Os guerreiros medievais de São Chico
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Moradores de Cazuza Ferreira, distrito de São Francisco de Paula, mantêm viva a tradição das cavalhadas, que reencenam os combates entre cristãos e mouros na Europa da Idade Média

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edro Renau Cardoso veste a farda azul, embainha a espada e carrega os dois canos da velha garrucha. Está pronto para mais uma batalha. E não se trata da guerra que está prestes a encenar em praça pública. O inimigo que o septuagenário homem do campo enfrenta há décadas, com golpes de lâmina cega e tiros de festim, é o esquecimento.

Aos 77 anos, Pedro Renau luta desde a adolescência para manter em sua comunidade, o pequeno distrito de Cazuza Ferreira, em São Francisco de Paula, a tradição quase extinta das cavalhadas. Populares em Portugal a partir do século 15, os festejos reproduzem os enfrentamentos entre cristãos e mouros na Idade Média. O espetáculo já teve seus tempos áureos, ganhando o mundo na medida em que os portugueses criavam suas colônias. No Rio Grande do Sul, houve larga adesão e cavaleiros como Bento Gonçalves, o general Netto e David Canabarro. Na maior parte dos lugares, no entanto, as celebrações não sobreviveram ao tempo – em Porto Alegre, a última foi registrada em 1897. Hoje, a tradição é mantida no Brasil em raras localidades, como Pirenópolis (GO), Poconé (MT), Tavares do Sul (RS) e Cazuza Ferreira, que no fim de semana passado realizou a 11ª Festa das Cavalhadas.

As cavalhadas existem em Cazuza desde antes de o distrito ganhar o nome atual, homenagem ao doador das terras para a construção da vila, José Ferreira de Castilhos – ou Cazuza, para os íntimos. Os primeiros registros das batalhas datam de 1885, quando a comunidade ainda se chamava Capela do Lajeado, mas é possível que tenham começado antes – os colonos chegaram nos anos 1840.

Não deve ter sido fácil para aqueles homens e mulheres pisarem lá. Até hoje o acesso é complicado. A vila fica a 114 quilômetros do centro de São Chico e a 72 de Caxias do Sul, sendo que quase 30 são de estrada de chão, às vezes bastante estreita e enlameada. Ao chegar, o visitante depara com algumas dezenas de casas em torno de uma praça. O número de habitantes não passa de 300 no pequeno núcleo urbano, mas o distrito tem mais cerca de mil moradores espalhados por suas terras. Nem sempre foi assim: Cazuza já contou com 6 mil habitantes nos anos 1960, sendo um pequeno polo para os distritos próximos, contando inclusive com um cinema de dar inveja aos citadinos de São Francisco de Paula. Atualmente a sala do Cine Serrano, desativado em 1968, serve como depósito de roupas usadas para brechós comunitários.

Uma pequena caminhada em torno da praça, um extenso terreno baldio sem gramado, basta para entender que o esforço dos habitantes é fundamental para manter não apenas as cavalhadas – se não fosse a obstinação deles em permanecer onde suas famílias se constituíram, a própria Cazuza Ferreira também desapareceria.

Guerra e paz: cavaleiros simulam batalha entre cristãos, de azul, e mouros. Abaixo, na igreja, reencenam a conversão de Floripa

O TEATRO DA GUERRA

 

O enredo da cavalhada, que costuma durar um dia, poderia ser classificado como politicamente incorreto. Pela manhã, o “espia”, um muçulmano infiltrado entre os 12 pares de França, tropa do imperador Carlos Magno, é assassinado em frente ao público, o que deflagra a guerra. A partir de então, os cavaleiros fazem diferentes movimentos sincronizados, algumas vezes em grupo, outras em pares, simbolizando provocações e escaramuças.

A mando do imperador francês, o cavaleiro Oliveiras tenta convencer Ferrabrás – personagem ficcional, que teria roubado relíquias de Roma no século 8 – e seu grupo islamita a se converterem ao cristianismo. Com a negativa de Ferrabrás, Oliveiras não titubeia: em uma época na qual não se falava em tolerância religiosa, jura a morte do infiel.

