O ESPORTE MUDOU

A MINHA VIDA

Pode parecer óbvio dizer que o esporte tem o poder de salvar vidas. Mas, talvez por ser tão óbvio, isso seja ignorado pelos nossos governantes. A reportagem que você lerá a seguir conta cinco histórias de personagens que tiveram suas vidas transformadas a partir da prática de modalidades esportivas diversas. São apenas cinco, surgidos a partir do suor de professores ou de abnegados que decidiram encarar a realidade e virar o jogo. Porém, eles produzem uma amostragem que grita e mostra o quanto um investimento maior em educação e esporte, seguindo o modelo norte-americano, poderia abrir novas perspectivas para jovens e, consequentemente, para o futuro do país.

 

– O esporte propicia e estabelece condições para que a vida das pessoas se transforme – resume José Haroldo Gomes, o Arataca, técnico de atletismo da Sogipa e um sujeito calejado de tanto lapidar adolescentes nas pistas e cidadãos fora delas.

 

O exemplo mais recente de Arataca atende por nome de um herói africano complementado pelo significado da palavra mel em iorubá, uma etnia nigeriana. O saltador Samory Uiki Bandeira Fraga, 21 anos, atingiu mais do que os 7m73cm do seu melhor salto do ano. Hoje, ele é aluno-atleta da Universidade de Kent, em Ohio, uma das mais conceituadas dos EUA. O mundo se abriu para ele.

 

Assim como também se abriu para Jaleska Mendes. A guria, que acreditava estar no bairro Belém Novo os limites da sua vida, percebeu-se na quadra central do complexo de tênis da Olimpíada do Rio, como árbitra de linha em um jogo do francês Gael Monfils, um aquecimento para o que viria depois: atuar numa partida de Novak Djokovic, então o número 1 do mundo. Jaleska é um dos tantos orgulhos do WimBelémDon, projeto de inserção social através do tênis criado pelo fotógrafo Marcelo Ruschel no extremo sul de Porto Alegre e que hoje, por falta de apoio, trava uma batalha dia a dia para manter as portas abertas.

 

Hoje, o WimBelémDon convive com redução de 30% de suas vagas, por falta de recursos. É preciso resiliência para seguir em frente. Como a que sobra nos canoístas que treinam no poluído Rio do Sinos e são referência da modalidade no Brasil. A história de superação deles é tão intensa que deveria virar modelo a ser apresentado Brasil afora. É a prova de que o esporte muda os rumos de vidas. Mesmo em um rio no qual a vida agoniza.

O salto de Samory

Projeto social pode levá-lo às Olimpíadas

Quando Samory Uiki Fraga chegou para se integrar à equipe de atletismo da Sogipa, aos 13 anos, o técnico José Loureiro Gomes, o Arataca, perguntou:

– Que número tu calças?

– Do 39 aos 42 – respondeu o guri.

– Como assim?

– Professor, 39 é porque, se for menor, fica apertado. O 42 é porque, se for maior do que isso, atrapalha na hora de saltar.

Arataca achou graça. Há décadas lapida talentos para o atletismo brasileiro e se acostumou com as histórias de superação da gurizada. Seu olho clínico dificilmente falha. Só que a trajetória de Samory superou as expectativas até mesmo do mestre. O guri chegou à Sogipa aos nove anos. O pai, à época motoboy, leu no Diário Gaúcho uma nota informando vagas em escolinha de atletismo da Sogipa. Eram gratuitas, através do Social Esporte Clube, projeto da prefeitura municipal destinado à famílias com renda de até três salários mínimos.

Samory foi e gostou do ambiente. Filho único, o guri fazia o pai, Dalmir, a mãe, Carla Rejane, e a avó a se alternarem para levá-lo do bairro Intercap, na Zona Leste, até o clube. A rotina seguiu assim até Arataca colocar o olho no guri pernalta e descortinar um caminho que o levaria a se tornar aluno-atleta da Universidade de Kent, uma das principais dos EUA, em Ohio.

