O missivista compulsivo
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Leoni Dorneles da Silva, de Santana da Boa Vista, escreve dezenas de cartas por dia. os destinatários não respondem

No breu da Campanha, em uma casinha perdida na vastidão, um homem escreve madrugada adentro, até o sol raiar. Repete a rotina noite após noite. Redige cartas, dezenas, centenas. Os destinatários estão espalhados pelo Rio Grande e pelo Brasil. São parentes, conhecidos, desconhecidos, famosos. Os envelopes chegam a eles religiosamente. Quase nenhum responde. O homem, Leoni Dorneles da Silva, 64 anos, não se importa e não se abala. Escreve.

Ele que mal teve um lar, que mal teve um pai e uma mãe, que viu o protetor virar carrasco, que caiu no mundo tão cedo, que fez dinheiro e o perdeu – ele está de volta ao lugar de onde saiu, como se estivesse à procura de algo perdido na bruma da infância, como se buscasse amarrar pontas soltas, reconciliar-se com o mundo, com os outros, consigo próprio. E por isso escreve.

Leoni voltou há cinco anos e se instalou a mais ou menos um quilômetro da BR-392, num terreno inclinado do interior do município de Santana da Boa Vista. Passa o dia inteiro a trabalhar no campo. Às 22h, estica-se no catre simples e dorme por apenas quatro horas. Então, salta do leito para a mesa e começa a redigir numa letra graúda, sempre com a régua por baixo, para servir de guia, o que deixa as palavras como que achatadas na base. “A liberdade d’expressão só deve ser negada a quem pretenda limitá-la”, põe numa folha. Na frente de um envelope, em vez de anotar o remetente, filosofa: “Solidão. Estamos conseguindo o prodígio de criar um paradoxo: a solidão absoluta, num mundo cada x + povoado”.

Cercado por um silêncio e uma escuridão rompidos apenas pela eventual passagem, lá longe na estrada, dos faróis e do motor de uma carreta, Leoni remexe uma pilha de jornais velhos e de panfletos de propaganda. Escolhe uma palavra, uma expressão, uma foto, algum fragmento de história em quadrinhos. Recorta essas imagens e as põe a dialogar com os textos, em elaboradas colagens. Depois de uma semana de noites febris, vai até a agência dos Correios e posta os envelopes para alguns dos cerca de 200 destinatários que compilou na agenda.

– Tive a ideia de escrever as cartas quando comecei a morar sozinho. Pensei que podia desenvolver um trabalho de reintegração com a sociedade, com as pessoas. Ficar longe de todo mundo, mas me comunicando. Desde o início, eu sabia que receberia muito pouca carta de volta – afirma Leoni.

O missivista das madrugadas é um fã declarado da seção Singular. Às segundas-feiras, em sua ida semanal à cidade, ele passa pelo restaurante de um assinante de ZH e recompra, pela metade do preço, a edição do fim de semana. Lendo as reportagens da seção, convenceu-se que deveria figurar nela.

Em uma tarde do começo de junho, um amigo a quem Leoni pedira ligou para a redação do jornal, sugerindo a matéria. Por casualidade, a equipe do Singular estava para partir em um périplo pela metade sul do Estado, e uma parada em Santana da Boa Vista vinha mesmo a calhar para fechar o roteiro. ZH contatou um morador da vizinhança, porque Leoni não tem telefone, e por intermédio dele combinou-se a visita para dois ou três dias depois, sem hora marcada.

O veículo de ZH avançava com vagar pela rodovia, à procura do acesso que levaria à casa de Leoni. Não achou – mas o homem já estava à espera, no acostamento, debaixo da chuva. Embarcou e guiou os visitantes por uma picada no mato, até a casinha de alvenaria caiada de branco, com janela e porta azuis.

No banho: mesmo no frio, Leoni Dorneles considera água encanada algo "supérfluo"

– Queriam começar por onde? – perguntou, após acomodar-se numa cadeira.