Os enfrentamentos seguem tensos até que Floripa, moura apaixonada por um cristão, é raptada pelos pares de França (o nome da jovem deve ser corruptela de Floripes, irmã de Ferrabrás nas lendas medievais). É ela quem passa informações importantes para a derrota dos mouros. Cercados, eles precisam entregar suas armas e são forçados à conversão. Floripa é então batizada em uma encenação na igreja da vila. Assim, acabam os festejos da manhã.

À tarde, a cavalhada segue com exercícios esportivos sobre o cavalo. Com lanças, espadas e garruchas, os cavaleiros derrubam as “cabeças”, objetos que representam a face do inimigo – neste ano, uma embalagem de Nescau e um latão de Kaiser, este devidamente esvaziado por um dos competidores durante o almoço. Há também a captura de argolas com lança, que não foi realizada no último final de semana por conta do adiantado da hora. À noite, tem jantar e baile de confraternização.

Apesar de encenaram com esforço a perseguição e a conversão forçada de infiéis, os habitantes de Cazuza Ferreira não são fanáticos religiosos. Longe disso. Pedro Renau jamais refletiu com seriedade sobre o enredo que dramatiza desde os 15 anos:

– Isso eu não sei, é coisa do tempo antigo, lá do imperador Carlos Magno.

A história narrada não chega a ser o motivo primordial para a reunião regular, a cada dois anos, de cerca de 40 cavaleiros e centenas de espectadores.

– Faço porque meu pai pediu para eu não deixar morrer essa tradição – justifica Pedro Renau.

O quase octogenário viu o avô participar da cavalhada e agora pôde assistir à estreia da neta Danielly. Intrépida sobre o cavalo, a menina de oito anos encarnou Floripa, papel que sua mãe, Taiane Terres de Castilhos, já personificou muitas vezes. Depois de tanto roubar Taiane dos mouros, Marcelo Terres Cardoso, 42 anos, filho de Pedro Renau, acabou casando com ela na vida real. Como se vê, a história dos Cardoso se funde à das cavalhadas.

– Quando todo mundo parar com a cavalhada, eu espero jogá-la para a frente. Se depender de mim, nunca vai terminar – assegura Danielly.

Além de celebrar a tradição, a cavalhada também é uma oportunidade de homens – e, atualmente, também mulheres – demonstrarem sua bravura sobre o cavalo. Para os descendentes de açorianos que cresceram no meio do campo, isso não é pouca coisa. A destreza sobre o animal é comumente associada à virilidade dos cavaleiros.

Pedro Renau conta com orgulho que seu pai era um domador capaz de grandes feitos. Um dia, foi desafiado: se montasse uma potranca sem cela, direto no pelo, poderia levá-la para casa. Levou.

– Aí meu pai falou: “O senhor não faça essa proposta onde tem homem, pois o senhor fique sabendo que homem que é homem para no pelo” – conta o orgulhoso filho.

É claro que hoje, com a permanência cada vez menor dos jovens no campo, a cavalhada conta com muitos participantes que não têm a montaria como parte de seu cotidiano. É o caso do jovem Lauries Maicke, 22 anos, que vive em Caxias do Sul, onde trabalha em empresa que beneficia produtos de plástico. Maicke encara a cavalhada como uma oportunidade de se divertir e rever os amigos que tem em Cazuza:

– É um bom modo de sair da cidade e distrair um pouco a cabeça.

Festa passada de geração em geração, a cavalhada ganha contornos próprios em cada localidade. Em geral, o uniforme azul para os cristãos e vermelho para os mouros se mantém, assim como o número de cavaleiros – 12 de cada lado, totalizando 24. Em Cazuza Ferreira, no entanto, não há limitação de participantes. Nesta edição da festa, eram 17 cristãos contra 18 mouros. Além deles, dois cavaleiros estavam trajados de palhaço, personificando o “espia” mouro e também zelando pela organização da festa, carregando lanças, expulsando fotógrafos enxeridos do campo ou simplesmente fazendo a criançada rir com suas macacadas. Outros cinco cavaleiros confirmaram presença, mas não apareceram na hora.