O ingresso na equipe principal da Sogipa, aos 13 anos, valeu também ao guri uma bolsa de estudos integral no Colégio Pastor Dohms, direito a almoço e janta no clube e ajuda para custear as passagens de ônibus.

— Foram quatro anos até ganhar minha primeira competição. Minha família e a Sogipa apostaram em mim. Imagina esperar quatro anos para ganhar uma prova? — indaga Samory, com a fala pausada e um sorriso que ilumina seu rosto de forma permanente.

Essa primeira vitória foi em Santa Cruz do Sul. A partir dela, Samory decolou como saltador. Tanto que, aos 16 anos, acabou com a nona melhor marca no Mundial de Menores, disputado do estádio do Shakhtar Donetsk, na Ucrânia. Sua performance atraiu olheiros das universidades norte-americanas. Cartas-convites começaram a chegar em seu nome à Sogipa. Samory colocou-as de lado. A meta principal naqueles dias era finalizar o ensino médio. Só depois disso decidiria que rumo tomaria.

O rendimento escolar no Pastor Dohms, uma das principais escolas de Porto Alegre, o colocava entre os primeiros da turma. O inglês ensinado na escola já o fazia fluente. Tanto que era ele o porta-voz da equipe nas viagens da seleção brasileira de atletismo e o tradutor nas entrevistas. Na escola, também iniciou-se no alemão, cuja fluência está vindo agora, em Kent, onde teve o direito de escolher um segundo idioma para se aprofundar.

No final de 2013, Samory finalizou o Ensino Médio no Pastor Dohms. Foi o orador da turma e impressionou a todos na formatura com sua eloquência. O guri começou 2014 a mil. Fez o vestibular da UFRGS sem muito compromisso. Acabou aprovado em Direito. Abriu mão da vaga e tirou da gaveta os convites das universidades norte-americanas. Não eram poucos. Enchiam quase duas mãos. Optou pela Kent State. Em 2015, o guri embarcou para cursar Relações Internacionais na Região dos Grandes Lagos.

— O esporte me abriu essa perspectiva, além, é claro, de todo o apoio da minha família. Nunca imaginei que minha vida tomaria esse rumo, pensava apenas em ser um grande atleta — reconhece o saltador, à beira da pista da Sogipa, em janeiro, dias antes de embarcar de volta para a Kent State.

Depois de dois anos direto nos EUA, Samory veio passar o Natal com a família em Porto Alegre. A bolsa na universidade inclui hospedagem, alimentação e a faculdade. Como atleta, conta com estrutura completa e material esportivo de primeira linha à disposição, um luxo para quem calçou o primeiro tênis através de doação. Só que Samory é inquieto. Nos primeiros meses em Kent, assumiu o comitê de boas-vindas aos alunos brasileiros. Trabalhou tão bem que passou a presidir também o comitê voltado a todos os estudantes estrangeiros. Fica a cargo dele organizar eventos, feiras e seminários que congreguem a babel que transita pela universidade.

O cargo no comitê rende uma pequena ajuda de custo. Os primeiros dólares foram guardados e viraram a passagem para a viagem de fim de ano. Samory também trouxe um IPad, cuja rifa entre os amigos reforçou o caixa. A meta, agora, é economizar para levar os pais à formatura, daqui a dois anos. Dalmir, hoje, administra um bar vizinho à Arena do Grêmio. Carla se formou e atua como assistente social.

A temporada esportiva de Samory começou da melhor forma possível. No último dia 19, saltou 7m73cm e quebrou o recorde da universidade em pista coberta, que durava 13 anos. No ano passado, ele saltou  7m63cms e cravou a terceira melhor marca da história de Kent em pista aberta. A Olimpíada de Tóquio, em 2020, está em seu horizonte, embora o tempo seja curto. Talvez esteja mais pronto para Paris 2024. Só que o esporte abriu tantas portas para Samory que seu futuro virou uma grande interrogação.

