Ivo Rodrigues, trans de Uruguaiana
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Moradores da cidade guardam a memória de uma das primeiras personalidades transexuais do rio grande do sul

Na Uruguaiana dos anos 1940 e 50, muito antes da popularização de termos como transexual ou drag queen, alguém designado como homem ganhou fama no interior gaúcho ao assumir sua identidade feminina – fato pelo qual ainda hoje é motivo de reverência. Ivo Rodrigues usava vestidos caros e maquiagem vistosa para desfilar ao lado das meninas de seu cabaré em um luxuoso carro puxado a cavalo. O bordel que mantinha em pleno centro da cidade marcou época, e seu túmulo, guardado em um mausoléu cor-de-rosa, virou destino de romarias.

Ivo Rodrigues tornou-se um dos habitantes mais conhecidos da região conciliando em torno de si histórias de esperteza e ingenuidade, violência e afeto, admiração e preconceito. É difícil encontrar alguém que nasceu na cidade antes dos anos 1970 que não tenha conhecido Ivo – pelo menos de longe, nos passeios com suas “guriajinhas” (como ele chamava as “guriazinhas” de sua casa noturna). Figura exótica, dava a impressão de pairar acima dos preconceitos da época.

– Quando estava em seu carro vitória (charrete popular à época, muito usada como táxi), dando voltas pela cidade, não havia quem mexesse com ele. Era também muito bem tratado no comércio. Às vezes, até abriam as lojas fora de hora só para atendê-lo – lembra Daniel Fanti, escritor e historiador amador.

A aparente normalidade com que era visto pelos habitantes da cidade não é totalmente verdadeira. Apesar de conhecido pela sociedade local, não frequentava bares, restaurantes ou outros pontos movimentados – e o fato de lojistas o receberem fora do expediente aponta que muitos evitavam que a freguesia habitual esbarrasse em Ivo ou suas meninas. Até mesmo uma mobilização foi realizada para que seu famoso cabaré, no centro da cidade, abandonasse o endereço. Até foi organizada uma petição por sua mudança, afirma Fanti:

– Nas rádios, diziam que um cabaré naquele lugar era má influência, já que passavam muitas crianças por ali, pois estava no caminho para três educandários. Em frente ao cabaré, morava o coronel Severo Luzardo, pai do embaixador Batista Luzardo, uma pessoa muito conceituada por aqui. Severo se negou a assinar a petição contra o Ivo, pois tudo o que acontecia ali era com as portas fechadas, sem ofender ninguém do lado de fora.

Aí o movimento perdeu força.

Além de histórias pitorescas, pouco se sabe sobre a origem ou o fim de Ivo Rodrigues. Ele teria saído de Itaqui para trabalhar no bordel da cafetina Dorica da Silva, provavelmente nos anos 1920. Alto e corpulento, garantia a segurança e a organização da casa. Quando a dona morreu, herdou a administração.

– Muita gente diz que Ivo nasceu em Itaqui, mas já ouvi relatos de que teria nascido em São Borja e sido expulso de casa porque os pais não aceitavam sua homossexualidade, indo para Itaqui, e finalmente, Uruguaiana – conta Fanti.

GÊNIO DO MARKETING

Nas últimas décadas, as questões trans têm alcançado maior visibilidade pública. Homens que assumem a identidade feminina são também comumente chamados pelo pronome feminino.

Já Ivo, que nasceu antes do termo transexual ser cunhado, vestia-se como mulher e tinha homens como amantes, porém se referia a si com o pronome masculino. Todos o tratavam como “ele”.

– É difícil traçar comparações com o passado, com uma época em que esses temas não eram discutidos. Mas, se Ivo assumia a postura feminina cotidianamente, pode-se dizer que tinha uma identidade trans – afirma o assistente social Guilherme Gomes Ferreira, que pesquisa sexualidade e gênero em doutorado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Seja em Itaqui ou em São Borja, Ivo veio ao mundo em 31 de julho de 1908. E essa data ele não deixou ninguém esquecer. Embora sem estudo formal, Ivo é lembrado como um hábil administrador e marqueteiro.

Poucos dias antes de seu aniversário, mandava duas de suas meninas até a rádio Charrua com um bilhetinho e algum dinheiro. No papel, havia nomes inventados de pessoas que supostamente o cumprimentavam pela data festiva. Com esses anúncios falsos, ele alertava sobre a proximidade da festa. Como consequência, muitos recados de verdade começavam a chegar à rádio, vindo de autoridades e pessoas conhecidas na região, felicitando o aniversariante.

– Ivo era analfabeto, mas entendia como poucos de marketing. Seu aniversário era um dos mais lembrados de Uruguaiana. E os passeios com as meninas novas do cabaré no carro-vitória atiçavam os homens, que iam conhecê-las à noite – conta Chico Alves, jornalista e compositor.

