A noite em que o Morro do Chapéu ardeu
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Em 28 de julho de 1950, um avião Constellation,

da Panair, chocou-se contra uma encosta em Sapucaia do Sul. Esta é a história do maior desastre aéreo em solo gaúcho.

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aldemar Prass, 78 anos, percorre com dificuldade a encosta do Morro do Chapéu, em Sapucaia do Sul, e estende o braço na direção de um matagal localizado alguns metros acima, próximo ao cume:

– Foi bem ali. Lembro direitinho. Parece que é hoje que estou vendo.

É um dia abrasador do verão de 2017, mas a memória transporta Waldemar para a chuvosa noite de 28 de julho de 1950. Depois de uma jornada de trabalho na roça, na propriedade do pai, o menino de 12 anos descansava dentro de casa, à espera do jantar. Teve um sobressalto ao escutar um ronco ensurdecedor. Correu à rua a tempo de ver um avião rasgando o ar rente ao topo dos eucaliptos. À sua passagem, galhos eram arrancados com violência.

– Vai cair! – pressentiu.

Num átimo, diante dos olhos de Waldemar, o Constellation L-049 da companhia Panair espatifou-se contra o morro. Ele ouviu o estrondo, sentiu a terra tremer e viu um fogaréu se levantar. Acabara de testemunhar o maior desastre aéreo registrado até então em território brasileiro.

O pai do menino, Leopoldo, como outros agricultores que lavravam as coxilhas ao redor do maciço, correu em direção às chamas, na esperança de resgatar sobreviventes. Waldemar foi proibido de acompanhá-lo até o local da colisão, a uns três quilômetros de distância. Passou a noite desperto, ao relento, vendo o morro arder.

– Quem é que dormia de noite, agora? Não conseguia dormir, ficava na rua. O povo todo amanheceu ali. Aquilo queimou muito, muito tempo. Nós ficamos olhando. Onde tu caminhavas, vias as sombras, as claridades do fogo – rememora.

Na época, a zona hoje conhecida como Fazenda dos Prazeres não tinha energia elétrica nem telefone. Não havia como avisar do desastre. Mas também não era preciso. O estouro foi ouvido em várias cidades vizinhas, e as labaredas podiam ser avistadas de grandes distâncias. Não demorou para que passassem diante de Waldemar, em direção ao morro, veículos militares de quartéis de São Leopoldo (município ao qual Sapucaia pertencia).

Ao raiar do sol, o local já estava repleto de curiosos, jornalistas e familiares das 50 vítimas. Os parentes dos passageiros desejavam subir à encosta onde se encontravam os destroços, mas a chuva dos dias anteriores e a movimentação durante a madrugada tornaram os caminhos intransitáveis. O pai mandou Waldemar acorrentar uma junta de bois aos automóveis dos forasteiros, para puxá-los em meio ao barral até o morro.

– Ajuda esse povo. Vai levando o que puder. Não é para cobrar nada – orientou.

O menino passou o dia nessa função. A cada vez que descia com os bois, já encontrava outro veículo à espera. Atava o carro à canga e subia mais uma vez. Depois de meia hora de solavancos, os parentes das vítimas desembarcavam na base do morro, no local onde hoje termina a linha de ônibus que atende a Fazenda dos Prazeres, e perfaziam a pé o resto do trajeto.

– Eu levava esse povo, com aquela chuva. Chegava e via os escombros, aqueles braços queimados das pessoas. Os militares tirando os corpos, nem era mais corpo, era pedaço de gente nuns panos. Botando para dentro da condução e levando embora. Eu era uma criança de 12 anos. Eu via aquilo, dava uma dorzinha. A gente fica sentido, muito sentido – evoca Waldemar.

 

Waldemar tinha 12 anos quando viu o avião da Panair explodir.

Depois, ajudou parentes das vítimas a subir a encosta

Avião majestoso e piloto famoso

O voo 099 da Panair estava marcado para a manhã de sexta-feira, 28 de julho. Sairia da Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro, então capital da República. Havia 43 passageiros com assento marcado no Constellation, um majestoso quadrimotor fabricado pela Lockheed. Quase todos gaúchos abastados, voltando de uma temporada de lazer na Cidade Maravilhosa. “A maioria dos passageiros viera ao Rio para aproveitar as férias escolares do presente mês e também para apreciar os jogos da Copa do Mundo”, registrou o Jornal do Brasil. Apenas

12 dias antes, a seleção brasileira havia sido derrotada pelo Uruguai no célebre Maracanazo.

