Uma festa com história
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município encravado na fronteira com a Argentina, Berço do nativismo, Uruguaiana tem um dos melhores Carnavais do Brasil. Tudo começou no pós-guerra, com a chegada de Fuzileiros Navais

A maior disputa de Uruguaiana não se dá entre gremistas e colorados. Tampouco entre coxinhas e petralhas. A grande rivalidade do município da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul se estabelece longe dos campos de futebol e das urnas. É nas ruas, mesmo – mais precisamente em uma avenida, a Presidente Vargas. É por ali que desfilam todos os anos os foliões de um dos maiores Carnavais do Brasil.

O Carnaval de Uruguaiana já foi eleito o terceiro maior desfile com escolas de samba do país, atrás apenas de Rio de Janeiro e São Paulo. O dado chama especial atenção por se tratar de um lugar encravado no canto do Estado mais meridional do país, cuja população não passa das 125 mil pessoas.

– Se a gente jogasse o desfile de uma escola de Uruguaiana no Carnaval do Rio, seria um desfile de Série A, entrando para o Grupo Especial – avalia o carnavalesco Davi Gbanna.

Gbanna fala com propriedade: ele é um dos muitos cariocas que prestam serviço para o Carnaval uruguaianense. No Rio, trabalhou com escolas do Grupo Especial, mas, desde os preparativos para o desfile de 2017, tem acompanhado de perto o trabalho na escola Os Rouxinóis. Em 2018, assinará pela primeira vez o desfile – ao lado de Severo Luzardo, talento formado em Uruguaiana. Esse tipo de parceria tem sido usual sobretudo a partir de 2005, quando o município fronteiriço passou a promover a festa fora de época – neste ano, será de 1º a 3 de março, quase três semanas após os desfiles do Rio.

Quem chega da principal cidade carnavalesca do Brasil costuma ficar impressionado com uma característica da folia em Uruguaiana: a rivalidade. Mesmo com o inclemente verão local, ninguém abre as portas dos barracões para o ar dispersar o calor, temendo espionagens de escolas rivais.

– Lá no Rio, a gente trabalha com tudo aberto – diz Gbanna, apontando para as portas cerradas. – Os cariocas visitam os galpões dos concorrentes. Aqui, é diferente. Embora esteja em um nível profissional muito alto, Uruguaiana conseguiu manter esse clima de competição, de as equipes vestirem a camisa da escola de maneira apaixonada. Isso enriquece muito o espetáculo.

RIVALIDADE

As duas tradicionais escolas da cidade: Os Rouxinóis, em foto de 2017 (acima), e a Cova da Onça, em 2014 (abaixo). Neste ano, elas e as outras quatro agremiações do Grupo Especial desfilarão entre 1º e 3 de março.

Os Rouxinóis, atuais campeões do Grupo Especial, são a escola de samba mais antiga da cidade. Fundada em 1953, veio ao mundo antes de algumas tradicionais agremiações do Rio de Janeiro, como a Mocidade Independente de Padre Miguel (1955), a Estácio de Sá (1955) e a Imperatriz Leopoldinense (1959). Em sua trajetória, já arremataram 30 títulos. Mas não conseguiram evitar que, dentro de seus próprios quadros, nascesse aquela que viria a ser sua principal rival: a Unidos da Cova da Onça. Juntas, essas duas escolas têm orçamentos que ultrapassam R$ 900 mil para o desfile de 2018.

O Grupo Especial de Uruguaiana conta com as presenças de outras quatro agremiações: Apoteose do Samba, Imperadores do Sol, Ilha do Marduque e Bambas da Alegria. O espetáculo costuma reunir cerca de 80 mil pessoas por ano.

Apesar de ser reconhecida como berço do nativismo, por ser a sede da Califórnia da Canção, Uruguaiana institucionalizou o samba bem antes da música regionalista.

A Califórnia, inspiração para os demais festivais do gênero, teve sua primeira edição em 1971, quando Os Rouxinóis já haviam alcançado a maioridade, contando 18 Carnavais. César Passarinho (1949-1998), uma das principais vozes da canção regional gaúcha, por exemplo, teve sua formação musical no meio carnavalesco, tornando-se puxador de samba antes de vestir a bombacha para subir em um palco.