— Formado em Relações Exteriores, posso buscar carreira no Itamaraty, trabalhar com comércio internacional e até me especializar no direito internacional. Também existe a perspectiva de fazer um mestrado na Kent. São muitas alternativas — diz o saltador.

Apitando para Nadal e Djoko

Jaleska saiu do bairro Belém Novo

Quando Jaleska Teixeira Mendes se deu conta, estava sentada dentro da quadra central do Complexo Olímpico de Tênis da Rio 2016 como juíza de linha no jogo de estreia do francês Gael Monfils. O saque potente fazia a bola viajar em velocidade impressionante. Tão rápido que virava quase um facho diante dos olhos acostumados com as competições femininas ou de juvenis. Jaleska sentiu um frio congelante na barriga. Mas logo domou os nervos. Afinal, tudo na sua vida vem acontecendo na mesma velocidade dos saques das estrelas do tênis, o esporte que fez a menina do Belém Novo chegar à Olimpíada do Rio.

Jaleska ficou tão segura de si que trabalhou em uma partida de Novak Djokovic como se estivesse batendo bola na quadra de saibro do WimBelémDon, o projeto social que se confunde com a sua vida e abre as janelas do mundo para quem vive no distante extremo sul de Porto Alegre. No próximo dia 19, ela embarca para trabalhar como juíza de linha no Rio Open. É bem possível que divida a quadra com alguma estrela da ATP. Foi assim em 2016, com Rafael Nadal. Se você acha que Jaleska foi longe, espere só para ver sua história.

Jaleska chegou ao WimBelémDon em 2004. Havia um ano que o fotógrafo Marcelo Ruschel tinha aberto as portas do projeto social no bairro. Ruschel correu todo o circuito mundial registrando imagens para a ATP, a Associação dos Tenistas Profissionais. Para se ter uma ideia do que isso significa, em um torneio, saía do hotel no transporte oficial da competição quando um tenista chegou esbaforido, em busca de carona. Era Roger Federer, que havia perdido o carro que o levaria para o jogo. Ruschel, claro, abriu-lhe a porta, e os dois papearam até o local do jogo. Depois disso, sempre que se cruzavam nas competições, o suíço nunca deixava de trocar um cumprimento ou uma palavra rápida com o fotógrafo.

Só que, depois de rodar o mundo com a ATP e colecionar histórias como essa, Ruschel decidiu que era hora de fazer algo maior, que transbordasse seu coração. Assim, surgiu o WimBelémDon e um novo rumo na vida de adolescentes como Jaleska. Ela entrou no projeto na vaga do irmão mais velho, que precisou sair por causa dos problemas respiratórios. Entrou por curiosidade pelo tênis, esporte do qual, admite, nunca tinha ouvido falar. Como gostava de jogar bola com a gurizada e de correr pelas ruas do Belém Novo, achou que se daria bem com a raquete.

Jaleska estava certa em sua premonição. Aos 13 anos, disputou o primeiro torneio. Mesmo assombrada com a vida fora do seu bairro, jogou sem medo e ganhou alguns jogos. O que, para quem era de um projeto social, tinha dimensão de título. Gostou da experiência e passou a correr os circuitos estaduais. Como Ruschel estipulava boas notas e comportamento em casa com requisito para disputar competições, a guria virou ótima aluna e filha exemplar.

— Sempre fui muito ativa. O tênis me chamou atenção e, é como Marcelo (Ruschel) fala, o tênis aqui é só um chamariz. O projeto tem psicologia, artes, meditação, aulas de português e inglês, reforço da escola, reuniões com os pais, visitas domiciliares, ele insere a família toda — descreve com a seriedade quem já virou monitora do WimBelémDon.