Entre os viajantes, estavam o engenheiro Thucidides Lopes, 43 anos, chefe dos serviços da Barra de Rio Grande, e sua mulher, Teodora Lopes, 34. O casal havia viajado ao Rio de navio e tinha passagem de volta também por mar. Apesar da relutância da esposa, o engenheiro decidira cancelar o bilhete junto à Companhia Costeira e marcara assentos no voo da Panair. Outros tiveram sorte oposta. O famoso general Flores da Cunha, ex-governador gaúcho e deputado federal à época, revelou ter solicitado uma reserva no Constellation, “mas haviam esquecido de atender ao pedido, motivo pelo qual viajou ontem em outro aparelho misto”, de acordo com o jornal A Noite.

O mesmo jornal relatava um outro caso do gênero, sob o título “Escaparam os recém-casados por terem antecipado a viagem”: “Quis a providência que a um jovem casal, ao retornar do Rio, em sua viagem de núpcias, fosse poupada a trágica sorte dos passageiros do Constellation da Panair.

O dr. Ítalo Lazzarotto e sua jovem esposa, Marilia Garcia Lazzarotto, filha do sr. Francisco Garcia, e cujo consórcio se realizou há cerca de um mês, chegaram a comunicar à sua família que viajariam no Constellation e reservaram passagens nesse avião.

Um avião do modelo Constellation, fabricado pela Lockheed

À última hora, porém, desejando chegar mais cedo em casa, tomaram passagem em outro avião”.

Havia ainda o singular caso do senador Salgado Filho, que presidia o PTB e havia sido justamente ministro da Aeronáutica, entre 1941 e 1945. Com estardalhaço, os jornais celebraram a ventura do importante político, candidato ao Piratini: ele viajaria a Porto Alegre no quadrimotor da Panair, mas acabara por acaso fazendo o voo em uma aeronave da Varig, escapando assim a um destino funesto. Dois dias depois, o incrível aconteceu: a caminho de um encontro com Getúlio Vargas em São Borja, Salgado Filho encontrou a morte em outro avião, que bateu em outro morro, no município de São Francisco de Assis.

Além dos 43 passageiros, embarcariam ainda no Constellation sete tripulantes, liderados por uma figura célebre da boemia carioca: Eduardo Martins de Oliveira, 35 anos, o comandante Edu, que em solo era mais conhecido como fundador e líder do Clube dos Cafajestes, um grupo dado a noitadas que incluía gente como o jogador de futebol Heleno de Freitas, o colunista Ibrahim Sued, o playboy Jorginho Guinle e o príncipe Dom João de Orleans e Bragança.

Na viagem até o Rio Grande do Sul, o piloto completaria 10 mil horas de voo. Amigos e colegas de Panair estavam a postos no Rio para uma grande comemoração, assim que ele voltasse. No Carnaval seguinte, Dalva de Oliveira faria sucesso com a marchinha Zum-zum, uma homenagem a Edu: “Zum, zum, zum / Está faltando um / Bateu asas,
foi embora / Não apareceu / Nós vamos sair sem ele / Foi a ordem que ele deu”.

 

O inacabado diário de uma adolescente

Chegou a hora marcada, na manhã do dia 28, mas o Constellation não decolou do Galeão. O voo saiu apenas no meio da tarde, o que foi atribuído a problemas técnicos na aeronave. Por causa disso, o pouso na Base Aérea de Canoas (também referida nos documentos de então como Aeródromo de Gravataí) acabaria por ocorrer somente à noite, com visibilidade prejudicada. Devido ao porte avantajado, o Constellation não podia descer no aeroporto de Porto Alegre, o São João.

Acomodada em uma das poltronas do quadrimotor, acompanhada pelos pais e por irmãos, a adolescente Nora Helena Fernandes, 14 anos, abriu seu diário. A última anotação era da véspera e evidenciava o encanto da menina com os dias passados no Rio: “”Quinta-feira, dia 27 – Foi o dia mais formidável do mundo. Fiz passeios, apreciei pela última vez a maravilhosa viagem que fiz a esta encantadora cidade e aprontei as malas para voltar ao Rio Grande e rever minhas amiguinhas. Estou louca de saudade”.

