Acervo de dores e amores
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O memorial construído em 2014 no Hospital Colônia de Itapuã, que por décadas isolou os pacientes gaúchos de hanseníase, guarda histórias de vida comoventes. Algumas delas ligadas a objetos como o vestido de noiva usado pelas moças que se casavam dentro do confinamento

Quando se abre a porta principal do prédio onde viveram as irmãs franciscanas no Hospital Colônia Itapuã, em Viamão, surge um universo muito particular.

Nos ambientes repletos de fotografias e peças preservadas há mais de sete décadas – e transformadas em um memorial há três anos – estão as lembranças dos 2.474 portadores de hanseníase atendidos na instituição desde 1940.

Entre os 3 mil objetos expostos na casa de dois andares, reluz ao fundo do corredor térreo um manequim de vestido branco. Por mais de 20 anos, a roupa bordada em pérolas e rendas ficou guardada dentro de uma mala no pavilhão destinado aos rejeitos. A descoberta da vestimenta ocorreu por acaso pela enfermeira epidemiologista e especialista em leprologia Rita Camello, hoje coordenadora do Patrimônio Histórico e do Memorial Colônia Itapuã.

Ela havia encontrado o vestido de noiva usado por 14 mulheres internas nos casamentos realizados na instituição ao longo de 50 anos.

– Ele surgiu amarelado, quando abri a mala escondida sob outras coisas em desuso. Iniciei uma pesquisa entre os pacientes para saber a quem pertencia, quando conheci uma das histórias mais surpreendentes ocorridas dentro do hospital – recorda Rita, referindo-se à primeira dona da peça, que, no entanto, jamais a vestiu.

Encomendada em 1941 para o casamento de uma jovem de 17 anos que vivia em Uruguaiana, a roupa levou um mês para ser confeccionada. Heidy, nome pelo qual a enfermeira identifica a adolescente do município da Fronteira, queria ser uma princesa no “grande dia”. Ela ainda não sabia que estava com hanseníase.

Duas semanas antes da festa, a filha única de uma família da alta sociedade de Uruguaiana decidiu colher rosas para enfeitar a casa. Foi acumulando as flores com seus respectivos galhos, só se dando conta dos cortes na pele provocados pelos espinhos quando o sangue escorria pela pele e a roupa que usava havia ficado suja.

No antebraço, Heidy ainda percebeu manchas esbranquiçadas – mais claras do que o tom da própria pele. Apesar de não sentir dor, consultou um médico no dia seguinte. E ouviu o que considerou ser a sua sentença de morte: era hanseníase.

Duas horas após o diagnóstico, um carro já a aguardava para conduzi-la à Colônia de Itapuã. A política de profilaxia da lepra, como a doença era conhecida à época, determinava o isolamento dos pacientes. Heidy se despediu apenas dos familiares. Atordoados, os pais da garota decidiram não contar ao futuro genro sobre a doença da filha. Preferiram dizer que ela decidira se tornar freira e havia partido para o enclausuramento.

sempre o mesmo vestido

A igreja de Itapuã e um dos casamentos no local, décadas atrás

– Ela só levou para Itapuã uma foto dos pais, outra do noivo e uma mala da família, contendo o vestido de noiva. As mulheres que foram colegas de quarto dela contaram que muitas vezes ela era vista abraçada ao vestido, em soluços e lágrimas. Muito tímida, não fazia parte dos piqueniques e passeios oferecidos. Heidy viveu só – relata Rita.

Nos sete anos seguintes, o pai dela a visitou apenas duas vezes. Na última, inclusive, comentou que Julio, o ex-noivo da filha, havia se casado com outra mulher, com quem teve filhos gêmeos. Foi quando Heidy decidiu isolar-se ainda mais dentro do quarto que dividia com outras três internas. Na mesma época, uma delas estava se preparando para casar, mas não tinha um vestido. A jovem de Uruguaiana, então, decidiu presenteá-la com o seu – e fez questão de vê-la entrando na Sagrado Coração de Jesus, a igreja católica da comunidade de hansenianos.

Duas semanas depois, vítima de uma hemorragia digestiva, Heidy morreu.

– Foi de tristeza – sentencia Rita.

Outras duas mulheres usaram o vestido naquele ano. A terceira, uma costureira, mudou o molde para servir a noivas de tamanhos distintos. A partir de então, a cada casamento, havia novas alterações. Com o tempo, a peça ganhou fendas, outros bordados e uma cauda. A última moradora a dar entrada na Colônia, em 1985, trajou-o no início da década de 1990. A partir daí, o vestido ficou guardado na mesma mala vinda de Uruguaiana décadas antes.