Há uma competição, no entanto, que Jaleska aponta como um marco em sua vida. Foi a Copa Gerdau de 2013. Ele chegou à última etapa do qualifying. Uma vitória e estaria na chave principal. Venceu o primeiro set contra a catarinense Marina Schneiger por 6/2. Perdeu o segundo por 3/6 e começou a sofrer com cãibras. No último, precisou de atendimento e, mesmo com dores, só caiu por 5/7. Saiu de quadra carregada pelo técnico. Aquela gana deixou a adversária estupefata.

— A Jaleska merece os parabéns. Nunca joguei contra alguém que mostrasse tanta garra — disse Marina em entrevista ao site do torneio na época.

Naquela tarde quente de março, um olheiro que garimpa talentos para universidades norte-americanas estava na arquibancada do Leopoldina Juvenil. Ele também se impressionou com a garra de Jaleska. Tanto que colocou-a em sua lista de candidatas à bolsa nos EUA. No ano seguinte, veio o convite da Seaworld, em Kansas. Jogaria tênis pela universidade e ganharia o curso, estadia e alimentação.

Para se matricular, no entanto, era preciso inglês fluente e aprovação no ACT, a prova para ingresso de estrangeiros. O WimBelémDon se mobilizou e, através de parceria com a Egali, agência de intercâmbio, conseguiu um curso de imersão de três meses de inglês em Los Angeles. O visto, no entanto, foi negado.

A agência e o projeto agiram rápido. O destino seria Londres. Um parceiro doou as passagens, a Egali matriculou-a numa escola de primeira linha no bairro de Wimbledon e uma vaquinha online arrecadou as 1,5 mil libras exigidas para ingressar no país.

Jaleska voltou para o Belém Novo afiada no inglês. Foi aprovada no ACT e no Toefl, teste de proficiência no idioma. Estava pronta para começar as aulas na universidade no Kansas no início de 2016. Só que, outra vez, os EUA negaram o visto. A filha do garçom Jair Mendes e da doméstica Maria Teixeira sentiu o golpe. Mas não caiu nocauteada. Pelo contrário. Árbitra formada pela Confederação Brasileira de Tênis, passou a atuar como juíza de linha nos principais campeonatos no Brasil. Através do WimBelémDon, ganhou bolsa para estudar Educação Física na Faculdade Sogipa. Todos os dias, vai do extremo sul de Porto Alegre ao extremo norte para estudar. São 70 quilômetros diários. Pode parecer muito, mas é quase nada perto do que a vida de Jaleska já avançou graças ao tênis.

A ascensão do golfista

Herik veio da periferia de Livramento

Há um ano, Herik Machado, 21 anos, ganhou a Copa Ouro no Cantegril Country Club, endereço dos mais ricos entre os ricos de Punta del Este. Fazia 22 anos que um brasileiro não vencia a competição, e ele fez isso com o escore recorde. Em novembro, Herik ganhou em Abu Dhabi o Faldo Series Grand Final. Recebeu diante dos xeques o troféu das mãos de Sir Nick Faldo, um inglês tricampeão mundial e número 1 do ranking que organiza o torneio que leva o seu nome. Em março, Herik reencontrará Faldo na Flórida. Ele foi um dos oito convidados pelo ex-campeão para participar do Major Invitational  há boas chances de seu time ser treinado por Tiger Woods, um golfistas mais conhecidos do mundo.

Nada disso soaria estranho na carreira de um golfista de talento como Herik, número 1 do Brasil e top 100 no ranking mundial amador. Mas tudo se torna superlativo diante da sua origem. Criado na periferia de Santana do Livramento, sexto de uma família de sete filhos e órfão de pai desde os seis anos, sua relação com o golfe era de vizinho do Clube Campestre, onde um tio e um primo trabalhavam como caddies. Até os 10 anos, só arriscava algumas tacadas quando o primo o levava até um campo de futebol e, ali, ensinava os macetes do golfe.