Leoni foi incentivado a começar pelo começo. E logo ficou claro que a trajetória dele era mais acidentada, curiosa e pungente do que fariam supor as referências iniciais – um homem isolado no pampa, a escrever cartas.

Ele contou que, quando tinha quatro anos, os pais, trabalhadores do campo, separaram-se e “doaram” os sete filhos para diferentes famílias. Leoni foi acolhido por um casal bem de vida, que era dono das terras onde ele vive atualmente (mas o casarão da infância hoje é propriedade de um vizinho).

– Nós éramos uma ninhada pequena, sete machos. Cada um foi para um lugar. Perdi completamente o contato. E o pior não foram os irmãos: foi a mãe. Eu não lembrava como ela era. Eu enxergava a mãe com a mão assim, olhando para mim de baixo para cima. A mãe tinha o costume de comer sempre com o prato na mão. Então a ideia que eu gravei dela... A cara dela eu não lembrava, eu me lembrava era da mão dela. Engraçado, não é?

Leoni diz que o casal que o acolheu tratou-o como filho – e se refere a eles como “paizinho” e “mãezinha”. Ambos eram religiosos, e fizeram do menino coroinha da paróquia. Nos fins de tarde, o frei costumava vir à casa da família para buscar Leoni. Quando o sol baixava, o menino agachava-se à beira da janela, espreitando. Ao ver o religioso, escondia-se. A “mãezinha” servia um café e um bolo. Do quarto, ele ouvia o frei perguntar:

– Então, cadê o Leoni?

Alguém ia buscá-lo. Ele esperneava, chorava. Era arrastado para a igreja.

– Esse irmão, quando chegou a Santana da Boa Vista, a primeira coisa que fez foi montar uma cama na sacristia. Levava os guris para lá e grudava os guris. Inclusive eu. Tu chegavas lá de noite, deitava na sacristia. E então tinha uma hora que ele te grudava. Vinha na tua cama, tirava a roupa da criança e botava o pênis no meio das coxas do guri. Eu senti muito, estive mal. Mas não contava. Custaram muito a acordar para isso aqui nesta comunidade.

O religioso, João Marcos Porto Maciel, teve longa trajetória como padre católico, em cidades gaúchas e em Minas Gerais. Em 2009, foi excomungado pelo Vaticano, por apostasia (afastar-se da doutrina). Ingressou como presbítero na Igreja Anglicana, mas foi expulso por “alta traição e atitudes sorrateiras”. Instalado em um mosteiro em Caçapava do Sul, apresentou-se como dom Marcos de Santa Helena, bispo da Igreja Veterodoxa.

Em 2014, o empresário Marcelo Ribeiro tomou coragem e publicou o livro Sem Medo de Falar – Relato de uma Vítima de Pedofilia. Na obra, contava ter sido vítima de abusos sexuais cometidos por Maciel nos anos 1970 e 1980, quando participava de um coral católico em Novo Hamburgo. Em questão de meses, Maciel estava preso, sob acusação de abusar de menores entre 2007 e 2010. Os casos mais antigos estavam prescritos, mas mesmo assim Leoni foi à DP de Caçapava do Sul. O delegado Fabrício de Santis afirma que o depoimento dele reforçou a decisão pelo indiciamento. Em março de 2016, Maciel foi condenado a 20 anos de prisão, em regime fechado, por estupro de vulnerável continuado e majorado. Apelou ao Tribunal de Justiça, que confirmou a condenação, mas reduziu a pena para  14 anos. Ele sempre negou os crimes.

Curiosamente, na sala de casa Leoni mantém uma foto emoldurada com o religioso. A imagem, em preto e branco, foi feita na Igreja Matriz de Cachoeira do Sul, há mais de meio século. Mostra um grupo de crianças em um coral dirigido por Maciel. Leoni encontra-se entre elas. Por que manter a foto do algoz tão em evidência?

– Porque é uma foto muito antiga que eu tinha e aparecia eu ali de coroinha – justifica.