– Fugiram do frio – brinca Marcos André Terres Cardoso, 46 anos, também filho de Pedro Renau.

Se o leitor lá estivesse, talvez se unisse aos fujões. O dia clareou com 2ºC, e um vento cortante fazia os habitantes pensarem que a manhã acabaria em neve, o que não se confirmou.

EVOLUÇÃO E OBSTÁCULOS

 

Uma vexatória característica singularizava a cavalhada de Cazuza Ferreira no passado.

A encenação era separada por raça e classe social. Corriam em separado os grupos branco, amarelo e moreno. Brancos eram os habitantes das classes mais altas; amarelos, os agricultores; e morenos, os negros.

– Cazuza Ferreira foi o único lugar que conheci que fazia cavalhadas divididas entre negros e brancos – afirma o folclorista Paixão Côrtes.

Não foi uma conscientização social ou luta contra o preconceito que uniu os habitantes em um mesmo festejo. Ironicamente, foi a decadência econômica de Cazuza Ferreira que trouxe igualdade ao evento. Nos anos 1950 e 1960, o distrito viveu o ápice do ciclo de extração de madeira, quando a população alcançou o número de 6 mil habitantes. Com o fim das araucárias, também foram embora lojistas, médicos e outros profissionais liberais. Tornou-se difícil completar um grupo para uma cavalhada, que dirá para três diferentes.

– Eu mesmo passei a ser convidado para correr como guia dos brancos, já que não tinha gente deles para essa função. Depois, corri também com os morenos. Mais tarde, acabaram juntando tudo – conta Pedro Renau.

Um dos negros que ocupavam a fileira dos mouros neste ano era Afrânio Nunes de Freitas. Hoje com 47 anos, diz que desde os 15 participa. A família Freitas não cresceu em Cazuza Ferreira, mas Afrânio ficou fascinado com o espetáculo e se agregou ao grupo depois que foi convidado por amigos.

– A morte do espia é a parte mais engraçada. É uma coisa parecida com o teatro. Gostei e comecei a participar – diz Afrânio, sempre sorridente.

As mulheres também aproveitaram a falta de cavaleiros para tomar parte na celebração. Após alguma insistência das meninas, a organização levantou a possibilidade de incluí-las. No fim de semana passado, seis mulheres estavam no campo.

– Antigamente, só a Floripa corria. Mulher ou guria moça não participava – lembra Pedro Renau. – Uma vez, uma parenta minha não pôde correr de Floripa e quis correr na fileira. Falei que hoje em dia tem mulher no Exército, na Brigada Militar e em tudo que é instituição cultural. Por que não poderia ter também na cavalhada? Então ela foi correr.

O evento é uma realização do Grupo de Corredores de Cavalhadas de Cazuza Ferreira. A organização foi criada em 1994 para institucionalizar as corridas, que estavam ameaçadas pela falta de autorização para o uso das garruchas.

– A gente poderia correr sem as garruchas, mas os tiros de festim e a fumaça fazem parte do espetáculo – avalia Marcos Cardoso.

O uso das armas foi então autorizado pelo Exército Brasileiro. A partir daí, o Grupo de Corredores estipulou um evento exclusivo para a cavalhada, que costumava ser encenada como parte das festas religiosas. Assim foi criada a Festa das Cavalhadas, com periodicidade bianual.

– Antes, as cavalhadas eram corridas nas festas da comunidade, mas poderiam deixar de acontecer se o organizador de alguma festa não desse bem com algum cavaleiro ou coisa parecida. Com a Festa, o espetáculo fica garantido – explica a professora Celia Pacheco Terres Basso, que organizou um memorial das cavalhadas para visitação no dia do evento, bem ao lado da igreja da vila.

Mais um desafio veio em 2013. Com a tragédia da boate Kiss, a legislação estadual referente à segurança contra incêndios ficou mais exigente. Assim, o Salão Paroquial da comunidade teve que passar por uma série de mudanças para sediar os bailes da Festa das Cavalhadas. Por conta disso, a comunidade ficou por quatro anos sem poder realizar o evento. Só na última semana o jejum foi quebrado.