Herik gostou do esporte e decidiu por conta ingressar em um projeto social do clube. Além de descobrir como era o mundo exclusivo dos bacanas no outro lado do muro, descolaria um lanche no final da tarde e poderia ganhar uns trocados como caddie. Funcionava assim: a gurizada ficava à espreita no clube e, quando um jogador gritava "caddie, caddie", eles saíam em corrida desabalada. O primeiro a chegar ganhava o direito de carregar a bolsa de tacos pelo green com nove buracos. O que rendia R$ 10, R$ 15 por partida. Agora, se o jogador era argentino, a sorte grande havia sido tirada. Os hermanos costumavam ficar uma semana no clube sem trocar de caddie.

— Mas pagavam em pesos uruguaios. Bem poderia ser dólar, né? — diverte-se Herik enquanto caminha pelo green do Belém Novo Golf Club, no exclusivo condomínio Terraville, no extremo sul de Porto Alegre.

Herik está falante. Não se intimida mais como antes com as entrevistas. Explica as regras do golfe de forma didática, usa figuras do futebol para reforçar suas explicações e até descontrai desafiando a equipe de ZH a arriscar algumas tacadas. Do guri retraído trazido de Santana do Livramento por dois empresários restaram traços do sotaque da fronteira, percebidos nos "Es" acentuados ao final das palavras. Os primeiros meses na Capital foram difíceis. Assustava-se com o risco iminente de assaltos. O vaivém intenso de carros embaralhava sua cabeça. Confessa algumas tonturas. A saudade da mãe também apertava-lhe o coração.

Os dois empresários eram de Rosário do Sul e decidiram investir no guri para que evoluísse como golfista e conhecesse a vida fora de Santana do Livramento. Instalaram-no primeiro na Rua Quintino Boicaúva, no Moinhos de Vento. Depois, em um apartamento na Avenida Neusa Brizola, na Bela Vista. Ali ele começou a sair mais de casa. Deixava o green do Country Club direto para as salas de cinema do Iguatemi, um luxo que não tinha na fronteira. Perdeu as contas de quantos filmes viu. Por vezes, até emendava um no outro.

As tacadas de Herik evoluíram, e ele começou a competir em alto nível. Só que faltava-lhe o calor humano da fronteira. Foi quando apareceu o convite do Belém Novo, para integrar o projeto Alta Performance, que tem um viés social e já abrigava outros dois amigos de Livramento.

— Aqui me senti bem, o pessoal é muito gente boa. fui acolhido de forma carinhosa. Me sinto em casa — diz.

Herik se sente em casa em um dos condomínios mais nobres de Porto Alegre, endereço de jogadores de futebol, empresários e cônsules de vários países. É o ídolo da gurizada da escolinha do clube e admirado no green por sobrenomes comuns nas colunas sociais ou nas reuniões da Federasul. Transita pelo Terraville como a estrela do clube.

Seu currículo como golfista recomenda tal deferência. Hoje, é tratado pela Confederação Brasileira de Golfe como a principal promessa da modalidade. Seu nome já é conhecido no circuito latino-americano. Também é figura frequente nos campeonatos disputados na Flórida. Nem lembra de cabeça quantas vezes esteve por lá. O passaporte, em breve, estará sem espaço para carimbos das alfândegas pelo mundo. Ele acha graça da situação.

O próximo passo de Herik é virar profissional e buscar lugar no PGA, o circuito mundial onde as premiações são na casa dos milhões – de dólares. Mas o salto para isso exige patrocinadores fortes e um agente influente no mundo dos tacos. Hoje, Herik é apoiado pelo Belém Novo Golf Club e por uma das principais marcas mundiais de golfe, mas como amador recebe apenas material – uma bolsa com 14 tacos passa fácil dos R$ 5 mil, um terno de bolas, R$ 80. A empresa lhe envia tacos personalizados e outros mimos. Sabe que ali está uma promessa mundial. Talvez nem imagine que, se não fosse o esporte, ele estaria até hoje do outro lado do muro do Clube Campestre de Santana do Livramento. Onde o mundo vai um pouco além da esquina de casa.