A centenas de metros de altitude, Nora Helena pôs-se a atualizar o diário. Registrou a data, 28 de julho, e dedicou-se a contar que o avô tentara embarcar com o resto da família no Constellation, mas não conseguira lugar e tivera de permanecer em um hotel carioca. Na sequência, anotou. “Nós acordamos às 6h30min, mas às 7h nos avisaram que o avião só ia sair às 10h. No Galeão, nos deram o aviso que sairíamos às 3h (da tarde)”. A última passagem escrita por Nora Helena ficaria a meio: “Agora são 6h15min e vamos descer em Porto Alegre. Já”

O que aconteceu naquele momento, levando a garota a interromper as anotações, é incerto, mas pode-se imaginar que foi algo de assustador. Sabe-se que, após três horas de voo, o comandante Edu preparou-se para pousar na pista da Base Aérea de Canoas, mas no último instante teve de arremeter. Passados alguns minutos, alinhou-se novamente com a pista para descer. Mais uma vez, abortou o pouso. “As famílias das vítimas que se encontravam no Aeroporto de Gravataí, à espera do aparelho, informam que viram duas tentativas feitas pelo comandante da aeronave para descer, o que não conseguiu devido ao nevoeiro. Depois desses esforços, o avião ganhou de novo altura, dando a impressão de que estava voltando ao Rio de Janeiro”, relatou A Noite.

O mesmo periódico citou problemas de comunicação, informando que o comandante Edu reclamara por rádio, à estação da Panair, a falta de respostas da torre de Gravataí: “Interpelada a torre pela Panair, respondeu a esta que o avião é que não ouvia. Presume-se, pois, desse contato radiofônico frustrado, que existisse algum desarranjo no aparelho de rádio a bordo. Essa parece ter sido a origem da tragédia, que a chuva, o teto baixo e a pouca visibilidade transformaram em destruição e morte”, descreveu o jornal.

Depois da segunda arremetida, o Constellation voou mais 16 quilômetros, até explodir contra o Morro do Chapéu. Arremessado para longe da fuselagem, o diário de Nora Helena foi dos poucos objetos que escaparam às chamas.

Em Porto Alegre, vigília radiofônica

A notícia do acidente espalhou-se ainda na noite de 28 de julho, colocando a população gaúcha em vigília junto aos aparelhos de rádio. Na Rua Fernandes Vieira, no Bom Fim, reduto da comunidade judaica de Porto Alegre, um adolescente de 14 anos, Abrão Aspis, percorria tenso a via pública, ávido por detalhes. Temia-se que uma família vizinha – o ex-presidente do Esporte Clube Cruzeiro Mauricio Zaduchliver, 46 anos, sua mulher Luiza, 42, e a filha do casal, Yedda, 20 – estivesse no Constellation.

– Foi uma noite angustiante. Chovia fraco e havia um pouco de nevoeiro, lá na Fernandes Vieira. Daí saiu a notícia de que um avião que veio do Rio tinha caído. Foi pela rádio. Depois, algum parente informou que os Zaduchliver estavam voltando do Rio, não se sabia em que avião. Fiquei acompanhando na rua. Será que os Zaduchliver estavam no voo? Passado um tempo, veio a confirmação de que estavam. Então a dúvida mudou: será que morreram todos? Será que alguém se salvou? Finalmente, veio a notícia fatal: morreram todos. Foi uma noite terrível, em que não se dormiu em Porto Alegre, todos ali, compartilhando um a dor do outro – relata Abrão, hoje com 80 anos.

O então adolescente ficou tão impressionado com a tragédia, responsável por ceifar o “andar de cima” da sociedade gaúcha, que três décadas depois acabaria por comprar um sítio que abrangia boa parte do Morro do Chapéu, incluindo o local da explosão. Abrão estava à procura de uma propriedade, mas a área em questão, em aclive, não atendia às suas necessidades. Quando o vendedor informou que era o local do desastre, tratou de fechar o negócio.

– Tinha um significado emocional – justifica.

Ser dono da encosta não era suficiente. Abrão queria algum objeto que servisse de recordação do acidente, o que o levou a palmilhar o morro inteiro. Para sua frustração, tudo o que achou foram farrapos de lona, que  julgou serem das poltronas do Constellation. A recompensa veio mais tarde. Um vizinho deu-lhe um cilindro metálico todo amassado, que servia de vaso na casa da mãe, e que seria originalmente um filtro de óleo do quadrimotor. Hoje Abrão exibe a peça na cobertura de seu apartamento, em Porto Alegre. Semanas atrás, ele ficou surpreso quando o fotógrafo de ZH mostrou-lhe que havia uma inscrição enferrujada, algo difícil de ler, no metal: as palavras “Panair”, “Brasil” e “Rio”.

