O retorno

de Santa

Em um caderno, Santa Enilda Miranda da Silva, 63 anos, listou os itens que a filha Karine deveria comprar no supermercado: arroz, feijão, azeite, bolacha, açúcar. Com as orientações para reabastecer a despensa, a idosa tentava retomar a rotina antes mesmo da alta, ansiosa por deixar o Hospital de Clínicas, onde estava internada havia seis meses. Cultivava aquele que costuma ser um dos desejos mais frequentes entre os convalescentes.

– Quero ir para casa – pediu repetidas vezes.

Na construção humilde de duas peças no topo do Morro da Cruz, em Porto Alegre, Santa planejava voltar a reunir os filhos e os netos no entorno da mesa da cozinha, servindo-lhes o que de melhor sabia preparar – salada de maionese, carreteiro, batata com sardinha. O fastio provocado pela comida do hospital a inspirava a se deter nos pormenores do cardápio que marcaria o retorno.

– Uma salada de tomate e cebola bem feitinha – detalhou para Karine, recreacionista de 27 anos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Vítima de câncer de pulmão e de laringe, a ex-funcionária de uma cooperativa de reforma de roupas usadas adorava conversar, mas tinha dificuldade devido à dor e ao incômodo causado pela traqueostomia (orifício cirúrgico feito no pescoço para facilitar a respiração). O impedimento na fala a obrigava a improvisar, esforçando-se para que as visitas ficassem um pouco mais. Sentada na beira da cama, recorria ao caderno, apoiando-o no colchão, sempre cercada pelos objetos que lhe faziam companhia na internação que parecia infinita: uma Bíblia, folhetos de orações e um terço com a cruz quebrada. Escrevia, gesticulava, meneava a cabeça, movia os lábios sem som. Sorria.

As páginas foram acumulando frações de diálogos com médicos, enfermeiros, parentes, doentes que se revezavam no leito ao lado. “Tem ideia? Passei quase que a noite toda em claro”, reclamou em uma das anotações. A uma provável pergunta sobre como se sentia, respondeu: “Tudo misturado, sono, nervos, sentida”. “Karininha, não estou braba contigo. Te amo. Amo todos vocês”, declarou à filha. “Ir na missa”, outra das vontades da devota de Santo Antônio.

Karine e Antônia Viviane releem os recados escritos pela mãe durante o tempo em que ficou no núcleo.

Na oscilação dos períodos de agravamento e melhora, o tempo se arrastou. Santa recebeu a visita ruidosa dos netos, ouviu as amigas relatando a saudade que a vizinhança sentia. Dependente de um tubo de oxigênio, ela celebrou o aniversário, o Natal e o Ano-Novo hospitalizada. Devido ao agravamento das condições, a possibilidade de uma alta breve, cogitada pela equipe multiprofissional para satisfazer o desejo da paciente, tornou-se cada vez mais remota. Na tentativa de animar a mãe, Sabrine mostrou o certificado de melhor funcionária do mês que recebera no emprego de auxiliar de serviços gerais em um supermercado:

– Trouxe para você ficar feliz.

Delirante nos últimos dias, a idosa acreditou, por instantes, já estar longe do Núcleo de Cuidados Paliativos, para onde foi transferida na etapa final do tratamento. Apontou o frigobar do quarto 975, confundindo-o com o fogão da cozinha de casa.

– Bitinha, pega a galinha no forno – ordenou a Sabrine.

Santa morreu em 21 de fevereiro, sem nunca ter saído à rua depois de 193 dias restrita às dependências do Clínicas.