Chico Alves é um dos habitantes que melhor preservam a memória da noite de Uruguaiana das décadas de 1940 e 50. Não que ele fosse exatamente um boêmio à época – nem poderia, pois nasceu apenas em 1952. Mas cresceu ouvindo histórias de noitadas com amores e brigas homéricas, registrados por seu pai, Knelmo Alves, na letra de Recuerdos da 28. Musicada por Chico, a canção foi apresentada na 10ª Califórnia da Canção Nativa, em 1980, e é hoje um clássico do regionalismo gaúcho. A letra fala dos bordéis da antiga Rua 28 de Setembro, atual Dr. Maia, em especial o cabaré da cafetina Porca Rabona, então muito conhecido.

“De vez em quando quando boto a mão nos cobre / Não existe china pobre, nem garçom de cara feia / Eu sou de longe, onde chove e não goteia / Não tenho medo de potro, nem macho que compadreia.

Boleio a perna e vou direto pro retoço / Quanto mais quente o alvoroço, muito mais me sinto afoito / E o chinaredo, que de muito me conhece / Sabe que pedindo desce, meu facão na 28

Remancheio num boteco ali nos trilhos / Enquanto no bebedouro mato a sede do tordilho / Ouço mugindo o barulho da cordeona / E a velha Porca Rabona, repousando no salão / Quem nunca falta é um índio curto e grosso / De apelido Pescoço, de rabona ao querendão”

– Os cabarés da 28 eram frequentados por trabalhadores rurais, gente pobre do campo passava pela cidade. Já o cabaré do Ivo era completamente diferente. Localizado em uma zona central, a umas quatro quadras da praça principal de Uruguaiana, recebia gente como advogados, autoridades e estancieiros – diz o compositor.

Chico se refere ao segundo endereço do cabaré de Ivo, na Rua General Flores da Cunha, próximo à Avenida Presidente Vargas, seu espaço de maior glória. Atualmente desocupado, o casarão costumava ter mais de uma dezena de meninas para recepcionar os convidados, que às vezes passavam de uma centena.

Hoje com 82 anos, Daniel Fanti entrou pela primeira vez no bordel quando era um piá acanhado. Certa noite, sua mãe recebeu a visita de uma vizinha, esposa de um inspetor de polícia, conhecido como um boêmio incorrigível. Ela chorava e reclamava que o marido não voltara de uma noitada. Fanti, 12 anos, foi designado a acompanhar a desesperada senhora até o cabaré. A mulher ficou escondida atrás de uma árvore, enquanto o guri subiu as vetustas escadas de mármore do alpendre. Encontrou o inspetor com outros convidados em uma sala repleta de flores artificiais, dezenas de espelhos e uma miscelânea de bibelôs, lustres, almofadas coloridas e imagens de santos.

– Foi a coisa mais extravagante que eu tinha visto na vida – resume Fanti.

Era o famoso quarto de Ivo. Gente de todo o Estado, mas também da Argentina e do Uruguai, ia até a cidade só para visitar o lugar.

– As pessoas diziam que ir a Uruguaiana e não visitar o quarto do Ivo era como ir a Roma e não visitar o Papa – afirma o compositor e escritor Colmar Duarte, 85 anos.

Conhecido como criador da Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana, Colmar visitou o quarto quando tinha 15 anos. Ivo escondia ali os menores de idade que frequentavam a casa, para evitar problemas em uma eventual batida policial, e oferecia a eles lanches e cigarros.

Colmar registrou na ficção o que viu no cabaré, descrevendo o quarto no romance O Fantasma do Passo do Silvestre, lançado em 2016. Um detalhe chamou a atenção do escritor: apesar de analfabeto, Ivo ostentava um diploma no meio da parafernália de espelhos, imagens de santos e fotos de amantes que compunham as paredes do recinto. Era obra de um piloto da Varig, exímio desenhista, que incluía o bordel na prestigiosa Ordem do Cazzo Alado (algo como Ordem do Caralho Voador, em italiano). O “documento” ainda incluía a ilustração de um falo ereto com asas, suposto brasão da ordem, e as assinaturas do comandante e da tripulação do DC-4 que fazia a rota Rio-Buenos Aires, com escala em Uruguaiana.

– Ivo era realmente analfabeto. Às vezes, quando estávamos no quarto, ele entrava com um maço de dinheiro e perguntava para algum de nós se era suficiente para pagar determinada conta. Se precisava dar troco, ele perguntava se tinha que devolver ao cliente uma “amarela” ou coisa assim. Ele identificava o dinheiro apenas pela cor – lembra Colmar.

Ivo Rodrigues usava vestidos caros e maquiagem vistosa.

NA BASE DO FACÃO

Não saber escrever ou fazer cálculos, mas ser dono do cabaré mais rico da região: eis mais uma das contradições da personalidade de Ivo. Como qualquer dono de bordel, ganhava a vida explorando o corpo das meninas que ali trabalhavam, no entanto, era encarado por elas como uma figura solidária e paternal.

– Ivo era como um pai para nós – afirma Evarista Amar Vieira Pereira, que foi uma das “guriajinhas” do Ivo por quatro anos. – Ele realmente cuidava e se importava com a gente.