Nos seus tempos de funcionário da Petrobras, ele também costumava organizar expedições ecológicas para explorar o morro. Em uma delas, em 1988, um escoteiro encontrou uma pedra em que parecia estar gravada a pegada de um dinossauro. O achado virou notícia. Abrão concedeu várias entrevistas, uma delas para Lasier Martins, na Rádio Gaúcha.

A dada altura da conversa, ele mencionou que o suposto fóssil havia sido encontrado a apenas 50 metros de onde batera o Constellation responsável por matar 50 pessoas. Lasier perguntou:

– Como esse avião bateu?

Abrão contou no ar aquilo que sempre ouvira dizer: que a culpa havia sido da chuva e do nevoeiro. No final das contas, um especialista italiano veio examinar a pedra e concluiu que não se tratava de um fóssil, mas sim de arte rupestre produzida por indígenas que viveram na área do morro.

Apesar de enganosa, a história do dinossauro acabou por produzir consequências inesperadas. Alguns dias depois da entrevista à Rádio Gaúcha, Abrão recebeu um envelope na Petrobras. Era uma carta com quatro folhas datilografadas, enviada de Balneário Camboriú (SC) e datada de 25 de agosto de 1988. O remetente se apresentava como Ney Barros e dizia ter sido o controlador de voo que estava no comando na noite em que o Constellation caiu.

Atônito, Abrão deparou com um relato detalhado que desmentia o que acreditava serem as causas do acidente. Na missiva, enviada quase 40 anos depois dos fatos, Barros dizia que as afirmações feitas por Abrão na rádio não correspondiam ao que realmente acontecera e admitia ter parcela de culpa na tragédia.

– Isso foi um soco no estômago, ele confessar que tinha parte de culpa naquele acidente. É chocante ou não é? O que pensar de um cara que depois de tantos anos chega e diz: eu tive parte de culpa naquele acidente? Ele levou esses anos todos para contar isso. Todo mundo dizia que as causas da tragédia eram o nevoeiro e a chuva. Mas a história é muito mentirosa. Ela se baseia na mentira e no engodo, dizia Max Nordau. E é isso mesmo. Os fatos que a gente sabe são falsos – sustenta Abrão.

Neste mês de março, o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), subordinado ao Comando da Aeronáutica, localizou e enviou a Zero Hora uma cópia do relatório oficial sobre o acidente do Morro do Chapéu. Datado de 29 de agosto de 1950, o documento tem 10 páginas e é assinado por cinco militares da comissão montada à época pelo Ministério da Aeronáutica para apurar as causas do desastre.

 

Abrão Aspis chegou a comprar um sítio que abrangia o local do acidente

e guarda em casa um filtro de óleo do quadrimotor da Panair

Segundo o relatório, o Constellation matrícula PP-PCG decolou do Galeão às 15h30min, abastecido com 2,8 mil galões de gasolina, o suficiente para uma autonomia de seis horas – o dobro do necessário. A previsão de chegada era 18h30min, com chuva intermitente e visibilidade de seis quilômetros em Gravataí. A aeronave decolou com 39.759 quilos, abaixo dos 40.520 quilos autorizados. O plano de voo previa uma altitude de 4,8 mil metros. No documento, não há menção ao atraso na partida.

Às 18h15min, a tripulação entrou em contato com Porto Alegre pelo rádio e pediu autorização para reduzir a altitude, por encontrar-se a 27 minutos do destino. Informou o posicionamento a 3,3 mil metros, 2,7 mil, 2,4 mil, 2,1 mil, 1,8 mil e 1,5 mil. Às 18h55min, voava a 900 metros. Às 18h58min, 600. Nesse momento, ainda segundo o informe oficial, a tripulação contatou a torre de Porto Alegre e “pediu para passar a frequência de Gravataí, visto estar com referências visuais do terreno”.

Cinco minutos depois, a 300 metros de altitude, a cabine comunicou-se de novo com a Capital, para informar que não conseguia contato com Gravataí, apesar de várias tentativas. Um novo contato foi feito às 19h9min: era a equipe do Constellation afirmando não enxergar as luzes da pista. Passados mais seis minutos, durante os quais a aeronave sobrevoou a área, veio da cabine a confirmação de que a pista havia sido avistada. O piloto desceu a menos de 200 metros e obteve autorização para pouso.

