Zero Hora retrata o descaso a que estão submetidas crianças e adolescentes que vivem em muitos dos abrigos de Porto Alegre. São jovens que, por lei, deveriam receber cuidados especiais, ser prioridade do poder público. Mas o abandono, a desorganização e a burocracia tornam a rede de proteção falha, com relatos de episódios de maus-tratos e até mesmo abusos sexuais
TEXTOS
Adriana Irion
adriana.irion@zerohora.com.br
Fernanda da Costa
fernandadacosta@zerohora.com.br
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Rosto arrastado no chão, imobilização com pé no pescoço e braço torcido até a queda. Cenas que poderiam ter se passado em porões de tortura foram relatadas por crianças e adolescentes que vivem em abrigos de Porto Alegre. Em alguns casos, acolhidos ainda afirmaram ter sofrido abuso sexual.
Encaminhado a um abrigo por ter sido estuprado pelo companheiro da avó aos quatro anos, José* teria sido vítima do mesmo crime no local. O delito, assim como outros relatados, teria sido cometido por profissionais contratados para cuidarem dos acolhidos, nesses locais cujo objetivo é protegê-los. Para as crianças e adolescentes, isso significa ter os direitos duplamente violados, já que foram encaminhados a essas casas por sofrerem violência familiar. A denúncia de José integra um dos 54 procedimentos administrativos instaurados pelo Ministério Público da Capital para apurar irregularidades nesses abrigos, sendo 13% sobre abuso sexual, 17% maus-tratos e 40% negligência no atendimento. Zero Hora analisou 25 procedimentos, que somam 3,3 mil páginas.
O trabalho do MP é cíclico: enquanto denúncias chegam e motivam novos processos, outras têm as apurações concluídas. De 5 de março de 2014 até 3 de julho de 2015, o órgão concluiu 59 investigações, 32 delas com irregularidades constatadas (54%). Para a promotora da Infância e da Juventude Cinara Vianna Dutra Braga, esse índice mostra que a forma de contratação e capacitação dos funcionários dos abrigos precisa ser revista.
As denúncias são reflexo de uma estrutura que, 25 anos após a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), só funciona no papel. Nas 104 casas existentes em Porto Alegre, a regra que impera, salvo raras exceções, é a do abandono e da falta de comunicação entre os entes responsáveis pelo amparo aos mais de 1,3 mil acolhidos.
Engana-se quem pensa que o diagnóstico é recente. Em 2004, ZH flagrou a rotina no Ingá Brita, abrigo que recebia crianças e adolescentes com pouca possibilidade de serem adotados, de onde os jovens fugiam para consumirem drogas e praticarem pequenos delitos. Após a publicação da reportagem, a prefeitura lançou um projeto de remodelação e extinguiu a casa, que deu origem aos abrigos João-de-Barro e Quero-Quero. Como você verá nos próximos capítulos, pouca coisa mudou desde então.
As denúncias em investigação
— O MP tem 54 procedimentos administrativos para apurar 60 supostas irregularidades, sendo elas: negligência no atendimento (24), maus-tratos (10), abuso sexual (8), estrutura precária (8), falta de funcionários (4) e outras (6).
— 46 procedimentos foram instaurados a partir de 2014, sendo 24 este ano, até o dia 5 de maio.
— Os estupros teriam ocorrido em sete abrigos, e os maus-tratos em 18 das 104 casas da Capital.
— Do total de funcionários, 4% são citados nessas denúncias.
Os caminhos dos procedimentos
— Após concluídas, as sindicâncias são arquivadas por solução — quando há provas e a irregularidade é sanada — ou por inexistência de provas.
— No primeiro caso, as mantenedoras das casas costumam tomar as providências administrativas, como a demissão de funcionários, e por isso poucos processos são levados à Justiça, já que não há suspeita de omissão.
— Quando as denúncias envolvem supostos crimes, os casos são encaminhados às promotorias criminais, que instauram investigações próprias.
Rede de abrigos em Porto Alegre
— A Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), da prefeitura de Porto Alegre, possui 67 abrigos, 55 deles mantidos por meio de convênio com entidades de assistência social.
— Já a Fundação de Proteção Especial (FPE), do governo do Estado, possui 33 casas.
— Outros quatro abrigos são mantidos por organizações não-governamentais.
— As 104 casas abrigam 1.323 crianças e adolescentes.
O acolhimento institucional
— É uma medida para proteger crianças e adolescentes com direitos violados.
— Feita por determinação judicial ou, em caráter de urgência, por requisição do Conselho Tutelar.
— No Brasil, a maioria é acolhida por ser vítima de maus-tratos e abuso sexual.
— Mais de 80% foi abrigada por negligência ou por ter responsáveis dependentes químicos, 77% por abandono, 60% por violência doméstica e 45% por abuso sexual — os percentuais ultrapassam 100% porque várias pessoas foram acolhidas por mais de um motivo.
Fontes: Ministério Público do Estado, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e Conselho Nacional do Ministério Público.
* Os nomes das crianças e adolescentes foram trocados na reportagem, em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Nomes de mantenedores, abrigos e funcionários foram omitidos a pedido do MP, para não atrapalhar as investigações.
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