Os novos brasileiros

Fitas multicoloridas pendem do alto de uma estrutura metálica que suspende um aparelho de TV. No chão, um menino ágil se enrola nos tecidos, esconde-se atrás das cores. Sai em disparada, cruza o cercadinho do berçário, sobe a escadinha do escorregador, desce o brinquedo, volta ao topo e, desta vez, desliza de ponta, tocando o chão com a palma das mãos e, depois, o peito. As tranças rastafári, que delineiam um labirinto no couro cabeludo, esvoaçam. O elétrico garoto é Valdes Esace, de apenas um ano e 10 meses, brasileiro de nascimento e filho de imigrantes haitianos que residem em Encantado.

Valdes está matriculado na Escola Municipal de Educação Infantil Navegantes. Como os pais trabalham cedo, é o primeiro a chegar pela manhã. Permanece lá por dois turnos, com garantia de cuidados, recreação, aprendizado e alimentação completa.

A escola fica no bairro Navegantes, o mais humilde de Encantado, onde moram dezenas de famílias de caribenhos. No início do período migratório, em 2011, os homens vieram sozinhos. Depois, passaram a trazer as mulheres, reunir a família e, como são casais jovens, os filhos começaram a vir. A natalidade cresceu, o que se reflete na procura pelos serviços públicos.

Diretora da Navegantes, Marisa Alexandre Gianesini atende a 32 crianças nos dois berçários. Dez delas, quase um terço, nasceram no Brasil, mas são filhas de haitianos. Outros 10 bebês recém-nascidos, todos descendentes de imigrantes caribenhos, estão na fila de espera por vaga. A diretora acredita que conseguirá acolher dois ou três.

– A aceitação deles é normal. As crianças não distinguem cor de pele, são inocentes – diz Marisa, que relatou ter tido apenas um caso de aluna que estava rejeitando os imigrantes, possivelmente por questões raciais.

O relacionamento com os pais haitianos é bom, conforme a diretora. Ela se entusiasma ao relatar que as contribuições espontâneas à escolinha, que melhoram o funcionamento, estão vindo em maior volume dos imigrantes em comparação aos brasileiros:

– A principal fonte de renda extraordinária vem dos haitianos. Eles são gratos aos cuidados com as crianças e são participativos e comprometidos com a educação.

Em Caxias do Sul, 150 filhos de caribenhos e africanos estão matriculados nas escolas municipais. No caso caxiense, a maioria dos estudantes nasceu no Exterior, antes da jornada à América do Sul.

A pequena Encantado ajuda a ilustrar o aumento da natalidade entre os casais da nova imigração. Em meados de setembro, o posto de saúde do bairro Navegantes fazia 22 procedimentos de pré-natal. De todas essas gestantes, 15 eram haitianas.

Os números de Bento Gonçalves também mostram a evolução. Em 2013, apenas três imigrantes tiveram filhos no Hospital Tachinni, que atende pelo SUS. No ano passado, nove nasceram. Até o final de agosto de 2015, 22 haitianas deram à luz.

Dados do Hospital Santa Terezinha, em Encantado, expõem uma agrura: a mortalidade infantil. Na cidade, em 2014, foram feitos cinco partos em imigrantes, mas dois óbitos ocorreram. Neste ano, dos oito nascimentos, um terminou com o falecimento da criança.

– É um índice alto, é preciso verificar os fatores que levaram a isso. A comunicação com as mães é muito difícil. Elas só falam através dos maridos. Não recebem um agente de saúde em casa se o marido não estiver junto – explica Dorli Diehl, coordenadora de enfermagem do Hospital Santa Terezinha.

A postura submissa da mulher haitiana e senegalesa diante do homem dificulta os atendimentos de saúde. Médicos não conseguem entender o que dizem as pacientes. Não compreendem as dores, os sintomas. Os imigrantes não conseguem explicar o que sentem.

– É uma questão cultural. O pré-natal é muito difícil. Elas não entendem português e não falam. São os maridos que fazem o papel de intérpretes. Eu pergunto, ele fala com a mulher e depois traduz para a gente. Abordar temas íntimos fica muito complicado – relata Cátia Isabel Stieven, coordenadora do posto de saúde do Navegantes.

As haitianas, de fato, sabem pouco ou nada de português. Praticamente não saem de casa, exceto para trabalhar. Não interagem com brasileiros. São os homens que vão às ruas e aprendem o idioma.

– Eles têm tanto medo de nós quanto temos dificuldade em atendê-los. E ainda são desconfiados –detalha Dorli.

Em Porto Alegre, o haitiano Alix Georges, que atua como professor de línguas, organiza com a Secretaria da Saúde o ensino básico do francês e do crioulo (idioma falado no Haiti) a um grupo de médicos e enfermeiros que atendem imigrantes. Isso deverá facilitar a comunicação e a qualidade do diagnóstico. Vindos de um país empobrecido, alguns caribenhos desenvolvem quadros mais graves de doenças devido à falta de tratamento. No caso das mulheres, é um agravante para os períodos de gravidez.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Há um ano, quando ZH foi a Marau para a reportagem Os Novos Imigrantes, Fritz Gerald Casseus estava recebendo o seguro-desemprego. A mulher, Eugenia, dedicava-se a cuidar do filho Mazinho, que, então com um ano, era um dos primeiros descendentes de imigrantes haitianos a nascer na região. Doze meses depois, Casseus está recolocado no mercado, contratado pela Fuga Couros, empresa tradicional de Marau. Mazinho cresceu e se comunica bem em português, mas não fala o crioulo, língua do país natal dos seus pais. Apenas Eugenia estava ausente. Em meados de setembro de 2015, encontrava-se hospitalizada em Passo Fundo, nos dias finais de uma gravidez de risco. O nome do segundo herdeiro brasileiro já havia sido escolhido: Mateus.

Ao ter filhos nascidos no Brasil, os imigrantes podem encaminhar o visto de permanência definitiva. Para quem os acompanha de perto, a maternidade está mais vinculada com o desejo de reconstruir a família que ficou para trás. Como se fosse uma compensação. Também são casais jovens, a maioria na faixa entre 25 e 35 anos, "em fase de procriação", pondera Ivonete Teixeira, voluntária da Paróquia São Pedro, em Encantado.

Especialistas no tema rejeitam discursos de que os caribenhos e africanos estão em número exorbitante no Brasil. E rebatem retóricas agressivas - algumas até xenófobas - de que os imigrantes estão no país sugando empregos e agravando a crise. Um dos dados destacados é que, considerando todas as nacionalidades, vivem no chão brasileiro 1 milhão de estrangeiros. Isso representa 0,48% da população de 210 milhões de habitantes.

– A presença dos imigrantes no Brasil ainda é muito pequena, insignificante. Os principais países receptores têm média de 11% de população estrangeira. Estados Unidos, apesar das críticas, recebe muitos imigrantes. É preciso considerar que o pessoal que está aqui assume trabalhos que os brasileiros não querem assumir. Precisamos dos imigrantes, eles dão uma contribuição valiosa – avalia Gabriela Mezzanotti, professora do curso de Relações Internacionais da Unisinos e coordenadora da Cátedra Sérgio Vieira de Mello, iniciativa da ONU para refugiados.

Fritz Gerald Casseus e Mazinho, de dois anos, seguiam a vida em Marau enquanto a mãe da família, Eugênia, estava internada em Passo Fundo à espera de Mateus, segundo filho do casal

Na Emei Navegantes, em Encantado, dez das 32 crianças do berçários