OS BASTIDORES

A conquista da América

Quando Edcarlos torneou sozinho de cabeça aos 30 minutos do segundo tempo e descontou para o São Paulo, Abel Braga estaqueou na beira do gramado do Morumbi. O Inter, até ali, fazia uma atuação de luxo, vencia por 2 a 0 e estava perto do terceiro gol. Mas o cabeceio de Edcarlos, quase da linha da área, fez o técnico retroceder 17 anos no tempo e sentir congelar sua alma.

— PQP, não era para tomar esse gol — disse baixinho.

O lance remeteu Abel para 1989, quando o Inter venceu o Olímpia em Assunção e perdeu a vaga na final da Libertadores em Porto Alegre ao cair por 3 a 2.

— Não pode ser, cara — murmurou, enquanto o Morumbi tremia com a festa paulista.

O medo de Abel era ver uma caminhada de oito meses escapar-lhe das mãos. Ele e o Inter haviam começado a conquistar a América na noite de 5 de dezembro de 2005. Antes da festa de entrega dos Melhores do Brasileirão, o técnico recebeu um convite do então presidente Fernando Carvalho para jantar. Ao final da festa, saiu rápido do Theatro Municipal do Rio para não ser percebido. Pouco depois, ele e Leomir, seu auxiliar, sentaram à mesa na churrascaria Porcão do Aterro do Flamengo com Carvalho e o empresário Jorge Machado, intermediador o encontro. O acerto levou 10 minutos. Abel nem pestanejou. Bastou ouvir que a meta era a Libertadores. O que significava reescrever a história interrompida em 1989.

A noite seguiu com cortes de carne e conversa sobre futebol. Se despediram já madrugada. Carvalho não se conteve:

— Posso te dizer só uma coisa?

— Claro — reagiu Abel.

— Quero um time menos faceiro do que aquele que usaste no Beira-Rio.

Abel achou graça e sentiu um certo orgulho. Havia cedido o 2 a 2 ao Inter no último minuto com um Fluminense cujo quarteto ofensivo tinha Felipe, Petkovic, Leandro e Tuta.

Antes de sair da Porcão, Abel tratou de tranquilizar o novo chefe. Sem fechar a porta aberta para o seu estilo ofensivo:

— Fica tranquilo, cara. Vamos ver as peças que teremos.

Choro de alívio e muita festa após o 2 a 2 com São Paulo e a conquista da América pela primeira vez

O técnico recebeu no Beira-Rio um grupo moldado desde 2004. Exigiu apenas Fabiano Eller, o zagueiro rápido e canhoto para afinar a saída de bola e cobrir Jorge Wagner, meia que havia virado lateral, e ganhou ainda o volante Fabinho e o lateral Rubens Cardoso. Como o grande objetivo era a Libertadores, Abel dividiu o grupo. Os reservas atuariam no Gauchão. Os titulares, a quem batizou como "diamantes" se preparariam para a estreia contra o Maracaibo, em 16 de fevereiro. A harmonia seria perfeita não fossem as atuações de alguns reservas. Bolívar voava sua cabeleira atrás de atacantes e impressionava o técnico pela velocidade. Rubens Cardoso parecia moldado para a lateral-esquerda do Inter. E ainda havia Michel, cuja aplicação tática enchia os olhos de Abel.

Com o passar das semanas, alguns diamantes perderam valor. Índio virou reserva de Bolívar. Jorge Wagner, de Rubens Cardoso. Ceará passou a ameaçar o posto de Granja. Tudo isso causou um desconforto no vestiário. Havia respeito à hierarquia de Abel, mas também muxoxos.

Mesmo com alguns ruídos, o Inter avançava. Venceu o Pumas, no México, e, no Beira-Rio, fez um daqueles jogos que fazem o sangue do grupo ferver. Os mexicanos abriram 2 a 0. Michel descontou antes do intervalo e Fernandão empatou na abertura do segundo tempo. Os 42,5 mil colorados no Beira-Rio empurravam o time no grito. Abel olhou para trás do gol e mandou chamar Gabiru, indicado por ele semanas antes.

— Eu te trouxe e, até agora, não tu não fez m. nenhuma. Vai lá e resolve.

Adriano resolveu. Aos 30 minutos, nove depois de ter entrado, fez o 3 a 2 de cabeça. O Inter seguiu firme. Avançou nas oitavas sobre o Nacional. O jogo de Montevidéu teve gol de placa de Rentería e expulsão de Ediglê por pontapé em Luisito Suárez. Em Porto Alegre, o 0  a 0 acabou com protesto dos uruguaios, por dois gols anulados, e vaias dos colorados pela atuação opaca. As quartas de final indicaram ao Inter a LDU. A altitude assombrava, mas o que metia medo mesmo era o time equatoriano. Com seis jogadores da seleção que iria à Copa, a LDU vinha de um 5 a 0 no confronto com o Nacional-COL — 4 a 0 em Quito e 1 a 0 em Medellín.