Volta ao mundo do futebol

A vitória improvável do ex-futuro craque

Márcio Ferraz das Neves não se tornou o camisa 10 que pintava no sub-17 do Grêmio. Muito menos confirmou como profissional a classe com a bola exibida na infância nas praças do bairro Intercap, na zona leste de Porto Alegre. Márcio, na verdade, foi muito mais longe do que isso. O pai da Antônia e marido da Fernanda se tornou um sujeito de ideias claras, dono de bagagem cultural diferenciada e ciente de seu espaço como cidadão. Tudo graças ao futebol. Ele não trouxe os milhões na conta que embalam o sonho de todos os brasileiros. No seu caso, a fotuna veio na forma de conhecimento.

Márcio chegou ao Grêmio aos nove anos, levado pelas mãos do pai, Joaquim, ex-lateral de Inter e Novo Hamburgo. Chegaram ele e o irmão caçula, Bruno, dois anos mais novo. Bruno teve mais destaque. Virou notícia aos 15 anos, quando entrou na mira do Arsenal. Estreou com gol no profissional logo depois e defendeu seleções de base. Com 17, fazia parte do grupo principal.

Márcio nem imaginava, mas, nessa mesma época, sua vida começava a tomar outro rumo. Tudo começou com uma delicada cirurgia no joelho direito. Sofreu lesão que afetou todos os ligamentos. Perdeu tempo. Ainda assim, aos 19 anos, foi promovido ao profissional. Atuava pelo Azulzinho, uma espécie de time de transição da época. Era o ano 2000, a ISL despejava dólares sem restrições no Grêmio.

O técnico Antônio Lopes, no entanto, viu potencial no guri e decidiu apostar. Tanto que, em um jogo, o colocou no lugar de Paulo Nunes, o ídolo recém buscado de volta em São Paulo. Só que Márcio travou. Assombrou-se com o vestiário tomado de feras como Zinho, Astrada, Amato e Anderson Lima. Sentiu também o peso de jogar no time principal. Em resumo, não aconteceu. Com 20 anos, deixou o clube. Buscou a sorte na Bulgária e na Romênia. Não a encontrou. Disputou um Gauchão pelo Santa Cruz e, quando percebeu, estava no União de Timbó jogando a Divisão de Acesso do Catarinense. Aos 22 anos, decidiu que sua estrada no futebol havia chegado ao fim.

Os 13 anos dedicados ao esporte, no entanto, haviam deixado um grande legado. O maior deles, a maturidade para tomar decisões. O campo de jogo desenvolveu nele a naturalidade para agir em situações limítrofes. Como era a  encruzilhada em que encontrava naqueles dias.

Márcio se sentou com Fernanda e decidiu que voltaria a estudar. À época namorada, ela foi inspiração. Nunca se conformou com uma nota 9,5 e sempre buscou conhecimento ao máximo — não à toa acaba de finalizar o doutorado em Nutrição.

Assim, em 2005, o meia Márcio virou aluno de Engenharia Elétrica na PUCRS. Não demorou para ser convidado a jogar na seleção da universidade. Havia uma promessa de bolsa de estudos para os craques do time. Ela nunca se confirmou. Porém, um olheiro de universidades norte-americanas viu-o em ação. Sugeriu que editasse um vídeo com os melhores lances para enviá-lo aos técnicos nos EUA.

Márcio nem colocou lances dos tempos de Grêmio. Restringiu-se aos jogos pela PUCRS. Eles foram suficientes. Na metade de 2007, desembarcava na Mid Continent, uma universidade privada em Mayfield, no Kentucky. Seria aluno-atleta com bolsa total, o que incluía alimentação e hospedagem.

Só havia uma ressalva: a vaga oferecida era no curso de Administração. Ele topou mesmo assim. Na primeira temporada, acabou como MVP (melhor jogador) da sua conferência. Logo, passou a ser assediado por universidades maiores. O que garantiu-lhe o privilégio de levar para os EUA a namorada.