A identidade particular do Carnaval de Uruguaiana também é moldada pela presença de foliões e curiosos vindos dos países vizinhos, sobretudo Argentina e Uruguai. Mas o intercâmbio mais intenso se dá com a Região Sudeste, de onde vêm estrelas de projeção nacional – intérpretes como Neguinho da Beija-Flor, Wander Pires e Ito Melodia e passistas como Viviane Araújo, Ângela Bismarchi e Valéria Valenssa marcaram presença em edições recentes. A viabilização da festa se dá pelo investimento de empresários e personalidades locais. Mas nem sempre foi assim. Longe do glamour, essa história toda começou de modo humilde e muito menos pretensiosa.

Discípulos de fuzileiros

Como a maior parte dos municípios do interior gaúcho dos anos 1940, Uruguaiana contava, àquela época, com animados blocos que saíam pelas ruas dançando e esguichando lança-perfume em quem passava – ao menos publicamente, ninguém inalava a droga, que só foi proibida no Brasil em 1961. A festa começou a mudar com a chegada do Corpo de Fuzileiros Navais, em 1947. Para auxiliar na guarda das fronteiras, dezenas de homens do Rio e do Nordeste se estabeleceram na cidade logo após o fim da II Guerra Mundial. Junto com os fuzis e os uniformes vistosos, também trouxeram bagagens culturais distintas e uma enorme disposição para cair na gandaia – nos raros momentos de folga, é claro.

Foram os fuzileiros que levaram os ritmos e a formação de escolas de samba para a fronteira, fundando a primeira delas, a Filhos do Mar, em 1952. Os habitantes da então pequena cidade jamais haviam presenciado coisa parecida. A bateria, forte e com dinâmicas variadas, fazia o ritmo dos blocos soar comparativamente repetitivo ou até monótono.

– A gente enjoou daquela coisa de bloco. Era uma batida só. Começava em um ritmo e ia até o fim do mesmo jeito, para o pessoal ir pulando – lembra Osvaldo Garcia, o Vadico.

remanescente

Hoje com 85 anos, Vadico tinha 20 quando, junto a seis amigos, fundou Os Rouxinóis

Aos 85 anos, Vadico é a única testemunha viva do grupo que fundou a mais tradicional escola de samba do município. Quando jovem, o auxiliar de pedreiro gostava de jogar futebol nos momentos de folga. Em uma pelada, sofreu uma contusão, ficando dias de molho. Era janeiro de 1953 quando resolveu imitar os fuzileiros navais e, junto a seis amigos, montou o primeiro Carnaval d’Os Rouxinóis.

– Queria que pelo menos um ou dois daquela época da fundação estivessem aqui para me ajudar a lembrar dessa história – lamenta.

Ao núcleo inicial somaram-se cerca de 60 amigos para montar uma bateria. Eles se reuniam em um campo, à sombra de eucaliptos, para desvendar os movimentos rítmicos que ouviam em discos vindos do Rio de Janeiro e, é claro, no espetáculo oferecido pelos Filhos do Mar.

– Todos éramos pobres. Eu tinha de fazer bicos como pedreiro, como a maioria do grupo – conta Vadico.

Com a falta de recursos, era preciso usar a criatividade. Latas de 20 litros de tinta, depois de descartadas, tornavam-se surdos, os tambores maiores. As malacachetas eram montadas com sobras de tábuas para acabamento de construções de madeira. As peles que revestem os instrumentos, atualmente confeccionadas em nylon, eram de couro de ovelha, comprado em atacado em um curtume. Já as varetas eram improvisadas com gravetos de pessegueiro e fícus, madeiras preferidas por vibrarem menos.

– Todos os instrumentos eram feitos por nós – orgulha-se Vadico.

Também foi com simplicidade que o nome e as cores da escola foram definidos. “Roxo” lembrava o vinho, bebida mais presente nos ensaios, por isso tornou-se o apelido usado inicialmente pelo grupo. Por sempre manterem um roxo por perto, os integrantes passaram a ser chamados de rouxinóis pelos conhecidos. Vadico, ao topar com uma revista sobre pássaros, deu-se conta de que o rouxinol, como um pássaro cantor, cairia bem como símbolo da escola.

Mas a cor oficial do grupo não foi a roxa. Em uma loja de tecidos, havia chegado há pouco uma fazenda leve e barata. Estava disponível apenas em azul ou verde. A escolhida foi esta última, e pegou: até hoje, Os Rouxinóis mantêm o verde e branco de seus primeiros Carnavais.

O primeiro desfile d’Os Rouxinóis, em 1953, não foi competitivo. Em 1954, Vadico e seus parceiros sagraram-se campeões, superando os Filhos do Mar e os Manda-chuvas da Folia, agremiações hoje extintas.