Ao fazer a aproximação, teria percebido “bruma ou nevoeiro fraco”. “Apagando os faróis, fez nova curva à esquerda e tentou outra aproximação, o que não deu resultado, visto ter encontrado bruma novamente”, diz o documento. Às 19h18min, foi enviada do quadrimotor uma mensagem ao rádio da Panair: “Sem contato torre de Gravataí e sem gôni (equipamento de navegação)”.

Segundo o relatório da Aeronáutica, como não sabia a situação na pista de Gravataí, por falta de contato com a torre, só restava ao comandante iniciar uma subida, com auxilio do gônio. “Por motivos ignorados, foram perdidos alguns instantes, até que o PCG iniciasse a sua subida, e esse atraso de aproximadamente um para dois minutos contribuiu para que a aeronave fosse deslocada para o setor nordeste de Canoas e, assim, quando iniciou a subida, estava muito próximo do Morro das Cabras” (outro nome para o local do acidente).

De acordo com o relato oficial, a colisão ocorreu entre 19h24min e 19h25min, sete metros abaixo do pico – 36 minutos depois de o comandante Edu completar 10 mil horas de voo. Com 1,9 mil galões de gasolina nos tanques, o avião explodiu e pegou fogo.

Segundo a comissão que investigou o acidente, deveria ser classificado como “falha pessoal”, ainda que fossem “desconhecidas as causas que o motivaram”. Ao mesmo tempo, afirma que o atraso na subida até uma altura de segurança pode ter sido provocado pelo mau funcionamento do gônio, “pois somente com o auxílio de um desses poderia o comandante dirigir-se para Porto Alegre”. O relatório também constata que, durante o procedimento de pouso, a torre de Gravataí estava em pane em virtude de avaria num microfone e num pré-amplificador, o que classifica como uma causa indireta do desastre, junto com a iluminação insuficiente da pista e problemas no sistema de comunicação por rádio.

Cilindro que sobrou do avião traz as inscrições "Panair", "Brasil" e "Rio"

A surpreendente carta do controlador de voo

Dias atrás, vasculhando arquivos, Abrão Aspis localizou em seu apartamento a carta datilografada datada de agosto de 1988 que traz, ao pé da última folha, a assinatura manuscrita de Ney M. de Barros. O relato feito ali oferece uma série de detalhes nunca registrados oficialmente e que, se forem verdadeiros, lançam mais luz sobre a tragédia do Morro do Chapéu. “A verdade total jamais foi esclarecida, mas uma boa parte é do meu conhecimento, porque era eu o controlador de voo em serviço no Aeroporto São João (que antecedeu o atual Salgado Filho) naquele fatídico dia”, escreve Barros. Ele conta no documento que a torre funcionava das 5h às 19h, uma vez que o São João não dispunha de iluminação noturna. Aeronaves da Varig pousavam após o pôr-do-sol, relata ele, mas apenas porque funcionários da companhia improvisavam lampiões de querosene ao longo da pista. Já o Aeródromo de Gravataí contava com “balizamento elétrico”. A orientação dos pilotos que lá desciam, no entanto, era feita até quase o último momento a partir de Porto Alegre.

Segundo Barros, os problemas envolvendo o voo da Panair começaram quando o colega que estava de serviço com ele na torre, muito mais experiente, resolveu ir embora antes do horário: “Na torre de controle do aeroporto São João, dois controladores estavam de serviço, ambos civis. Um veterano e outro com seis meses em Porto Alegre, apto apenas para operar em condições visuais, vindo do Nordeste, Natal, onde não se sabia ao certo o que era chuva e condições que configurassem voos por instrumento. O veterano correu os olhos pelo fichário: três aviões. Dois DC-3 para o São João, um da Varig, outro da Aerovias Brasil. A eficiente Varig já começava a distribuir os lampiões pela pista para seu avião e, por camaradagem, para o pouso do avião da concorrente. O Constellation, pelo seu porte, pousaria na pista concretada de Gravataí. O controlador antigo usou velho golpe. ‘Tudo contigo, tá?’ Disse que tinha uma coisa lá por fazer, precisava sair mais cedo. (...) O novato, controlador inexperiente, apto apenas para operações visuais, era eu”.

Na carta atribuída a Ney Barros são feitas afirmações difíceis de comprovar. Diz ele que tinha sido necessário curar de um “porre” o boêmio comandante Edu, para que ele pilotasse o Constellation – o que poderia ter sido a causa do atraso do voo. Afirma também que Edu e o copiloto não se davam bem, e que os dois não se comunicavam com a torre do São João pelo rádio. O contato era feito por intermédio de outro tripulante da aeronave. “Quem falava comigo através da fonia terra-avião era o telegrafista. Como sabia eu? Ora, o telegrafista ao final de cada QSO (contato) pedia que aguardasse. Ia ao comandante, falava com ele, e vinha com a resposta.”