Márcio passou a morar fora do campus. Alugou um apartamento e, para se manter, trabalhava no setor de manutenção da universidade. O inverno rigoroso em Mayfield trazia a vantagem de uma temporada curta do "soccer". Em dezembro, a bola parava e sobrava tempo para os estudos. Por outro lado, como funcionário da manutenção da universidade, para reforçar o caixa, uma das funções era retirar a neve dos passeios dos campus em dias de fortes nevascas.

— Teve um dia que estava tão frio que, quando finalizei o trabalho, não sentia as mãos. Mesmo usando dois pares de luvas. Quando as tirei, estavam roxas — recorda.

Márcio voltou dos EUA em 2010 com o diploma de administração na mão. Para orgulho da mãe, Liange, e do pai, Joaquim. Era o primeiro dos Ferraz das Neves a se graduar, entre tantos primos e tios.

— Sou muito tranquilo em relação ao futebol. Quando tive a chance de ser profissional, não consegui. Mas o futebol me deu a chance de estudar. Adquiri bagagem cultural, falo inglês com fluência, conheço pessoas do mundo todo — exalta Márcio.

Aos 35 anos, Márcio se descolou totalmente do futebol. Não tem nem bola em casa. O joelho o tirou das peladas com os amigos há cerca de dois anos. Ficaram as histórias que conta para os clientes que visita como técnico empresarial do Sebrae e uma certeza: a pequena Antônia praticará esportes assim como o pai. E, assim como ele também, tomará o caminho de uma universidade norte-americana para estudar.

— Eu sou o exemplo de que unir estudo e esporte é a fórmula perfeita. Cresci no Jardim Leopoldina e, por questões de drogas, perdi muitos amigos que não tiveram a mesma chance. Se tivessem o esporte e a orientação de cidadania que traz, certamente teriam outro caminho — conta o craque de Mayfield.

Os canoístas do Sinos

Treino insalubre levou à Seleção

Sob a ponte da BR-116 em São Leopoldo, o Rio do Sinos oferece aos forasteiros um odor nauseabundo e um visual entristecedor, com lixo acumulado às margens e esgoto jorrando sem piedade. Quem passa de carro em alta velocidade pela ponte escapa incólume desses dissabores. Mas também perde a chance de perceber que, no mesmo Sinos ranqueado como o quarto mais poluído do Brasil, também brota cidadania graças à canoagem. É ali, respirando o ar nauseante e desviando muitas vezes do lixo, que a Associação Leopoldense de Ecologia e Canoagem (Aleca) atua como uma fábrica de talentos.

O trabalho social da Aleca vive em paralelo à realidade violenta da região. Há preferência por treinar pela manhã no verão, para evitar dividir as margens do rio com os consumidores de drogas à tarde. Pipocam entre professores e atletas as histórias de corpos boiando no rio, que tiveram de ser rebocados pelos atletas até a beira para que fossem encaminhados ao necrotério.

Uma dessas histórias aconteceu no ano passado. Quando cruzaram pela primeira vez pelo corpo, os canoístas imaginaram ser um tronco. Na volta, um deles esbarrou o remo sem querer e o fez virar. Era um jovem, com perfurações a bala, que estava com as mãos amarradas. Houve um caso mais antigo, em que um atleta encontrou outro corpo com perfurações e um tijolo amarrado ao pescoço. Naquela região, o rio é usado como ponto de desova das vítimas da guerra do tráfico.

É nesse contexto que a Aleca atua em duas frentes. Na primeira, usa o esporte como ferramenta de cidadania, Na segunda, apresenta rendimento esportivo de ponta. A equipe já é reconhecido na canoagem brasileira. Para se ter uma ideia, auxiliará na arbitragem da primeira etapa da 5ª Copa do Brasil, entre 22 e 25 de fevereiro, na Ilha do Pavão. O clube funciona dentro do projeto social Canoagem na Escola. Desenvolvido pela Secretaria de Educação de São Leopoldo, oferece aulas da modalidade para 160 alunos da rede municipal. Quem se destaca, acaba promovido para a equipe principal, hoje composta por 19 integrantes. Quatro deles foram convocados em novembro para o Sul-Americano, em Montevidéu.

