter sucesso ou só viver em paz

A psicóloga Giuliana Chiapin, 40 anos, faz parte desse contingente de gaúchos dispostos a ultrapassar fronteiras.

 

— Não me vejo passando a velhice no Rio Grande do Sul. Estou aqui, hoje, porque minha família também está — admite.

 

Giuliana viveu por oito anos em Londres, na Inglaterra, para onde viajou em 2003 para estudar inglês com um visto de permanência de apenas três meses. Começou a atuar como babá, iniciou um mestrado, mais tarde foi aprovada em um concurso público e passou a trabalhar em centros infantis mantidos pela prefeitura. Mesmo bem sucedida, decidiu retornar a Porto Alegre em razão da saudade dos familiares, mas não descarta cruzar o Atlântico de novo para escapar do medo de topar com um revólver engatilhado a cada vez que dobra uma esquina.

Vendi o carro pela insegurança. Minhas amigas e minha mãe foram assaltadas, me desfiz antes que fosse a próxima vítima. Queria poder usar mais a bicicleta, como fazia em Londres, mas só pedalo até o trabalho quando sei que vou sair cedo. É que tenho medo de atravessar o Parque da Redenção quando escurece. Vivemos na paranoia.

Giuliana Chiapin, 40 anos, psicóloga

Giuliana,

em porto alegre

A pesquisa aplicada no final do mês de agosto revela que, para 78% dos moradores da Região Metropolitana, a violência é a principal aflição enfrentada no dia a dia – problema vem mais citado do que a precariedade do sistema de saúde (47%), o desemprego (40%) ou a corrupção (19%). Além disso, quatro em cada 10 participantes do levantamento que moram na Capital ou nos arredores disseram que o crescimento da violência é a pior face do difícil momento vivido no Estado — acossado, ainda, por uma grave crise fiscal que motiva o parcelamento salarial dos servidores do Executivo, além de limitar investimentos e impedir avanços sociais e econômicos.

 

— Orgulho de quê? Porto Alegre é uma cidade onde a gente vive inseguro, com medo de ser assaltado. Além disso, é cara e suja. É complicado dizer isso, mas não dá para fingir que somos melhores em tudo se não somos — complementa Giuliana.

 

Dados da Secretaria da Segurança Pública mostram que o número de homicídios e latrocínios saltou 77% em 10 anos no Rio Grande do Sul, somando 2,7 mil ocorrências no ano passado. Na Capital, o aumento chegou a 136%. O Estado ocupa ainda a segunda colocação no país em registros de chacinas, atrás apenas do Rio de Janeiro, com 26 casos em 2016, segundo o 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

SENSAÇÃO DE RETROCESSO

A pesquisa confirma que o orgulho de ser gaúcho e a valorização das tradições — outros sentimentos revelados nos questionários — convivem com um significativo mal-estar decorrente das condições de vida atuais e da percepção de que o Estado "andou para trás" e ainda patina para sair do atoleiro. Esse incômodo se repete no Interior, mas por motivos um pouco diferentes.

 

Longe da Capital, a falta de trabalho e as dificuldades econômicas são os maiores estímulos para quem admite partir. Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há mais de meio milhão de gaúchos sem emprego. Só Caxias do Sul, na Serra, perdeu 5,8 mil vagas com carteira assinada de janeiro de 2016 a setembro deste ano de acordo com o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) do Ministério do Trabalho. Em Rio Grande, na Metade Sul, os cortes chegaram a 5,6 mil no período e em Erechim, no Norte, 2,1 mil postos foram extintos.

 

Aos 49 anos, o designer e arquiteto de Farroupilha Marcelo Covolan, 49 anos, se viu forçado a morar outra vez com os pais em razão da penúria econômica. Especializado em projetar sapatos, o morador da Serra planeja colocar o pé na estrada devido à decadência do setor calçadista no Rio Grande do Sul.

Penso em morar no Exterior por causa da dificuldade para conseguir trabalho aqui. Já estou desempregado há dois anos

Marcelo Covolan, 49 anos, designer e arquiteto

Enquanto não surge uma oportunidade em qualquer lugar do mundo, o designer optou por colocar seu apartamento para alugar, garantindo assim alguma renda mensal, e regressar à casa da família.

 

Mas nem todo gaúcho é um emigrante pronto a dar adeus. Reflexo da dualidade entre amor e frustração que marca a relação com o solo natal, existe também uma significativa parcela de pessoas que não admite cruzar as porteiras do Estado sob qualquer hipótese – 20% dos entrevistados garantem que não morariam em outro lugar. É o dobro da cifra apurada em São Paulo, por exemplo, onde o questionário foi aplicado pela Consumoteca a outras 1,2 mil pessoas a fim de permitir algumas comparações de resultados. O percentual é um indicativo de que, apesar das dificuldades, não há só desesperança.

O assessor parlamentar de Passo Fundo Cledson Basso, 54 anos, enfrenta como pode a saudade da filha única que vive na Irlanda, mas não arreda pé do rincão. Já morou por seis anos em Florianópolis e atravessou o Rio Mampituba de volta determinado a jamais fazer as malas novamente.

 

— Minha filha às vezes me liga e fala: "vou trazer vocês para a Irlanda". Eu digo para ela: "não vai acontecer" — brinca o assessor.

Entusiasta da cultura local e integrante do CTG Lalau Miranda, Basso acredita que as agruras experimentadas hoje são circunstanciais e não justificam anseios de buscar a felicidade a milhares de quilômetros:

 

— A situação de violência e a dificuldade econômica que nós vivemos são reflexo do que ocorre em todo o Brasil. Ainda estamos relativamente bem em comparação com outros Estados. Muitos lugares não têm as condições de alimentação ou o nível de medicina que temos aqui.

cledson,

em passo fundo

Não deixo a minha terra por nada nesse mundo. Já vivi fora, mas sempre que estive longe quis voltar. Pode falar o que quiser, mas não tem lugar igual ao nosso

Gilnei Pinto da Silva, 53 anos, domador

Morador de Pelotas, na Metade Sul, o domador de cavalos Gilnei Pinto da Silva, 53 anos, também não cogita deixar a Cancela Grande, propriedade de três hectares que mantém no bairro Areal. Longe do burburinho do Centro, para onde só vai "de vez em quando, para visitar a namorada", Silva vive rodeado de verde e envolvido na lida com os bichos.

 

Nesse universo pitoresco, que lembra o Rio Grande do Sul de outros tempos, as pessoas se cumprimentam e se conhecem pelos nomes, as galinhas são criadas soltas, os "cuscos" estão o tempo todo na volta e o mate com urtiga está sempre pronto para receber as visitas. Para Silva, um gaúcho apegado às tradições e apaixonado pelo universo campeiro, isso é qualidade de vida.

gilnei,

em pelotas

EXPEDIENTE

Reportagem: Juliana Bublitz e Marcelo Gonzatto

Imagens: Fernando Gomes e Omar Freitas

Design e infografia: Thais Longaray e Thais Muller

Edição de vídeos: Luan Ott

Edição digital: Rodrigo Müzell

A identidade, os costumes e os anseios de quem vive no RS, hoje e no futuro, são traçados neste grande levantamento encomendado pelo Grupo RBS à empresa Consumoteca. Com 1,8 mil entrevistados em todas as regiões do Estado, a pesquisa mostrou que o apego ao universo do Pampa não significa que o gaúcho tenha opiniões padronizadas. O estudo, detalhado em reportagens publicadas ao longo de três semanas neste especial digital, mostra cinco tipos de gaúcho, derruba mitos e aponta tendências.