Ao contar como superou a raiva e o trauma, ele sintomaticamente recorre ao mesmo termo que costuma usar para descrever o que Maciel fazia com as suas vítimas:

– Tive sérios problemas de comportamento, mas depois que conseguimos grudar ele, eu esqueci completamente o assunto.

EM BUSCA DA MÃE

Na adolescência, a revolta de Leoni se traduziu no desejo de conhecer a mãe biológica. A “mãezinha” e o “paizinho” cederam. Localizaram o pai biológico: “Leva o guri para conhecer a mãe dele”. O pai acompanhou Leoni até Cachoeira, deu-lhe um cacho de bananas para a viagem e embarcou-o em um ônibus para Porto Alegre. A mãe estaria esperando na Rodoviária. Leoni tinha 16 anos. Quando viu os prédios da Capital se avolumarem, estremeceu. Desceu do ônibus e notou a presença de várias mulheres na calçada. A atual rodoviária

não existia, as pessoas esperavam na rua. Ele não fazia ideia de como a mãe fosse.

– Saí olhando as pessoas, devagarzinho. Aí vi uma mulher, e meio que nos namoramos. Eu olhei meio firme para ela, ela olhou meio firme para mim.

Acho que é essa. Mas não dei meu braço a torcer. Fui lá na frente, voltei. Olhei de novo. Aí, quando ela me olhou, perguntei:

“A senhora que é minha mãe?”.

A mulher, Arlete Lopes Dorneles, morta há poucos anos, abraçou o garoto e começou a chorar. Leoni passou um mês com a mãe, empregada doméstica na Capital. Quando retornou a Cachoeira, o pai deu uma notícia perturbadora: o adolescente não voltaria para a família adotiva. Um colega de fazenda estava precisando de um guri para trabalho, porque só tinha guria em casa. Leoni seria esse guri.

Permaneceu três meses na casa de um tal Telico. Um dia, o homem anunciou:

– Ô, Leoni, não vou mais ficar contigo.

Tu segues sempre reto, por aqui, que tu vais enxergar um colégio, à esquerda, e tu vais morar ali com o José Pontes.

O garoto fez sua trouxa e caminhou seis quilômetros. Bateu à porta e uma mulher apareceu.

– O que o senhor quer?

– O Telico me mandou – respondeu.

A mulher ficou paralisada, em silêncio, e observou o rapaz pelo que pareceu um tempo longo demais. Por fim, escancarou a porta. Leoni viveu três anos com aquela família e até hoje sente-se muito ligado a ela, mas aquele instante de indecisão na porta nunca lhe saiu da mente. Não faz muito, em uma visita, finalmente decidiu tirar a limpo. A mulher, Hilda, agora com quase 80 anos, disse que demorou a abrir porque não sabia da vinda de Leoni.

– Como não sabia? O Telico não tinha falado?

– Não, ninguém me falou nada.

Leoni rebentou em choro.

Por volta de 1970, a mãe biológica conseguiu alugar uma casa em Porto Alegre e tratou de reunir os filhos. Quatro foram morar com ela, Leoni entre eles. Começou ali uma trajetória de quatro décadas na Capital.

Na cidade grande, ele fez carreira no comércio. Empregou-se na J.H. Santos da Dr. Flores e, em oito meses, alcançou uma promoção para supervisor. Depois, foi gerente da matriz e de uma filial na Assis Brasil. Mais tarde, tornou-se o responsável pela abertura das novas lojas da rede no Interior. Ganhou muito bem, casou, teve dois filhos, descasou, abriu sua própria empresa. Os anos viraram décadas até que um Leoni já quase sexagenário percebesse com nitidez:

– Eu não estava me sentindo bem lá em Porto Alegre. Estava sempre agredido pela cidade. E queria calma. Eu estava muito sozinho. Já que estou sozinho, vou lá para o campo. Muito pensei, fiquei com certo medo, mas vim. E não me arrependo. Sou um cara que, meu Deus, ganhava muito bem. Hoje tenho um salário mínimo de aposentadoria. Mas soube assimilar, soube engolir a ficha. Me reencontrei aqui. Com meus livros, com a escrita. Me reencontrei por demais – avalia.