Para um clube em que tudo funciona movido a estoicismo, colocar quatro atletas na seleção brasileira, além do técnico Marcelo Carneiro, é de um gigantismo que você não imagina. Só o exemplo de Carneiro já merece distinção. Bombeiro, sai do seu grupamento em Porto Alegre e pega a BR-116 para treinar os atletas. Muitas vezes, depois de um plantão de 24 horas e tresnoitado. Por isso, seu orgulho com a conquista da Copa do Brasil m 2017 e pela boa performance em Montevidéu dos irmãos Agatha Carvalho, 16 anos, e Saimon Carvalho, 14, e de Daniel de Souza, 16, e Eduardo Apollo. Ele é o único técnico da equipe do projeto criado em 2006 e coordenado pela professora municipal Daniela Maioli. Além deles, há outros dois professores de educação física e monitores que foram alunos da própria escola.

— O custo-benefício é o maior possível. Fazemos muito com pouco. Estamos no auge com a nossa equipe — comemora Carneiro.

A prova cristalizada da vitória da canoagem no Rio do Sinos está nos irmãos Aghata e Saimon. Os pais repetiram a trajetória de grande parte das famílias que vivem na periferia das cidades do Vale do Sinos. Quando o caçula iria nascer, decidiram trocar a vida numa propriedade rural no interior de Pedro Osório, na zona sul do Estado, pela perspectiva de uma vida melhor Região Metropolitana. Primeiro, em Cachoeirinha. Depois, no bairro Campina, em São Leopoldo

Havia preocupação da família vinda do Interior com a vulnerabilidade do local. Os pais, a costureira Viviana e o açougueiro Jair, temiam pelo futuro dos filhos. Por isso, não houve dúvidas quando surgiu a chance de matricular a irrequieta Agatha na escolinha de canoagem. O comportamento mudou como em um passe de mágica. Também não demorou para os professores perceberem nela uma técnica inata para o esporte.

Agatha começou a ganhar provas e a evoluir na mesma velocidade de suas remadas. O rendimento escolar, exigência para seguir na escolinha, melhorou. Assim como a disciplina e a relação com os pais. Toda essa mudança inspirou o caçula Saimon a seguir o mesmo caminho. Hoje, ela é uma das melhores canoístas do Brasil em sua categoria. Quando chega para as competições, percebe as meninas apontarem ou olharem com admiração. Algumas até pedem selfies. Agatha se orgulha. Mas nada infla mais o seu peito do que ver a realização dos pais com suas conquistas e suas viagens para competir. Principalmente aquelas em que precisa andar de avião.

— Meus pais passaram muito trabalho, Moravam na roça, a 30 quilômetros do centro de Pedro Osório. Para comprar algo para comer, era muito complicado. Mas sempre trabalharam muito. Eles são o meu exemplo. Por isso, me realizo quando vejo o orgulho que sentem de mim e do meu irmão – diz, emocionada, enquanto seca as lágrimas.

Saimon não tem a eloquência da irmã. Fala pouco, mas é certeiro em tudo o que diz. Conta que sua vida, hoje, está atrelada à canoagem. Dos amigos da vila e da escola, seguem próximos dois ou três. Os demais, apenas cumprimenta, de longe. Eles tomaram um caminho diferente do seu. Passam o dia pela rua. Há um  ponto de tráfico na vizinhança, onde muitos são assíduos. O horizonte de Saimon é outro. A canoagem abriu-lhe outros caminhos, mostrou um novo mundo. E se não fosse o esporte?

— Eu estaria na rua, como eles. Talvez também tivesse entrado para o mundo das drogas — admite, sem meias palavras, o cidadão que remou contra a maré e venceu.