Má administração de medicamentos está entre as denúncias apuradas

Quase metade dos 54 procedimentos apuram negligência, como a má administração de medicamentos. Há processos para investigar a aplicação indevida de remédios a soropositivos e o uso de calmantes como punição.

Acolhidos relataram sofrer "ameaças de encaminhamento para um Posto de Saúde", onde seriam medicados por estarem agitados. A prática seria rotina no local, onde os abrigados receberiam remédios "para que dormissem mais rápido". Ameaça que se assemelha a método de tortura, conforme a professora Samantha Dubugras Sá:

— Me parece o eletrochoque de antigamente. Se não ficar calminho, vai tomar um choque e te aquietar — comenta a especialista, ao alertar que a ingestão indevida de medicamentos pode provocar dependência química, intoxicação ou overdose, que podem levar à morte.

Se comprovados, os casos podem motivar a demissão dos responsáveis. Além disso, dependendo das consequências, eles podem responder por lesão corporal, que tem pena de até um ano de prisão, fora agravantes.

Outros processos que investigam negligência tratam de problemas como a falta de preparo e manejo dos monitores.

— Fui contratada para ocupar uma vaga de educadora, mesmo sem experiência — diz uma ex-funcionária.

Para evitar que casos de negligência aconteçam, conforme a professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Rosa Maria Castilhos, é preciso que o poder público destine profissionais qualificados e capacitados para atender os abrigos.

 

Crianças esperam mais de um ano por atendimento médico

Em abril, o MP instaurou investigações sobre a falta de vagas na saúde e na educação aos acolhidos, já que muitos não frequentavam a escola. Em um dos depoimentos, uma enfermeira citou o caso de quatro acolhidos que têm crises convulsivas e precisam fazer exames, solicitados em caráter de urgência pelo neurologista. Após quatro meses de espera, os exames foram negados por falta de cota.

— Crise convulsiva para uma criança resulta em lesão cerebral, e dependendo da extensão, pode levar a óbito — desabafou a servidora.

A juíza Sonáli da Cruz Zluhan insiste que o poder público tem de priorizar o atendimento a eles. Ela relata o caso de um adolescente de 13 anos que urina pelo umbigo e aguarda uma cirurgia.

— Ele foi tirado da mãe por negligência, porque ela tinha que ter feito essa cirurgia após o nascimento. E aí a gente recolhe no abrigo e continua com a mesma negligência. Como se explica isso? — questiona a magistrada.

Superlotação de abrigos deixa sem proteção crianças em situação de risco

Filhas de soropositivos sem tratamento e dependentes químicos, quatro crianças — de 5, 6, 7 e 11 anos —, eram agredidas, passavam fome, dormiam no mesmo colchão e não tinham nenhuma rotina de higiene. Com o acolhimento institucional determinado pela Justiça, os pequenos não tiveram vagas imediatas em abrigos de Porto Alegre devido à superlotação.

A história dos irmãos integra um inquérito civil sobre a falta de vagas no serviço da Capital. Atualmente, conforme o MP, 18% dos abrigos possuem mais acolhidos do que o máximo determinado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS).

Depois de cometer furtos e usar drogas, o primogênito dos irmãos foi internado no Centro Integrado de Atenção Psicossocial — Infância e Adolescência (Ciaps), onde relatou estar feliz sem "vestir roupas limpas e quentinhas".

— Tem uma cama só para mim — disse o garoto, que não queria voltar para casa "pois seguiria sendo agredido".

Em 1º de agosto, a Justiça determinou que ele e os irmãos fossem acolhidos "com urgência", mas as vagas foram liberadas uma semana depois. A superlotação também obriga os abrigos a improvisar espaço aos acolhidos, que muitas vezes dormem no chão. O inquérito integra os procedimentos que apuram a estrutura precária dos abrigos, que representam 13% das investigações.

Entre elas, há uma sobre o Plano de Prevenção Contra Incêndios (PPCI). Conforme ofício do Corpo de Bombeiros, apenas sete dos 104 abrigos possuía o documento em novembro de 2014, situação que permanece atual, segundo o MP. Caso não resolvam os problemas, as casas podem ter as portas fechadas pela corporação.

Falta de servidores também é investigada

OMP ainda instaurou procedimentos para apurar a falta de funcionários nos abrigos, que representam 7% das investigações. Conforme o MDS, a equipe técnica recomendada é de um psicólogo e um assistente social para cada 20 crianças, com carga horária mínima de 30 horas semanais.

Depoimentos de acolhidos revelam que nem todos são ouvidos individualmente por psicólogos, e alguns profissionais comparecem apenas uma vez por semana nos abrigos. Uma menina relatou que a psicóloga faz as avaliações "pelas atas do Livro de Ocorrência".

 

O que diz Marcelo Soares, presidente da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) da prefeitura de Porto Alegre:

"Desde 2010 até hoje, abrimos em torno de 370 vagas, 40% da capacidade da Fasc. Até o início de setembro, vamos abrir um novo abrigo, que representará 20 novas vagas. Todos os abrigos possuem psicólogo e assistente social e vamos chamar 70 servidores este ano. Estamos providenciando os PPCIs."

 

O que diz a Fundação de Proteção Especial (FPE) do governo do Estado, por meio da Lei de Acesso à Informação:

"Cabe ressaltar que todos os NARs onde os acolhidos precisam de cuidados médicos especiais possuem um enfermeiro responsável e técnicos de enfermagem, que controlam e separam as medicações rigorosamente a partir de prescrições médicas.

Estamos constantemente reorganizando e readequando os espaços existentes, impedindo a carência de vagas. Os PPCIs estão sendo providenciados.”

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