– Isso era um erro medonho, porque atrasava as informações – interpreta Abrão Aspis.

Conforme Barros, depois de receber autorização para a descida do centro de controle, localizado no atual Salgado Filho, a aeronave passou para a sua frequência: “O quadrimotor ia pousar em Gravataí, nas quem o orientaria até 600 metros e, depois, até a reta final da pista 13 daquela Base Aérea era eu, um controlador postado em outro local, muito distante”.

Carta datilografada por Ney M. Barros, controlador de voo no Aeroporto São João, em Porto Alegre, à época do acidente

Só então, acrescenta ele, a aeronave era orientada a mudar a frequência para a torre de Gravataí, o que significaria ter apenas de um minuto a um minuto e meio para receber as instruções finais de pouso. “O controlador de Gravataí teria que autorizar e dar as instruções de vento de superfície, condições de visibilidade, ajuste para o altímetro e alguma outra complementar. Tudo em 60 segundos, e o quadrimotor descendo em rampa, aproando a pista de concreto, já a 100 metros de altura, e responder se tinha compreendido. Por uma estúpida tradição, os comandantes da Panair do Brasil, então tidos como a aristocracia da pilotagem, não falavam diretamente com as torres.” Barros não menciona problemas de comunicação em Gravataí, citados pelo relatório do Ministério da Aeronáutica sobre o acidente.

Acontece que, no momento em que alinhava com a pista, acrescenta Barros, o piloto do Constellation deparava com um fenômeno conhecido como “nevoeiro de advecção” – uma névoa que se levantava na vertical junto a um valo cheio de água que ocupava mais ou menos o local onde hoje corre a BR-116. Sem enxergar momentaneamente a pista por causa dessa neblina, arremetia no último instante. A solução seria fazer o pouso no sentido inverso da pista, evitando o nevoeiro. O autor da carta afirma que Gravataí não deu autorização para que esse procedimento fosse realizado.

– De longe, do alto, o comandante via a pista, sinalizada, com luz acesa, mas quando ele baixava não conseguia mais ver por causa do nevoeiro – comenta Abrão. – O caso é que quando soube disso, quando o piloto informou que perdia a visão ao se aproximar, o Ney Barros viu que a solução natural seria pousar no sentido inverso. Ocorre que o controlador que estava na Base Aérea de Canoas havia sido punido recentemente, porque cometera uma liberalidade, e não concordou. Era um cara experiente, enquanto Ney Barros só tinha 25 anos. Embora ele pudesse ter dado uma ordem, sentiu-se intimidado. O grave mesmo, a culpa que o Ney Barros tinha, era por não ter dado essa ordem de pouso na pista contrária – defende.

A conclusão apresentada na carta é que a tragédia ocorreu por uma série de falhas. “Em minha vivência nunca assisti a um somatório de erros e fatos para culminar na morte daquelas pessoas. Elas foram reunidas num sarcófago de alumínio, um avião perfeito tecnicamente com seus quatro motores em maravilhosa sincronia. Não tinha que bater e bateu. Edu não poderia errar e errou. Erramos nós, eu no São João e outro controlador no aeroporto de Gravataí. Os procedimentos de aterrisagem adotados naquela época eram absurdamente errados, porque perigosos. O ranço militar do esquema parecia relegar a aviação civil para um segundo plano. Era a incompetência estabelecida, oficializada”, diz a carta.

Ney M. Barros na redação de Zero Hora, onde escrevia uma crônica, Romance Policial, entre os anos 1960 e 1970

Depois de ler as quatro páginas, Abrão Aspis diz ter escrito uma carta para pedir mais detalhes a Barros. A troca de correspondência logo deu lugar a uma série de viagens a Balneário Camboriú, onde o funcionário da Petrobras conta ter visitado Barros e realizado uma série de entrevistas com ele, com a ideia de preparar um livro. Nessas conversas, Abrão teria coletado dados e pormenores que não constam da carta original.

Após a morte de Barros, ele seguiu em frente nas pesquisas. Afirma ter entrevistado várias testemunhas do acidente ao longo de um período de 15 anos:

– O depoimento que mais me impressionou foi o de um morador que ouviu a explosão e correu para ver se salvava alguém. Ele disse que passou pelo corpo de uma mulher, no topo do morro, e que ela estava muito bem vestida, com joias. Como estava morta, foi mais adiante procurar vivos. Ao voltar, viu que essa senhora já estava sem as joias.

