ara estimular que docentes coloquem todos seus esforços na formação dos alunos, as universidades públicas brasileiras decidiram pagar um extra de até 50% sobre o salário-base. É a chamada Dedicação Exclusiva. E, para garantir que não existam distorções nessa função tão nobre, uma série de regras foram criadas. O artigo 14 do decreto presidencial 94.664 de 1987 estabelece, por exemplo, que o professor da carreira do Magistério Superior submetido à Dedicação Exclusiva tem como obrigação “prestar quarenta horas semanais de trabalho em dois turnos diários completos e impedimento do exercício de outra atividade remunerada, pública ou privada”. Já a lei federal 12.863, promulgada em setembro de 2013, permite atividade extraclasse ao detentor de DE “apenas quando eventual”. O máximo é de 120 horas anuais de trabalho externo (ou 240 quando autorizadas pelos chefes).

Nada disso consegue evitar que, em entidades de ensino superior gaúchas, boa parte do empenho dos professores aconteça longe da sala de aula. Alguns serviços extraclasse não são tão eventuais. Em cursos da UFRGS, professores que possuem DE recebem quantias substanciais realizando projetos ou serviços para grandes empresas. Na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), outros atuam em consultórios particulares.

De exclusiva, a atividade exercida por eles tem muito pouco. Por isso o Ministério Público Federal (MPF) abriu, em dezembro, uma investigação sobre parcerias firmadas pelo Instituto de Geociências da UFRGS. A lista de trabalhos externos desse instituto soma mais de 70 convênios envolvendo variados docentes do curso nos últimos anos. O levantamento é de procuradores da República, que desejam saber se os docentes envolvidos seguem a legislação da DE. Alguns professores trabalham em dois convênios por ano ou até mais: a suspeita é que a eventualidade virou regra.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Serão checados convênios firmados por geólogos como Juliano Kuchle, Claiton Marlon dos Santos Scherer e Paulo Alves de Souza, que desenvolvem vários projetos de forma concomitante com aulas. Cada um deles teve aprovados em 2014 pelo menos dois convênios externos. Em um convênio com a petrolífera BG (British Gas), Kuchle receberá R$ 216 mil; Scherer, R$ 135 mil; e Souza, R$ 116 mil para trabalhar entre 2014 e 2016 no projeto “Estudo Geológico Integrado da Formação Mucuri da Bacia do Espírito Santo”, vinculado à extração do pré-sal. Chamou a atenção do MP que, caso esses docentes trabalhem no total as 156 horas previstas (cada), vão receber em média R$ 1 mil por hora nesse serviço. Isso representaria cerca de 10 vezes mais que a média recebida como professores com Dedicação Exclusiva, que é de R$ 87 por hora de trabalho — conforme cálculo do Sindicato Nacional de Docentes de Ensino Superior (Andes-SN) repassado a Zero Hora.

Não é um caso isolado. Juliano deve receber ainda mais R$ 72 mil por outro projeto aprovado em 2014 e Claiton Scherer, R$ 36 mil, com dezenas de horas trabalhadas, cada. A hora de trabalho deles nesses convênios também equivale a 10 vezes o padrão para a hora de Dedicação Exclusiva no sistema de ensino federal. Já o terceiro autor do projeto da Formação Mucuri, Paulo Alves de Souza (que já vai receber R$ 116 mil por esse trabalho), também conseguiu aprovar outro projeto em 2014.

A Procuradoria da República investiga se, ao ganharem em alguns convênios mais dinheiro fora do que dentro da universidade (proporcionalmente), os professores incorrem em conflito de interesses. Na investigação será analisado se os valores são compatíveis com os serviços, se extrapolam em muito os vencimentos dos professores, se conseguem concluir o serviço com as horas contratadas e se há desvio de função dos docentes. O currículo de Claiton Marlon Scherer, por exemplo, menciona envolvimento dele em pelo menos seis projetos com petrolíferas nos últimos quatro anos – além dos dois aprovados agora. O MPF quer saber se esse tipo de envolvimento permite cumprir as regras de Dedicação Exclusiva à universidade.

O presidente do Andes-SN, Paulo Rizzo (docente da Universidade Federal de Santa Catarina), vê restrições éticas na avalanche de convênios universidade-empresas. Professores que atuam muito fora da academia ensinam menos e pior quando estão desfocados, acredita. Ele não é contra que atuem fora da sala de aula eventualmente, desde que esta exceção não vire regra.

– As universidades produzem conhecimento novo, e não devem vender serviços de saberes já existentes e socializados. Ou os docentes vão competir com os profissionais que formam.