O público presente na festa foi sensivelmente menor do que em edições anteriores, que chegaram a atrair cerca de mil pessoas, a partir de estimativas locais. Além das cavalhadas, as festas já contaram com bailes estrelados por destaques da música local, como Mano Lima, em 2011. O investimento, no entanto, era arriscado demais para a organização, que não tem qualquer apoio institucional. O grupo já chegou a ter um projeto de financiamento aprovado via lei de incentivo fiscal, mas não conseguiu captar qualquer valor. Já da prefeitura de São Francisco de Paula não se espera muita coisa: com uma arrecadação pequena, a cidade sequer consegue asfaltar as estradas que dão acesso a seus distritos. Muitos habitantes de Cazuza inclusive advogam o fim do vínculo com São Francisco e a anexação por Caxias, mais próxima e mais rica.

Dessa forma, cavaleiros e seus familiares acabam tomando para si a organização, às vezes com primos e tios vindos de longe especialmente para ajudar. As semanas que antecedem o festejo são de muito trabalho. É preciso carnear animais para almoço e janta, contratar músicos, reparar roupas, carregar cartuchos de festim...

Para organizar tudo isso, os cavaleiros contam com o apoio da tecnologia: nas guaiacas ou em bolsos folgados de bombachas, há sempre um telefone celular com WhatsApp para receber e mandar mensagens em um grupo criado especialmente para a festa. Acessar o aplicativo, no entanto, requer subir por algum morro para ter acesso ao 3G ou contar com uma das raras conexões wi-fi do distrito.

– O grupo foi muito importante neste ano. O pessoal entrava no WhatsApp e via os outros mandando força, provocando a participar, aí entrava para a fileira – conta Marcos Cardoso.

Neste ano, umas 200 pessoas ocuparam a praça para assistir aos cavaleiros. Já no baile, com ingresso a R$ 30, nem uma centena circulava pelo amplo salão. Mas, conta Cardoso, o pequeno público não trazia preocupação:

– Nossa intenção não é ganhar dinheiro com a cavalhada. Só queremos continuar levando nossa tradição em frente.

TEXTO

Alexandre Luchese

alexandre.lucchese@zerohora.com.br

IMAGENS

Tadeu Vilani

tadeu.vilani@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Ticiano Osório

ticiano.osorio@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

 

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

Os guerreiros medievais de São Chico
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Os guerreiros medievais de São Chico

Pedro Renau Cardoso veste a farda azul, embainha a espada e carrega os dois canos da velha garrucha. Está pronto para mais uma batalha. E não se trata da guerra que está prestes a encenar em praça pública. O inimigo que o septuagenário homem do campo enfrenta há décadas, com golpes de lâmina cega e tiros de festim, é o esquecimento.

Aos 77 anos, Pedro Renau luta desde a adolescência para manter em sua comunidade, o pequeno distrito de Cazuza Ferreira, em São Francisco de Paula, a tradição quase extinta das cavalhadas. Populares em Portugal a partir do século 15, os festejos reproduzem os enfrentamentos entre cristãos e mouros na Idade Média. O espetáculo já teve seus tempos áureos, ganhando o mundo na medida em que os portugueses criavam suas colônias. No Rio Grande do Sul, houve larga adesão e cavaleiros como Bento Gonçalves, o general Netto e David Canabarro. Na maior parte dos lugares, no entanto, as celebrações não sobreviveram ao tempo – em Porto Alegre, a última foi registrada em 1897. Hoje, a tradição é mantida no Brasil em raras localidades, como Pirenópolis (GO), Poconé (MT), Tavares do Sul (RS) e Cazuza Ferreira, que no fim de semana passado realizou a 11ª Festa das Cavalhadas.

As cavalhadas existem em Cazuza desde antes de o distrito ganhar o nome atual, homenagem ao doador das terras para a construção da vila, José Ferreira de Castilhos – ou Cazuza, para os íntimos. Os primeiros registros das batalhas datam de 1885, quando a comunidade ainda se chamava Capela do Lajeado, mas é possível que tenham começado antes – os colonos chegaram nos anos 1840.