Em Santana da Boa Vista, Leoni instalou-se, com o cachorro, na casa emprestada por um vizinho. É uma construção pequena, com sala, cozinha, quarto e uma espécie de depósito. O banheiro fica do lado de fora e não tem água, como de resto a casa toda. Também há lâmpadas que não acendem. Não há forro que oculte as telhas. Apesar da crua simplicidade, há um senso muito peculiar de organização, exceto pelos livros empilhados no chão, mais de 700 volumes, à espera de uma estante encomendada. Cada caixa, cada pote, cada sacola é etiquetado, informando em letras garrafais o que contém: “buchas”, “grampos”, “só pregos novos”, “pregos velhos”, “feijão”, “sapato social”, “botas pretas cano longo velhas”, “só cuecas”.

As paredes da sala, o aposento onde ele escreve durante as madrugadas, estão cobertas de fotos e pôsteres, incluindo o quadro com o padre abusador e folhetos de propaganda da antiga empresa de Leoni, que revelam um pouco da trajetória e da personalidade do inquilino. O maior destaque é concedido a Kurt Cobain (1967–1994), o líder da banda grunge Nirvana. À direita do roqueiro, com moldura dourada, vê-se um pôster destacado da revista Astros e Ídolos. Traz o rosto do ator de cinema, teatro e TV Léo Rosa, protagonista de novelas como Vidas Opostas e Escrava Mãe, da Record.

ZH conversou por telefone com Léo, 33 anos. É o filho mais velho de Leoni.

O ator, residente há anos no Rio, define o pai como um “personagem maravilhoso” e conta que deu força para que ele fosse morar no meio do campo. Só então percebeu na plenitude uma faceta de Leoni que estivera sufocada na cidade grande:

– Ele estava vivendo uma situação bastante infeliz. E sempre foi ligado de algum jeito a questões de natureza, a olhares mais poéticos. Na adolescência e na juventude, eu não consegui perceber isso, porque ele estava num emprego, tinha de ganhar dinheiro, sustentar a família. Mas ele tinha coisas curiosas. Lembro perfeitamente de ele começar a varrer a frente da casa, e quando via ele estava no final da rua, varrendo. Ele varria a rua inteira. Há estados de poesia que só consigo visitar porque é ele o meu pai – conta Léo.

O ator esteve algumas vezes na casinha de Santana da Boa Vista. A primeira foi a mais marcante. Léo chegou do Rio, alugou um carro em Porto Alegre e guiou até o município, procurando pelo endereço que constava na correspondência remetida pelo pai. Era uma visita surpresa. Passou dois portões, desceu do automóvel, cruzou a pé o pontilhão de madeira e viu a casinha branca lá no alto. Dela vinha o som em volume máximo de uma canção do Nirvana. Era a hora do crepúsculo. O cachorro começou a ladrar. Alarmado, sem enxergar direito por causa da pouca luz e talvez por estar sem os óculos, Leoni pensou tratar-se de um invasor e assumiu uma atitude agressiva. Léo gritou:

– Pai, sou eu! Sou eu!

Leoni abraçou o filho e o beijou. Os dois choraram. Não se viam havia um ano. Fizeram fogueira, preparam algo para comer e ficaram ao relento.

– Tinha uma lua cheia inacreditável. Ficamos conversando e olhando para ela. Vivi o dia mais bonito da minha vida com alguém da família. Depois, as cartas que ele me mandou sempre tinham uma lua. Meu pai me dá coisa que ninguém nunca mais poderá me dar – diz Léo.

Numa dessas visitas, o ator percebeu que o pai vivia sem água corrente. Mandou dinheiro para que consertasse a canalização. Leoni comprou uma moto. Convenceu-se de que água é um bem supérfluo. Busca água em uma sanga que corre a algumas centenas de metros. No banheiro, mantém um balde cheio, para improvisar a descarga.