Nas reuniões para aprovação de projetos do Instituto de Geociências há debate interno sobre tamanhos e valores dos convênios. Alguns colegas dos beneficiados são contrários a esses projetos com remuneração externa. Dizem que os trabalhos não são eventuais (exigência para quem tem DE), já que certos projetos ultrapassam 20 meses cada um.

Outros questionam: como fazer as pesquisas de campo – longe da UFRGS, em viagens – e manter as aulas em dia? Os cursos fiscalizam mesmo se a consultoria externa cumpre as horas acertadas no papel ou não? Difícil checar, já que os docentes (mesmo com Dedicação Exclusiva) são dispensados do controle de frequência no Plano de Carreira para a área de Ciência e Tecnologia.

A discussão sobre trabalho externo esconde um debate maior, de fundo ideológico. Uma corrente de professores na UFRGS crê que alguns colegas têm abusado de convênios, bancados por multinacionais, já que a Dedicação Exclusiva pela qual recebem deveria ser suficiente para abraçarem apenas a universidade. Acham que as multinacionais buscam a UFRGS, a peso de ouro, para dar respeitabilidade aos seus projetos.

Outra linha de pesquisadores quer ampliar a interação com empresas. O diretor do Instituto de Geociências, André Mexias, é um dos defensores. Ele garante que seus subordinados cumprem à risca as obrigações em sala de aula, além de trazerem recursos à UFRGS.

– Muitos trabalhos de pesquisa externa pagam melhor, mas os professores são procurados pelas empresas. Desde que não deixem de fazer suas obrigações na UFRGS, OK. Seus projetos passaram por várias instâncias de análise – pondera.

O vice-reitor da UFRGS, Rui Oppermann, defensor convicto de maior interação com empresas, afirma que os valores recebidos pelos professores nesses convênios não podem ser medidos em horas-aula. Isso porque envolvem pesquisa e resultados não mensuráveis com mera presença na universidade.

– Não se pode comparar aula dada com a pesquisa de ponta feita para uma petroleira – rebate.

Mas a interação com o meio privado não é ponto pacífico. O professor Rualdo Menegat, chefe do Departamento de Estratigrafia da Geociências (onde trabalham os professores Juliano, Claiton e Paulo), diz que o debate é grande e afirma que ele, por exemplo, não trabalha fora da UFRGS.

– Sou 100% acadêmico, 100% universidade federal – posiciona-se.

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Humberto Trezzi

(Zero Hora)

Universidade é quem menos lucra

A interação entre o mundo acadêmico e o empresarial, além de mantra dos reitores (por garantir recursos extras e prestígio à universidade pública), virou um complemento na renda de docentes. É o que mostra o levantamento dos projetos de extensão, pesquisa, cooperação e serviços prestados por professores da UFRGS para empresas públicas ou privadas.

Zero Hora analisou uma lista de 98 projetos de interação universidade-empresa realizados em 2014 pela UFRGS. O relatório foi fornecido pela própria universidade, mediante solicitação feita com base na Lei de Acesso à Informação.

Os números indicam que a interação é um bom negócio financeiro. No levantamento repassado pela UFRGS a ZH, esses projetos envolvendo empresas externas somam R$ 26 milhões ao longo de um ano. Os professores ficam com boa parte dos R$ 26 milhões: R$ 4 milhões (17%). O curioso é o percentual que fica para os cofres da universidade: apenas 5%. A UFRGS recebeu R$ 1,27 milhão ao longo de 2014 nos convênios, que incluem a permissão a que seus professores exerçam atividades fora das salas de aula. Já as fundações ligadas à universidade ficaram com R$ 1,1 milhão. O vice-reitor da UFRGS, Rui Oppermann, diz que os 5% da universidade são apenas nominais.

– Esses são os repasses de custeio, mas o ganho real da UFRGS é muito maior. Ganhamos equipamentos, químicos para laboratório, temos divulgação do bom nome da universidade. Os alunos recebem banco de dados riquíssimo oriundo dos convênios, trocam experiências com profissionais em campo. Tudo isso é positivo e imensurável – pondera Oppermann.

E no que, então, foram investidos os outros R$ 18 milhões, que representam a maior parte dos convênios? Em bolsas. A maioria para alunos, mas, em muitos casos, também para professores. Ou seja, professores ganham em duas rubricas.

Os valores dos projetos na UFRGS

Ata de reunião do Conselho do Instituto de Geociências (E) mostra contrariedade com o pagamento em projetos fora da UFRGS

Foto: Omar Freitas

DEDICAÇÃO

POUCO

EXCLUSIVA – UFRGS