Não deve ter sido fácil para aqueles homens e mulheres pisarem lá. Até hoje o acesso é complicado. A vila fica a 114 quilômetros do centro de São Chico e a 72 de Caxias do Sul, sendo que quase 30 são de estrada de chão, às vezes bastante estreita e enlameada. Ao chegar, o visitante depara com algumas dezenas de casas em torno de uma praça. O número de habitantes não passa de 300 no pequeno núcleo urbano, mas o distrito tem mais cerca de mil moradores espalhados por suas terras. Nem sempre foi assim: Cazuza já contou com 6 mil habitantes nos anos 1960, sendo um pequeno polo para os distritos próximos, contando inclusive com um cinema de dar inveja aos citadinos de São Francisco de Paula. Atualmente a sala do Cine Serrano, desativado em 1968, serve como depósito de roupas usadas para brechós comunitários.

Uma pequena caminhada em torno da praça, um extenso terreno baldio sem gramado, basta para entender que o esforço dos habitantes é fundamental para manter não apenas as cavalhadas – se não fosse a obstinação deles em permanecer onde suas famílias se constituíram, a própria Cazuza Ferreira também desapareceria.

Guerra e paz: cavaleiros simulam batalha entre cristãos, de azul, e mouros. Abaixo, na igreja, reencenam a conversão de Floripa

O TEATRO DA GUERRA

 

O enredo da cavalhada, que costuma durar um dia, poderia ser classificado como politicamente incorreto. Pela manhã, o “espia”, um muçulmano infiltrado entre os 12 pares de França, tropa do imperador Carlos Magno, é assassinado em frente ao público, o que deflagra a guerra. A partir de então, os cavaleiros fazem diferentes movimentos sincronizados, algumas vezes em grupo, outras em pares, simbolizando provocações e escaramuças.

A mando do imperador francês, o cavaleiro Oliveiras tenta convencer Ferrabrás – personagem ficcional, que teria roubado relíquias de Roma no século 8 – e seu grupo islamita a se converterem ao cristianismo. Com a negativa de Ferrabrás, Oliveiras não titubeia: em uma época na qual não se falava em tolerância religiosa, jura a morte do infiel.

Os enfrentamentos seguem tensos até que Floripa, moura apaixonada por um cristão, é raptada pelos pares de França (o nome da jovem deve ser corruptela de Floripes, irmã de Ferrabrás nas lendas medievais). É ela quem passa informações importantes para a derrota dos mouros. Cercados, eles precisam entregar suas armas e são forçados à conversão. Floripa é então batizada em uma encenação na igreja da vila. Assim, acabam os festejos da manhã.

À tarde, a cavalhada segue com exercícios esportivos sobre o cavalo. Com lanças, espadas e garruchas, os cavaleiros derrubam as “cabeças”, objetos que representam a face do inimigo – neste ano, uma embalagem de Nescau e um latão de Kaiser, este devidamente esvaziado por um dos competidores durante o almoço. Há também a captura de argolas com lança, que não foi realizada no último final de semana por conta do adiantado da hora. À noite, tem jantar e baile de confraternização.

Apesar de encenaram com esforço a perseguição e a conversão forçada de infiéis, os habitantes de Cazuza Ferreira não são fanáticos religiosos. Longe disso. Pedro Renau jamais refletiu com seriedade sobre o enredo que dramatiza desde os 15 anos:

– Isso eu não sei, é coisa do tempo antigo, lá do imperador Carlos Magno.

A história narrada não chega a ser o motivo primordial para a reunião regular, a cada dois anos, de cerca de 40 cavaleiros e centenas de espectadores.

– Faço porque meu pai pediu para eu não deixar morrer essa tradição – justifica Pedro Renau.

O quase octogenário viu o avô participar da cavalhada e agora pôde assistir à estreia da neta Danielly. Intrépida sobre o cavalo, a menina de oito anos encarnou Floripa, papel que sua mãe, Taiane Terres de Castilhos, já personificou muitas vezes. Depois de tanto roubar Taiane dos mouros, Marcelo Terres Cardoso, 42 anos, filho de Pedro Renau, acabou casando com ela na vida real. Como se vê, a história dos Cardoso se funde à das cavalhadas.