– Nós éramos todos pobres, mas os ricos passaram a nos apoiar. Eles ficavam faceiros de ver o desfile. Entrávamos no clube principal daqui, puxando o bloco carnavalesco deles. Fazíamos o desfile na avenida, e depois puxávamos o bloco no clube. Tudo no amor. Aí nosso nome foi pegando – recorda o fundador.

Entre apoiadores notáveis, Os Rouxinóis já contaram com o estancieiro Severo Luzardo e sua esposa, Magda, a partir dos anos 1970. Ele se tornou presidente, e ela, carnavalesca da escola. Marido e mulher morreram em 2011 e 2013 respectivamente, mas a família segue envolvida com o Carnaval de Uruguaiana: o filho do casal, também chamado Severo, conhecido como Tuca, formou-se carnavalesco na escola e atualmente assina os desfiles da União da Ilha do Governador, no Rio, além dos de sua agremiação de origem, ao lado de Davi Gbanna.

É um exemplo de algo para Uruguaiana se orgulhar: o município fronteiriço não apenas recebe talentos do centro do país, mas também os forma e os envia para o principal Carnaval do Brasil.

Vadico se afastou da escola: há oito anos, converteu-se evangélico e abandonou os festejos. Sua filha, a manicure Simone Soares, e seu neto, o estudante Arthur Pujol, mantêm a tradição familiar, participando dos desfiles d’Os Rouxinóis.

olhando o tempo

Palhaço  e seus irmãos estão no centro dos episódios que deram origem à Cova da Onça

O cabaré das onças

Nas décadas primeiras do Carnaval uruguaianense, tudo ia bem até 1969. No fim daquele ano, Os Rouxinóis iniciavam a festa de lançamento do samba-enredo em um clube quando uma grande confusão começou. Um ex-sócio do local, que havia sido expulso do clube, estava entre os convidados. Como a festa era da escola da samba, e não do estabelecimento, ele achou que poderia entrar no salão, mas foi barrado. A discussão esquentou e logo descambou para a agressão física. Muita gente saiu ferida, inclusive Sidnei Garcia, então presidente d’Os Rouxinóis, que foi parar na UTI. A festa foi cancelada.

Um clima de incerteza tomou os bastidores da agremiação. Com o presidente entre a vida e a morte em um hospital, os ensaios foram cancelados. Os preparativos só foram retomados quando um grupo se organizou e conseguiu que Flordoaldo Matias, o Pichulim, guardião dos instrumentos da escola, cedesse às pressões e liberasse surdos, caixetas, repiques e chocalhos. O que ele fez sob uma condição: daquele dia em diante, jamais voltaria a sair na avenida com Os Rouxinóis.

– Pichulim e o presidente eram companheiros desde o início d’Os Rouxinóis. Ele saiu da escola em uma atitude de lealdade ao amigo que se recuperava – explica Sérgio Luiz Matias Abreu, o Palhaço, irmão de Pichulim e que seria um dos fundadores da Cova da Onça.

Por conta dessa lealdade, Pichulim arrumou um problema para ele e seus quatro irmãos. Eles formavam um grupo que se apresentava em bailes de Carnaval, com instrumentos da escola tomados de empréstimo. Para cumprir os compromissos assumidos, conseguiram que a escola do Senac emprestasse os seus tambores.

Eram 14 instrumentos, que ficaram espalhados pela casa, despertando a curiosidade de quem passava pela vizinhança. Nas horas de ócio, todos iam para lá tocar, até que um deles propôs que tocassem em um programa de rádio. Alguém sugeriu batizar o grupo de Unidos da Cova da Onça, como era conhecido, informalmente, o bairro em que moravam.

– Naquela área, existia um cabaré que aceitava como moeda a onça. Esse era o dinheiro que eles aceitavam. E o lugar era tipo uma toca. Então era a Cova da Onça – conta Palhaço.

Era para durar apenas uma noite, uma única apresentação na rádio. Mas essa noite já dura quase cinco décadas e rendeu ao grupo 16 títulos no Carnaval de Uruguaiana.

A apresentação empolgou os ouvintes. Ao vivo, os componentes foram questionados a respeito de quem seria o presidente da escola. Brincando, os rapazes disseram que era o jornalista Ubirajara Nolasco – que deve ter se surpreendido ao ouvir.

– Ubirajara nem fazia ideia! Era nosso vizinho e amigo. Como era um programa ouvido por toda a cidade, ele escutou. E se emocionou. Aí já comprou um veludo para fazer um estandarte e se tornou um dos nossos grandes incentivadores – diz Palhaço.

primórdios

Registro dos primeiros Carnavais d’Os Rouxinóis, nos anos 1950: o improviso de fantasias e instrumentos aos poucos dava lugar ao profissionalismo que marca a festa na fronteira

Para angariar os instrumentos definitivos, contaram com a colaboração da banda marcial do Colégio Sant’Ana, tradicional instituição marista da cidade, por cujos bancos passaram figuras com Osvaldo Aranha e João Figueiredo.