Em 2007, quase duas décadas depois da carta, Abrão publicou o livro Acidente no Morro do Chapéu, que dedicou a Ney Barros. Curiosamente, trata-se de um relato ficcionalizado da tragédia. Barros é o personagem principal, sob o nome de Nélio Borges.

– Como escritor, achei muito mais emocionante fazer ficção. Relatório é chato. Sou romancista, então fiz um romance. Mas os fatos são reais –  diz Abrão.

O escritor contou a ZH que, apesar de não conhecê-lo, sabia que Barros tinha um filho, advogado. Depois de algum tempo, puxando pela memória, disse acreditar que ele se chamava Oscar e que trabalhava como procurador de um órgão federal. Com base nessas informações, ZH localizou Oscar José Tomasoni Monteiro de Barros, 60 anos, procurador aposentado do INSS, residente em Porto Alegre.

O contato, por telefone, surpreendeu o filho de Ney Barros – ele não sabia da existência da carta, de Abrão ou do livro sobre o pai:

– Ele fez alguns comentários comigo sobre aquele acidente, mas já faz muito tempo. Não tenho lembranças. O que eu lembro é que estive algumas vezes com ele na torre de controle do Salgado Filho.

A conversa com Oscar acrescentou informações. Ney Monteiro de Barros era carioca e nascera em 1925. Morreu em 1992, em Balneário Camboriú. Conciliara durante vários anos as funções no aeroporto com a profissão de jornalista, exercida em Zero Hora. Uma consulta aos arquivos do jornal revelou a existência de fotografias dele e de várias crônicas de sua autoria, publicadas entre o final dos anos 1960 e o começo dos anos 70, sob o título Romance Policial.

Morro do Chapéu não conta com qualquer tipo de homenagem às vítimas

Terreno despido de lembranças

Ainda hoje, é necessário percorrer um extenso trajeto por estrada de terra para chegar ao Morro do Chapéu. Trata-se de uma zona bucólica, uma verdejante área rural encravada entre municípios populosos da Região Metropolitana. Quando se chega ao maciço, agora isolado por uma cerca, descobre-se que não há por lá qualquer placa ou monumento que homenageie as vítimas ou faça alusão à tragédia.

A área já não pertence a Abrão Aspis. Ele precisou vendê-la, em 2011, para custear despesas médicas da mulher, que morreu logo depois.

No alto, a poucos passos de onde o Constellation incendiou, estão instalações de uma emissora de rádio. Mais abaixo, vive a família de Luciane Machado, 36 anos, dona de uma funerária em Sapucaia do Sul. Luciane diz ter comprado o sítio com sete hectares porque, como a filha compete no Freio de Ouro, necessitava de um local onde manter os cavalos. Só quando fez o negócio soube que ali havia acontecido um dos maiores desastres da aviação brasileira. Vez por outra, ela sobe até o alto do morro e percorre trilhas que considera belíssimas.

– Todo mundo fala: “Como é que vocês podem morar num lugar assim?”. Falam até que o local é assombrado. Imagina! Nunca vimos nada. Às vezes vêm curiosos, pessoas que querem subir no morro, fazer rapel. Mas nunca ouvi ninguém dizer que veio por causa do acidente. Vêm porque é lindo – comenta.

Waldemar Prass foi orientado pelo pai a não cobrar nada para ajudar os parentes das vítimas, mas diz que nunca ganhou tanto dinheiro como no dia posterior à tragédia, quando puxava automóveis morro acima com uma junta de bois. Ele explicava às pessoas que o serviço não custava nada, mas elas insistiam em oferecer algum valor.

Na época, ele falava menos o português do que o alemão, idioma predominante nas colônias ao pé do Morro do Chapéu, onde se plantava milho, aipim e mandioca, depois transformada em farinha nas atafonas de São Leopoldo. De vez em quando, o menino fazia o longo trajeto até o Rio dos Sinos, em carro de boi, para pescar.

– Sapucaia era só maricá – rememora.

Durante alguns dias, essa rotina tranquila foi convulsionada pelo acidente. Mas depois os forasteiros foram embora e restou o trauma dos moradores.

Por muito tempo, sempre que um avião sobrevoava os roçados, Waldemar ficava alerta, cuidando, achando que ele fosse cair.