– Quando todo mundo parar com a cavalhada, eu espero jogá-la para a frente. Se depender de mim, nunca vai terminar – assegura Danielly.

Além de celebrar a tradição, a cavalhada também é uma oportunidade de homens – e, atualmente, também mulheres – demonstrarem sua bravura sobre o cavalo. Para os descendentes de açorianos que cresceram no meio do campo, isso não é pouca coisa. A destreza sobre o animal é comumente associada à virilidade dos cavaleiros.

Pedro Renau conta com orgulho que seu pai era um domador capaz de grandes feitos. Um dia, foi desafiado: se montasse uma potranca sem cela, direto no pelo, poderia levá-la para casa. Levou.

– Aí meu pai falou: “O senhor não faça essa proposta onde tem homem, pois o senhor fique sabendo que homem que é homem para no pelo” – conta o orgulhoso filho.

É claro que hoje, com a permanência cada vez menor dos jovens no campo, a cavalhada conta com muitos participantes que não têm a montaria como parte de seu cotidiano. É o caso do jovem Lauries Maicke, 22 anos, que vive em Caxias do Sul, onde trabalha em empresa que beneficia produtos de plástico. Maicke encara a cavalhada como uma oportunidade de se divertir e rever os amigos que tem em Cazuza:

– É um bom modo de sair da cidade e distrair um pouco a cabeça.

Festa passada de geração em geração, a cavalhada ganha contornos próprios em cada localidade. Em geral, o uniforme azul para os cristãos e vermelho para os mouros se mantém, assim como o número de cavaleiros – 12 de cada lado, totalizando 24. Em Cazuza Ferreira, no entanto, não há limitação de participantes. Nesta edição da festa, eram 17 cristãos contra 18 mouros. Além deles, dois cavaleiros estavam trajados de palhaço, personificando o “espia” mouro e também zelando pela organização da festa, carregando lanças, expulsando fotógrafos enxeridos do campo ou simplesmente fazendo a criançada rir com suas macacadas. Outros cinco cavaleiros confirmaram presença, mas não apareceram na hora.

– Fugiram do frio – brinca Marcos André Terres Cardoso, 46 anos, também filho de Pedro Renau.

Se o leitor lá estivesse, talvez se unisse aos fujões. O dia clareou com 2ºC, e um vento cortante fazia os habitantes pensarem que a manhã acabaria em neve, o que não se confirmou.

 

EVOLUÇÃO E OBSTÁCULOS

 

Uma vexatória característica singularizava a cavalhada de Cazuza Ferreira no passado.

A encenação era separada por raça e classe social. Corriam em separado os grupos branco, amarelo e moreno. Brancos eram os habitantes das classes mais altas; amarelos, os agricultores; e morenos, os negros.

– Cazuza Ferreira foi o único lugar que conheci que fazia cavalhadas divididas entre negros e brancos – afirma o folclorista Paixão Côrtes.

Não foi uma conscientização social ou luta contra o preconceito que uniu os habitantes em um mesmo festejo. Ironicamente, foi a decadência econômica de Cazuza Ferreira que trouxe igualdade ao evento. Nos anos 1950 e 1960, o distrito viveu o ápice do ciclo de extração de madeira, quando a população alcançou o número de 6 mil habitantes. Com o fim das araucárias, também foram embora lojistas, médicos e outros profissionais liberais. Tornou-se difícil completar um grupo para uma cavalhada, que dirá para três diferentes.

– Eu mesmo passei a ser convidado para correr como guia dos brancos, já que não tinha gente deles para essa função. Depois, corri também com os morenos. Mais tarde, acabaram juntando tudo – conta Pedro Renau.

Um dos negros que ocupavam a fileira dos mouros neste ano era Afrânio Nunes de Freitas. Hoje com 47 anos, diz que desde os 15 participa. A família Freitas não cresceu em Cazuza Ferreira, mas Afrânio ficou fascinado com o espetáculo e se agregou ao grupo depois que foi convidado por amigos.

– A morte do espia é a parte mais engraçada. É uma coisa parecida com o teatro. Gostei e comecei a participar – diz Afrânio, sempre sorridente.