Evarista começou a trabalhar na casa ainda adolescente, depois que fugiu de casa, onde sofria maus tratos. Ela conta que o dono do cabaré cuidava para que as meninas não se aproximassem dos vícios. Se algum frequentador oferecesse a elas um uísque, por exemplo, Ivo cobrava pela bebida, mas servia guaraná. Da mesma forma, quando um boêmio apresentava sinais de embriaguez, começava a diluir as doses do sujeito com gelo ou água. O cuidado com as bebedeiras era necessário: na região, não era raro que a noite em um bordel acabasse com briga de tiro ou de faca.

Segundo Evarista, Ivo jamais ameaçou nem foi violento com suas meninas para agradar os visitantes:

– A gente só ficava quem quem queria. Não havia qualquer tipo de pressão nesse sentido.

Mas o dono da boate não era exatamente um pacifista. Quando alguém não queria pagar a conta ou uma rusga estourava, Ivo resolvia a parada na base do facão.

– Ninguém se atrevia a ficar por perto quando ele pegava o facão – lembra Evarista.

Apesar de não haver quem duvidasse da força e da destreza de Ivo com a arma, alguns incautos tentavam levar vantagem. Nesse quesito, os fuzileiros navais eram os mais habilidosos. Havia um grupamento na cidade, com homens vindos principalmente do Rio de Janeiro e do Nordeste. Ávidos por diversão, mas, com soldo curto, eles iam em grupo para o bordel, bebiam, promoviam uma grande farra e, antes de sair, fingiam uma querela entre amigos que tomava proporções de quebra-quebra. No meio da confusão, eram expulsos pelos seguranças ou fugiam sem pagar nada.

– Ivo não gostava dos fuzileiros. Eles faziam confusão e não gastavam. Ele andava pela casa recitando: “Que se vão os fuzileiros e que venham os homens de dinheiro” – diz Evarista.

Gente de dinheiro era quem interessava a Ivo. Era comum que ele desse reprimendas em pessoas das classes mais baixas que ousassem adentrar seu bordel. Daniel Fanti, por exemplo, só voltou mais uma vez ao local depois da aventura aos 12 anos, em uma visita rápida com uma escola de samba.

Colmar Duarte também recorda dos olhos de censura do “homem de saias”:

– Ele tolerava a minha presença porque eu ia como convidado de um amigo rico. Mas fazia questão de me dizer que só não me expulsava porque estava bem acompanhado.

Apesar da aversão à pobreza, Ivo é também reconhecido por atos de benemerência. Costumava distribuir sopão para crianças carentes e, em datas especiais, oferecia brinquedos e refeições especiais. Nessas ocasiões, fazia algo raríssimo em sua rotina: vestia-se com trajes masculinos.

– Ele não se vestia de mulher em respeito às crianças – explica Evarista.

Fanti acredita que Ivo retirou seu bordel do Centro por pressão dos vizinhos. Depois disso, manteve a casa em dois endereços de zonas periféricas de Uruguaiana, nos anos 1960 e 1970.

O bordel perdeu glamour, mas continuou bem frequentado até a morte de Ivo, em 1974, aos 65 anos. A data não é precisa: segundo o atestado de óbito, morreu de infarto do miocárdio em 4 de fevereiro; em seu túmulo está grafado 2 de fevereiro.

Hoje, Ivo Rodrigues dá nome a uma rua na periferia de Uruguaiana, a cerca de cinco quilômetros do Centro. Sua história deu origem a um curta-metragem exibido em 2005 na série Histórias Extraordinárias, da RBS TV. A memória se mantém principalmente por meio de histórias que passam de geração a geração, bem como pelo esforço de documentação de moradores como Colmar, Fanti e o advogado Elpidio Alves da Costa, que guarda em um dos armários de seu escritório, em uma aconchegante e sóbria construção histórica, quadros com imagens do dono de cabaré. Hoje com 57 anos, Elpidio é jovem demais para ter frequentado os bordéis, mas foi graças a ele que pudemos ilustrar esta reportagem com fotos de Ivo.

– Ele personifica a história da noite em Uruguaiana. Era uma pessoa à frente de seu tempo, que precisa ter a memória preservada – diz o advogado.

Figura recoberta de exotismo, bravura e bom coração, Ivo passou a ser cultuado por moradores da região. O mausoléu cor-de-rosa que abriga seu túmulo e de Dorica já recebeu romarias e, em datas especiais, como seu nascimento e o Dia de Finados, ali são depositadas rosas e placas de agradecimento. O espaço remete a seu conhecido quarto: há quadros que ilustram figuras de diferentes tradições religiosas e uma profusão de rosas artificiais. Nem tudo são flores: alguns dos azulejos que recobrem a área externa do mausoléu estão quebrados, e caracteres que identificavam seu nome caíram ou foram arrancados.

Ivo gostava de usar maquiagem e vestidos glamourosos no seu dia a dia.

TEXTO

Alexandre Lucchese

alexandre.lucchese@zerohora.com.br

IMAGENS

Tadeu Vilani

tadeu.vilani@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Ticiano Osório

ticiano.osorio@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

Ivo Rodrigues, trans de Uruguaiana
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Ivo Rodrigues, trans de Uruguaiana

TEXTO

Alexandre Lucchese

alexandre.lucchese@zerohora.com.br