O banho também é no córrego, todos os dias, no final da tarde. Não importa a temperatura. No dia da visita de ZH, lá foi ele lavar-se. De torso nu, usando só uma bermuda e com uma toalha à volta do pescoço, desceu a coxilha, passou por entre os fios de arame de uma cerca e se posicionou em um lajedo no meio da sanga. Era um dia nublado e cinzento, com uma aragem gelada e temperatura abaixo dos 10ºC. Pendurado nos galhos de um arbusto que crescia à margem, encontrava-se um pote. Após remover do interior sabonete e esponja, Leoni usou o recipiente para recolher a água e despejá-la sobre o corpo.

– Estava bem bom. Não senti frio nenhum. O corpo se acostuma – relatou.

Leoni nos arredores de sua casa, no interior de Santana da Boa Vista

PERSONAGEM DE TEATRO

Quando voltou a Santana da Boa Vista, Leoni tomou como providências desfazer-se da TV e manter o rádio desligado. Sua atenção ficou concentrada na agenda com mais de 210 nomes, endereços e datas de nascimento. Leoni sempre envia a todos uma carta parabenizando pelo aniversário.

– Quando eu era guri e sentia aquela falta tremenda da mãe e dos irmãos, aquilo ali me calou violentamente. Nunca aceitei que eu tenha primos que não conhecia. Tenho de conhecer meus primos, porra! Assim que eu comecei a escrever – recapitula.

Nos primórdios, as cartas eram pessoais. Leoni falava de si, discorria sobre coisas da vida do destinatário, perguntava como estava fulano ou sicrano.

Com o tempo, viu que não dava conta de desenvolver algo personalizado para tanta gente. Passou a escrever textos mais genéricos, em geral satíricos ou de crítica política. Guarda o original e envia seis cópias xerox de cada uma, para pessoas diferentes. O elemento pessoal passou a ser o envelope, que ele mesmo decora. É do lado de fora, em ambas as faces, na sua letra garrafal, que envia as parabenizações e se refere diretamente ao correspondente.

Ele também adotou essa prática por um outro motivo: para que mais gente o leia.

– Ó, Leoni, se está do lado de fora do envelope, não tem como não ler – lhe disse um funcionário dos Correios. – Vão ser uns três aqui, mais três em Pelotas, para onde vai a carta, e mais três em Porto Alegre, onde acontece a distribuição. E ainda tem o carteiro. De nove a 12 pessoas.

A informação empolgou o emissário.

No interior do envelope, Leoni enfia sempre três de seus textos xerocados. É usual orientar que um ou outro texto seja repassado a um terceiro – o filho, o irmão, o marido.

– Como escrevo para 200, considero que estou atingindo 600 pessoas.

Um reforço recente para a agenda de Leoni foi o endereço da arquiteta, artista plástica e escritora Liana Timm, de Porto Alegre. Em maio, ela esteve na Feira do Livro de Caçapava. Após Liana proferir uma palestra sobre poesia, Leoni correu ao palco e declamou um poema de sua autoria. Depois, entrou na fila de autógrafos com um livro da escritora em mãos. Estava encantado.

– Pô, que mulher, rapaz! Ela canta em inglês, canta jazz, faz o diabo! Ela é uma poetisa filha da puta. Comprei um livro dela e disse: “A senhora autografa? E coloca o seu endereço?”. Ela me encarou assim por cima dos óculos, sabe como é? Falei: “Pode colocar, pode colocar”. Ela escreveu.

Na visita de ZH, Leoni exibiu com orgulho a carta à artista. Em um envelope amarelo, pespegou: “Doutora arquiteta, poeta, escritora poeta Liana Mahfuz Timm”. Abaixo do endereço, acrescentou: “Ah, pois! Desculpe-me. Designer, cantora”. Na outra face, também ilustrada, acrescentou uns versinhos:

“Doutora, ligues não! 10/20/50/100

Toda mulher é linda com a idade q tem! Errado é aquele homem q ñ a vê assim.”