Foi a partir dessa viagem ao Equador que o Inter começou a ganhar a Libertadores. A delegação saiu de voo fretado de Curitiba — onde havia ganho de 2 a 1 do Atlético-PR pelo Brasileirão — e fez escala em Guayaquil. Treinou no estádio do Emelec na terça-feira e, cinco horas antes do jogo, subiu para Quito. O trajeto deveria durar meia hora. Só que, ao se aproximar da capital equatoriana, o avião encontrou uma tempestade de granizo. Os solavancos da aeronave e o barulho das pedras batendo na fuselagem aterrorizaram os colorados.

— Ave Maria, cheia de graças... Pai Nosso que estais no céu ... — rezava Abel baixinho.

Entre uma oração e outra, o técnico praguejava:

— Quem foi o FDP que arrumo esse voo na hora do jogo? FDP de altitude que me faz ir na hora do jogo!

Os jogadores desceram em Quito com a LDU esmiuçada. Roberto Moreno, o Robertinho, auxiliar de Abel, dissecava os rivais com rigor. Não se furtava nem de virar um 007. Como fez em Montevidéu, com o Nacional. Para ver o treino, pediu a um amigo que comprasse uma camiseta do clube e o esperasse numa Kombi com uma bicicleta dentro. Os dois rumaram até o CT de Los Céspedes. Robertinho desceu fardado do carro e, com a bicicleta, recostou-se numa parada de ônibus com vista para o campo. Um uruguaio parou ao seu lado, passou a fitar seu relógio e a tentar ler o que escrevia na prancheta. Sestroso, o auxiliar saiu dali e pedalou até um matagal atrás de uma das goleiras. Anotava os segredos do rival e quase foi atingido por uma bolada. Ergueu a cabeça e viu dois gandulas correndo em sua direção. Não esperou para saber se eles queriam a bola ou a sua cabeça. Na fuga por uma trilha no mato, caiu da bicicleta. A delegação o reencontrou todo lanhado no hotel.

A história de Robertinho virou tema da palestra do motivador Evandro Mota antes do jogo de Montevidéu. Para a partida em Quito, não houve estripulias de Robertinho. Mas um relatório minucioso de como a LDU usava a altitude. Seus gols saíam sempre de viradas de bola em cima dos laterais — principalmente para a entrada de Reasco pela direita. Eles também chutavam de qualquer parte do campo. Marcelo Boeck, 21 anos à época, entrou em campo ciente disso. Soube que iria jogar na véspera. Estava à mesa no jantar. Abel passou por trás deles e, depois de dois tapinhas no ombro, avisou:

— Amanhã é com você. Vai jogar.

Boeck foi apresentado à altitude no primeiro lance. Reasco passou do meio-campo, deu dois toques na bola e enfiou o pé. Mal o goleiro havia piscado, a bola passou zunindo sobre o gol. Enquanto teve fôlego, o Inter fez confronto igual com a LDU. Saiu na frente, poderia ter ampliado com Fernandão e Rentería, mas levou dois gols no segundo tempo. A delegação deixou o Estádio Casablanca e foi jantar no luxuoso Hotel Hilton em Quito. Toda a delegação saiu da mesa e se postou diante da TV do bar para ver São Paulo x Estudiantes-LP. Menos Fernandão e Iarley. Com o semblante grave, os dois conversavam no hall do hotel. A inconformidade de Fernandão era com seu posicionamento. Pretendia conversar com Abel assim que se reencontrassem no Beira-Rio. Queria atuar como meia-atacante e não como centroavante.

Seriam 70 dias até o jogo da volta. A Copa vinha em boa hora para o Inter reapertar os parafusos e se preparar. Havia algo desalinhado, no ambiente do vestiário, embora o time viesse de 27 jogos invicto até perder para a LDU. Fernandão não era o único com ressalvas. A direção acreditava que seria possível fechar um pouco mais o time. Mesmo que Abel fosse um paizão, a relação no vestiário ainda carecia de uma química. Ficou definido que o grupo trocaria Porto Alegre por um resort no Costão do Santinho, em Florianópolis. O plano eram 10 dias de reclusão, treinos e preparação visando ao jogo contra a LDU. O grupo estaria blindado de tudo. Até mesmo do ambiente festivo para os jogos da Seleção na Copa da Alemanha. Abel e a direção só não contavam que o hotel, além do Inter, recebia no mesmo período um congresso de representantes de uma grande marca de cosméticos.

— Eram 30 jogadores e 400 mulheres no mesmo hotel. A sossego e a concentração que pretendíamos tinha ido para o espaço — confidencia um dirigente da época.