É em homenagem à Heidy que Rita deu o nome de Sala dos Amores ao ambiente no qual, hoje, além da roupa septuagenária, estão as luvas usadas pelas noivas de Itapuã, estrategicamente confeccionadas para esconder as marcas da doença nas mãos, e também as fotos dos casórios, que eram comemorados com festa na comunidade.

– Aqui está guardada uma recordação de dor, mas também de amor – sintetiza a enfermeira.

Na Sala dos Amores também está a carta redigida a punho pelo pai de um ex-soldado de 22 anos, de Caçapava do Sul. No texto, ele autoriza o filho a casar-se com uma adolescente de 14, também interna: “És ainda o mesmo filho obediente, amorável e submisso. (...) Segue, pois, o teu destino e prepara-te com mais ardor para os combates da vida”. O casal viveu 60 anos junto na colônia, sem rever familiares, e optou por não ter herdeiros.

Histórias como as da carta do soldado de Caçapava e do vestido da jovem de Uruguaiana motivaram a enfermeira a recolher, separar e catalogar todos os objetos sem uso dentro do hospital.

Para entender de onde vinha cada uma das peças, ela ouviu os relatos dos moradores dos 1.253 hectares de terras.

– Conheço as histórias de amor e dor existentes em cada prédio desta colônia. Sou uma das únicas a carregar todas elas comigo – diz.

Funcionária pública, Rita começou em Itapuã como enfermeira. Ela se dedica à instituição há quase duas décadas. No primeiro dia de trabalho, lembra, pensou em desistir. Na época, com pouco conhecimento sobre a enfermidade que ajudaria a tratar, surpreendeu-se depois de perceber a falta de reação de um paciente ao ter retirado do pé um pedaço do osso putrefato.

– Deixei o hospital em lágrimas. Saí repetindo que não queria mais trabalhar naquele lugar, que plantaria milho e capinaria no Interior. Mas meu marido me incentivou a seguir – conta, orgulhosa, a enfermeira que nos anos seguintes estudaria e percorreria outros países visitando leprosários para entender a complexidade da doença.

As histórias dos portadores de hanseníase comoveram Rita. E a motivaram a resgatar as memórias perdidas dos doentes. Ela e o amigo e artista plástico Marco Lucaora criaram o memorial de Itapuã em seis meses. No período, os dois organizaram 16 mil pastas em ordem alfabética com todas as informações dos que adoeceram entre 1905 e 2016 no Rio Grande do Sul.

– Nem os pacientes imaginam que temos todo o histórico de cada um – observa Rita.

Vinte internos sobreviventes

Causada por uma bactéria que ataca os nervos periféricos e a pele, a hanseníase é considerada uma das doenças mais antigas da humanidade, com referências datadas de 600 a.C. Transmitida pelas vias aéreas superiores, por meio de contato próximo, pode levar a incapacidades físicas.

No Brasil, a regulamentação dos leprosários ocorreu na década de 1920, a partir da criação da Inspetoria de Profilaxia e Combate à Lepra e Doenças Venéreas. Até 1950, 33 hospitais-colônia foram erguidos pelo país com ruas calçadas, casas, praças, igrejas, espaço de lazer, delegacia e cemitério. O que diferenciava as chamadas “cidades inventadas” de outras comunidades é que seus moradores eram impedidos de deixá-las. Quem tentasse cruzar o portão na direção da saída acabava detido por sete dias na prisão construída dentro da área destinada aos doentes. As freiras estimulavam o casamento entre os internos como forma de evitar a solidão deles até a morte. Em Itapuã, os encontros entre os namorados ocorriam em frente à igreja católica, na praça Cordeiro de Farias, depois do consentimento das freiras. Para as mulheres que engravidassem, a pena era a separação à força do filho, antes mesmo do primeiro abraço. As 143 crianças nascidas em Itapuã foram enviadas ao Amparo Santa Cruz ou entregues a familiares.

– Certa vez, ouvi uma paciente dizer que este era o único local onde um filho chorava e a mãe não escutava – comenta Rita.