As mulheres também aproveitaram a falta de cavaleiros para tomar parte na celebração. Após alguma insistência das meninas, a organização levantou a possibilidade de incluí-las. No fim de semana passado, seis mulheres estavam no campo.

– Antigamente, só a Floripa corria. Mulher ou guria moça não participava – lembra Pedro Renau. – Uma vez, uma parenta minha não pôde correr de Floripa e quis correr na fileira. Falei que hoje em dia tem mulher no Exército, na Brigada Militar e em tudo que é instituição cultural. Por que não poderia ter também na cavalhada? Então ela foi correr.

O evento é uma realização do Grupo de Corredores de Cavalhadas de Cazuza Ferreira. A organização foi criada em 1994 para institucionalizar as corridas, que estavam ameaçadas pela falta de autorização para o uso das garruchas.

– A gente poderia correr sem as garruchas, mas os tiros de festim e a fumaça fazem parte do espetáculo – avalia Marcos Cardoso.

O uso das armas foi então autorizado pelo Exército Brasileiro. A partir daí, o Grupo de Corredores estipulou um evento exclusivo para a cavalhada, que costumava ser encenada como parte das festas religiosas. Assim foi criada a Festa das Cavalhadas, com periodicidade bianual.

– Antes, as cavalhadas eram corridas nas festas da comunidade, mas poderiam deixar de acontecer se o organizador de alguma festa não desse bem com algum cavaleiro ou coisa parecida. Com a Festa, o espetáculo fica garantido – explica a professora Celia Pacheco Terres Basso, que organizou um memorial das cavalhadas para visitação no dia do evento, bem ao lado da igreja da vila.

Mais um desafio veio em 2013. Com a tragédia da boate Kiss, a legislação estadual referente à segurança contra incêndios ficou mais exigente. Assim, o Salão Paroquial da comunidade teve que passar por uma série de mudanças para sediar os bailes da Festa das Cavalhadas. Por conta disso, a comunidade ficou por quatro anos sem poder realizar o evento. Só na última semana o jejum foi quebrado.

O público presente na festa foi sensivelmente menor do que em edições anteriores, que chegaram a atrair cerca de mil pessoas, a partir de estimativas locais. Além das cavalhadas, as festas já contaram com bailes estrelados por destaques da música local, como Mano Lima, em 2011. O investimento, no entanto, era arriscado demais para a organização, que não tem qualquer apoio institucional. O grupo já chegou a ter um projeto de financiamento aprovado via lei de incentivo fiscal, mas não conseguiu captar qualquer valor. Já da prefeitura de São Francisco de Paula não se espera muita coisa: com uma arrecadação pequena, a cidade sequer consegue asfaltar as estradas que dão acesso a seus distritos. Muitos habitantes de Cazuza inclusive advogam o fim do vínculo com São Francisco e a anexação por Caxias, mais próxima e mais rica.

Dessa forma, cavaleiros e seus familiares acabam tomando para si a organização, às vezes com primos e tios vindos de longe especialmente para ajudar. As semanas que antecedem o festejo são de muito trabalho. É preciso carnear animais para almoço e janta, contratar músicos, reparar roupas, carregar cartuchos de festim...

Para organizar tudo isso, os cavaleiros contam com o apoio da tecnologia: nas guaiacas ou em bolsos folgados de bombachas, há sempre um telefone celular com WhatsApp para receber e mandar mensagens em um grupo criado especialmente para a festa. Acessar o aplicativo, no entanto, requer subir por algum morro para ter acesso ao 3G ou contar com uma das raras conexões wi-fi do distrito.

– O grupo foi muito importante neste ano.

O pessoal entrava no WhatsApp e via os outros mandando força, provocando a participar, aí entrava para a fileira – conta Marcos Cardoso.

Neste ano, umas 200 pessoas ocuparam a praça para assistir aos cavaleiros. Já no baile, com ingresso a R$ 30, nem uma centena circulava pelo amplo salão. Mas, conta Cardoso, o pequeno público não trazia preocupação:

– Nossa intenção não é ganhar dinheiro com a cavalhada. Só queremos continuar levando nossa tradição em frente.