O que tinha tudo para ser um tormento acabou sendo usado com maestria por Abel. Alguns jogadores solteiros saíram da linha e se atrasaram na hora de dormir. Acabaram registrados na implacável planilha do segurança Osmair da Silva, um ex-policial severo que há mais de três décadas vigia o comportamento dos jogadores do Inter na concentração. Ao ser informado por Osmair, Abel combinou com a direção o discurso: o grupo só escapara de multa pesada devido à sua intervenção. Mais tarde, o técnico reuniu os jogadores, passou a carraspana e os emparedou:

— Os caras queriam multar vocês, mas eu pedi que não fizessem isso. Agora, mais do que nunca, temos de ganhar essa Libertadores.

Os jogadores saíram da reunião agradecidos ao chefe. Era o que faltava para sintonizar de vez o vestiário. Abel aproveitou a parada e também reviu o time. Edinho, em alta com o técnico desde Quito, ganhou lugar ao lado de Fabinho. Tinga avançou mais, e o meio ficou mais consistente. Fernandão teve seu pedido atendido e recuou para jogar quase ao lado de Alex. Na frente, Sobis parecia iluminado. Fazia gols de todas as formas.

Mais encorpado em campo e fortalecido fora dele, o Inter despachou a LDU no dia 19 de julho. A semifinal chegou sob desconfiança. O Libertad tinha um bom time, um técnico emergente, Tata Martino, e influência na Conmebol. Afinal, era o clube do coração do presidente da entidade, Nicolas Leoz. O jogo no Defensores del Chaco foi tenso. Um chute de Guiñazú bateu no poste no primeiro tempo. No segundo, veio o lance que deu a Abel a sensação de que a América poderia, enfim, ser sua. Aos 30 minutos, Cristian Riveros, o mesmo que jogou no Grêmio entre 2013 e 2015, mandou um chute forte de pé direito. A bola bateu na trave, nas costas de Clemer e saiu mansa pela linha de fundo.

— Ali eu senti que tinha coisa boa para nós — recorda Abel, por telefone, desde o Rio.

O Inter faturou o Libertad no Beira-Rio por 2 a 0 e estava a dois jogos do sonho da Libertadores. O rival já era conhecido. O São Paulo, na véspera, havia feito 2 a 0 no Chivas, no Morumbi, e fechado o confronto em 3 a 0. Buscava o tetra e o segundo título seguido da Libertadores. Um rival poderoso. Por isso, o Inter cuidou de todos os detalhes. No sábado, se instalou em Santos. Jogou pelo Brasileirão na Vila Belmiro domingo e ficou por lá até a hora da decisão.

A preocupação de Abel era com os volantes Josué e Mineiro, carrapatos na marcação e s azougues no ataque. Ela durou pouco. No primeiro lance de Mineiro no jogo, uma dividida com Tinga o deixou avariado. Josué, em seguida, acertou cotovelaço em Sobis e acabou expulso. Tudo ia bem até o gol de Edcarlos que provocou o flashback na cabeça de Abel. O trauma de 1989 persistia, apesar do 2 a 1 no Morumbi.

 

Faltavam apenas 90 minutos e uma semana que parecia sem fim. Fora de campo, o Inter havia sido sagaz. O mesmo Betis que negou a ao São Paulo s prorrogação do empréstimo de Ricardo Oliveira para que jogasse no Beira-Rio levou Sobis e Jorge Wagner depois da Libertadores. Em campo, sem Fabinho, expulso em São Paulo, Abel montava a estratégia do jogo da volta com três zagueiros. Os líderes o procuraram em sua sala e fizeram uso da abertura que o chefe dava.

— Vamos com três centrais — avisou Abel.

— Mas nós ganhamos com dois lá. Vai colocar três aqui? — questionou um dos líderes.

— Quem vai marcar o Mineiro? — insistiu outro

— O Alex — rebateu o técnico

— Tá brincando?

— Claro que o Alex vai marcar, cara. Já jogou de lateral, de segundo do meio, de terceiro. Não se preocupem com isso, quem sabe siou eu — encerrou o técnico.

— Tá bom, tá bom — resignaram-se os jogadores antes de sair.

Com Bolívar, Índio e Eller na zaga  e um Beira-Rio atopetado, Abel encarou a noite fria de 16 de agosto de 2006. Se ele achava que o gol de Edcarlos no Morumbi era tortura foi porque nem imaginava o que viria nos últimos 15 minutos de jogo em Porto Alegre. Com um a menos e 2 a 2 no placar, o Inter se segurou como pôde. Clemer fez defesa inverossímil em cabeceio de Alex Dias no último lance. Foi a senha para os colorados, enfim, ganharem o direito de inflar o peito e dizer: eu também sou campeão da América.

A sequência do gol de Tinga que terminou em expulsão