– Mas tanto os instrumentos do Senac quanto os do colégio não tinham peles. Eles nos emprestaram sob a condição de que os devolvêssemos com peles – lembra Palhaço.

Até as galinhas da mãe de Palhaço foram vendidas para arrecadar a verba necessária para comprar as peles e pagar os empréstimos.

Um baile – na casa da mãe de Palhaço – também foi organizado com o objetivo de angariar recursos. Sem dinheiro, os integrantes da nova escola mal se fantasiavam – saíam só com uma fita amarrada na cabeça, a qual chamavam de “simonal”, em referência ao conhecido figurino do cantor Wilson Simonal.

Os ensaios da Cova da Onça eram realizados em frente ao Colégio Sant’Anna. Entre os músicos escolhidos a dedo estavam, inclusive, alguns ritmistas dissidentes d’Os Rouxinóis. A bateria da Cova se tornou um sucesso, impulsionando o crescimento da escola.

– A gente saía da cidade, ia para o campo ensaiar os cortes da bateria. Misturávamos ritmos, criávamos na avenida. Bastava nos olharmos para saber o que fazer. Não tinha gurizada, era só gente veterana, que sabia bater. Por isso chamavam a bateria da Cova de arrastão – orgulha-se Palhaço.

raízes

Entre os meninos agachados, à direita da imagem, está o cantor regionalista César Passarinho (1949-1998), que começou a carreira musical no Carnaval de Uruguaiana

O vermelho e o verde

A vontade de superar a rival fortaleceu as agremiações pioneiras – e o Carnaval de Uruguaiana como um todo. Ofuscados, Os Rouxinóis estavam ficando para trás desde a briga que deu origem à Cova da Onça. Já há cinco anos sem título, apresentaram um desfile arrasador. Era 1973, lembra Palhaço:

– Os Rouxinóis foram um esplendor naquele ano. Entraram na avenida e não deixaram dúvida de que ganhariam o Carnaval. Quando saiu o resultado, os ricos que torciam pela Cova foram para a nossa sede e disseram: “Se o problema é dinheiro, vamos solucionar isso”. Ali começou a guerra entre escolas. Contratamos pela primeira vez um figurinista e, no ano seguinte, fomos campeões.

Foi assim que, em 1974, a escola ostentou pela primeira vez as cores pelas quais é conhecida – o vermelho e o branco. Até então, a bandeira da Cova tinha amarelo, verde, azul, vermelho e branco.

– Hoje, tem componente da Cova da Onça que não tem nada verde. Deixou inclusive de comer ervilha – conta Palhaço, sobre a rivalidade com Os Rouxinóis. – Durante muito tempo, o pessoal de uma escola não passava na frente da outra, pois dava briga.

Mas a rivalidade entre as escolas pode ser saudável e produtiva, defende o ritmista e compositor:

– A Cova apanhou muito. Era exibida porque sabia que era boa.

Mas nós só aprendemos a ganhar quando aprendemos a respeitar Os Rouxinóis. A gente gozava deles, mas eles nos ganhavam. Então, nos demos conta de que havia algo errado, de que tínhamos que superar isso.

No ano passado, Os Rouxinóis venceram, deixando a Cova da Onça na segunda posição. Neste ano, espera-se que ambas novamente centralizem a disputa.

– Éramos cinco irmãos vagabundos. Íamos para a sede da escola inventar o que fazer. A gente ia na casa da burguesia convidar as famílias para sair na escola. Muitos negavam, diziam que não estariam aqui, iam para Punta del Este, coisa assim. Hoje, pagam para estar na Cova. Nunca ia imaginar que uma brincadeira nossa daria nisso – recorda Palhaço.

Nem Vadico, apesar de estar afastado da folia, deixa de torcer:

– Todas as classes sociais abraçaram o Carnaval de Uruguaiana, por isso o evento se tornou o que é hoje. Agora, as novas gerações estão chegando e tomando conta. O futuro é tornar o espetáculo cada vez maior.

TEXTO

Alexandre Lucchese

alexandre.lucchese@zerohora.com.br

IMAGENS

Tadeu Vilani

tadeu.vilani@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Daniel Feix

daniel.feix@zerohora.com.br

DESIGN

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

Uma festa com história
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