O isolamento dos hansenianos brasileiros vigorou até 1962, quando a doença passou a ser controlada com medicamentos nas Unidades de Saúde dos municípios de residência dos pacientes. Muitos internos de Viamão, porém, decidiram continuar vivendo nas dependências da “área suja”, como identificavam a parte destinada aos pacientes. O governo gaúcho se comprometeu a manter a colônia até a morte do último morador. Hoje, 20 ex-hansenianos vivem na área junto a 52 doentes mentais trazidos do Hospital Psiquiátrico São Pedro.

Os que decidiram seguir em Viamão perderam o vínculo familiar externo e construíram um novo lar ao se mudarem para Itapuã. Mas estão livres. Nenhum deles concede entrevista, pois ainda temem a discriminação que os vitimou décadas atrás.

– Em outros séculos, essa doença foi considerada a moléstia dos mortos em vida e um castigo de Deus. Até por isso, a Igreja Católica teve tanta influência no tratamento. No imaginário ocidental, era a responsável por cuidar dos mortos. Apesar da cura no final do século passado e de todas as campanhas de esclarecimento, há muito desconhecimento por parte da população – acredita a enfermeira.

Rita Camello

O memorial do Hospital Colônia Itapuã surgiu também para esclarecer as dúvidas sobre a hanseníase. É possível conhecer o local aos sábados, com horário agendado na Secretaria Estadual da Saúde e em grupos de até 25 pessoas. É Rita quem organiza os passeios pelo prédio e pela cidade inventada.

Entre as salas visitadas, a dos sapateiros apresenta os moldes experimentados durante todo o período. Por não terem a sensibilidade nas plantas dos pés, os pacientes usavam solado de madeira.

Os que tinham os membros inferiores amputados ganhavam apenas uma parte do sapato encaixada ao tornozelo. Um dos moldes acaba se destacando por ser o menor deles. Ele pertenceu à paciente mais jovem a viver na colônia. A menina chegou sozinha ao local, em 1942, com cinco anos de idade. Contraíra a doença do avô, pois gostava de abraçá-lo. Em Itapuã, as freiras a adotaram. Na juventude, casou-se e teve três filhos. Viveu até os 70 anos.

Percorrer os ambientes do memorial é como voltar àquele passado conhecido apenas por quem viveu atrás dos arames farpados que cercavam o terreno. Há uma sala destinada à pesquisa sobre a doença. Em outra, ficam os utensílios dos trabalhadores do setor agrícola. A saleta das religiões está abarrotada de imagens de santos doados pelos próprios pacientes e também abriga um piano alemão do século 19, repassado por uma das freiras residentes. No refeitório, continuam funcionando as geladeiras trazidas da Alemanha em 1940. Nos banheiros, os azulejos gastos mantêm o tom rosado de quando foram aplicados na primeira metade do século passado.

intimidade : Um cômodo do memorial reconstitui os antigos quartos. No detalhe, a fronha borbada por uma paciente de seis anos

Cada detalhe têm algo a ser contado. No cômodo representando um dos antigos quartos de pacientes, a peça mais emblemática é a fronha de um travesseiro. Bordada à mão por uma interna de seis anos, a capa permanece intacta há sete décadas. A pequena bordadeira, que odiava o sol e detestava flores amarelas por ter chegado a Itapuã usando um vestido dessa cor, bordou no pano branco com traços nas cores rosa e verde uma palavra cujo significado desconhecia. Não sabia ler e escrever quando chegou à instituição.

Na colônia, não existiam escolas. As crianças apenas aprendiam trabalhos manuais para ajudar a passar o tempo.

A menina trabalhou como artesã quando adulta. Desde a chegada de Rita ao hospital, transformou-se em sua confidente. Há sete anos, ela decidiu repassar à enfermeira um presente guardado desde a infância: o travesseiro com a fronha intacta. Antes, porém, pediu a Rita que lhe dissesse o significado do bordado feito quando criança. Para indignação da paciente, o que surpreendeu a enfermeira, a palavra escrita era “felicidade”. O desabafo veio em tom de desencanto. Se soubesse ler, a artesã teria se negado a escrever o único sentimento que jamais vivenciou desde que ingressou no Hospital Colônia Itapuã.

para visitar

O memorial do Hospital Colônia Itapuã recebe grupos de até 25 pessoas, em visitas gratuitas realizadas sempre aos sábados. O agendamento deve ser feito pelo telefone (51) 3240-1393.

TEXTO

Aline Custódio

aline.custodio@diariogaucho.com.br

IMAGENS

Mateus Bruxel

mateus.bruxel@diariogaucho.com.br

EDIÇÃO

Daniel Feix

daniel.feix@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

 

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

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