Agora aposentado de uma vida inteira como produtor rural, ele ainda habita os 12 hectares e meio que foram do pai. Os lampiões de outrora deram lugar às lâmpadas elétricas, mas a água ainda é de uma vertente na rocha, que ele próprio canalizou. Uma vez teve um celular, mas nunca havia sinal, então desistiu desse luxo.

Em quase oito décadas de vida, nunca entrou em um avião, nem pretende fazê-lo. Admite ter medo. Mas não consegue tirar o Constellation da cabeça, mesmo depois de tantos anos.

– Não passa um dia sem que eu me lembre. Enquanto tiver vida, vou lembrar. Ficou um sentimento muito... Não é agradável. Mas aconteceu. Foi bem ali. Lembro direitinho.

IMAGENS

Carlos Macedo

carlos.macedo@zerohora.com.br

TEXTO

Itamar Melo

itamar.melo@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Ticiano Osório

ticiano.osorio@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

A noite em que o Morro do Chapéu ardeu
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A noite em que o Morro do Chapéu ardeu

Waldemar Prass, 78 anos, percorre com dificuldade a encosta do Morro do Chapéu, em Sapucaia do Sul, e estende o braço na direção de um matagal localizado alguns metros acima, próximo ao cume:

– Foi bem ali. Lembro direitinho. Parece que é hoje que estou vendo.

É um dia abrasador do verão de 2017, mas a memória transporta Waldemar para a chuvosa noite de 28 de julho de 1950. Depois de uma jornada de trabalho na roça, na propriedade do pai, o menino de 12 anos descansava dentro de casa, à espera do jantar. Teve um sobressalto ao escutar um ronco ensurdecedor. Correu à rua a tempo de ver um avião rasgando o ar rente ao topo dos eucaliptos. À sua passagem, galhos eram arrancados com violência.

– Vai cair! – pressentiu.

Num átimo, diante dos olhos de Waldemar, o Constellation L-049 da companhia Panair espatifou-se contra o morro. Ele ouviu o estrondo, sentiu a terra tremer e viu um fogaréu se levantar. Acabara de testemunhar o maior desastre aéreo registrado até então em território brasileiro.

O pai do menino, Leopoldo, como outros agricultores que lavravam as coxilhas ao redor do maciço, correu em direção às chamas, na esperança de resgatar sobreviventes. Waldemar foi proibido de acompanhá-lo até o local da colisão, a uns três quilômetros de distância. Passou a noite desperto, ao relento, vendo o morro arder.

– Quem é que dormia de noite, agora? Não conseguia dormir, ficava na rua. O povo todo amanheceu ali. Aquilo queimou muito, muito tempo. Nós ficamos olhando. Onde tu caminhavas, vias as sombras, as claridades do fogo – rememora.

Na época, a zona hoje conhecida como Fazenda dos Prazeres não tinha energia elétrica nem telefone. Não havia como avisar do desastre. Mas também não era preciso. O estouro foi ouvido em várias cidades vizinhas, e as labaredas podiam ser avistadas de grandes distâncias. Não demorou para que passassem diante de Waldemar, em direção ao morro, veículos militares de quartéis de São Leopoldo (município ao qual Sapucaia pertencia).

Ao raiar do sol, o local já estava repleto de curiosos, jornalistas e familiares das 50 vítimas. Os parentes dos passageiros desejavam subir à encosta onde se encontravam os destroços, mas a chuva dos dias anteriores e a movimentação durante a madrugada tornaram os caminhos intransitáveis. O pai mandou Waldemar acorrentar uma junta de bois aos automóveis dos forasteiros, para puxá-los em meio ao barral até o morro.

– Ajuda esse povo. Vai levando o que puder. Não é para cobrar nada – orientou.

O menino passou o dia nessa função. A cada vez que descia com os bois, já encontrava outro veículo à espera. Atava o carro à canga e subia mais uma vez. Depois de meia hora de solavancos, os parentes das vítimas desembarcavam na base do morro, no local onde hoje termina a linha de ônibus que atende a Fazenda dos Prazeres, e perfaziam a pé o resto do trajeto.

– Eu levava esse povo, com aquela chuva. Chegava e via os escombros, aqueles braços queimados das pessoas. Os militares tirando os corpos, nem era mais corpo, era pedaço de gente nuns panos. Botando para dentro da condução e levando embora. Eu era uma criança de 12 anos. Eu via aquilo, dava uma dorzinha. A gente fica sentido, muito sentido – evoca Waldemar.