Liana recebeu a carta em 13 de junho, sem imaginar que fosse do fã de Caçapava:

– Olhei o envelope, todo trabalhado, com umas figuras coladas. A minha primeira impressão foi de que era uma pessoa criativa, que estava querendo externar seu desejo de criar. E uma pessoa muito cuidadosa, porque gastou um tempo fazendo isso. Abri a carta e tinha várias coisas, poemas dele, uma carta pessoal. Foge totalmente ao padrão. Tu ficas pensando como a pessoa fez algo tão diferente.

Entre as pessoas com quem Leoni se corresponde está ainda seu filho caçula, Bruno Dorneles, 27 anos, professor de Arte na Capital. Foi graças às cartas enviadas que os dois, antes com uma relação difícil, se aproximaram. Bruno tinha oito anos quando o pai foi embora:

– Depois de muito tempo, por causa das cartas, o pai ressurgiu para mim como uma outra figura, do poeta, do cara que lê muito. Não me coloco num lugar de julgamento. Ele teve uma infância marcada por traumas e voltou para a terra da única família que cuidou dele por mais tempo. Ele costuma dizer que ficava em uma família só até descobrirem que ele comia demais ou era vadio demais. Essa era a relação de família que ele tinha. A gente nota que, voltando para lá,  ele teve uma transformação considerável.

Segunda-feira é o dia em que Leoni monta na motocicleta e vai até a cidade para postar as cartas. Depois, no início da noite, dirige-se à Câmara Municipal para assistir à assembleia semanal dos nove vereadores. Em geral, é o único assistente no plenário, sempre na primeira fila. Abre um caderno sobre as pernas e começa a anotar o que os representantes do povo dizem. De vez em quando, pega um cartaz de uma pilha e o exibe em direção a mesa, como protesto. Por exemplo, se os vereadores começam a tergiversar por assuntos federais, Leoni saca da cartolina mais apropriada: “Volte-se às nossas causas municipais. Precisamos do senhor”.

Ele já se sentiu mais escandalizado com a inocuidade do legislativo municipal:

– No início, eu era tão irritante que, uma vez, abri boca contra um vereador, no meio da rua. Ele me pegou num momento psicológico meio ruim. Chamei de merda, disso e daquilo. Aí alguém me disse: “Não, Leoni, tu estás errado”. E eu parei. Se sei fazer com categoria, vou fazer com categoria. Nunca mais xinguei vereador.

Em vez disso, ele fiscaliza as sessões, exibe os cartazes de protesto e vai de casa em casa, colocando por baixo da porta panfletos xerocados com suas críticas.

– Os vereadores não me aceitam. Acham que sou um revolucionário? Não sei. Sou tido por muita gente como louco. Mas quando começaram a me chamar de louco, entrei naquela: ou paro com isso ou, se acho que estou no caminho certo, continuo. Continuei. E o pessoal está mudando, aceitando. Ontem, na cidade, eu era um cara extremamente antipático. Hoje, já sou polêmico. No futuro, serei totalmente aceitável – prevê.

O presidente da Câmara, Ivamberto da Silva Teixeira, reconhece que vereadores costumam faltar às sessões, mas Leoni, jamais. Político, garante que o munícipe não incomoda ninguém e que está no seu direito, acrescentando que seria positivo que mais pessoas fossem tão participativas. Mas  alfineta:

– Ele faz esses cartazes, mas a maioria dos vereadores nem lê. É uma pessoa superinteligente, e ao mesmo tempo, não bate bem. Falo isso até porque ele é meio parente.

Outra particularidade de Leoni é decorar o trecho da rodovia que passa pelas terras onde vive. Ao limpar os campos, ele põe à parte as pedras maiores, pinta-as e faz inscrições. Depois, posiciona-as à beira da estrada, às vezes sobre uma cadeira, para que motoristas possam ler mais facilmente: “Isadora você cheira a amor e a amora”, “Véio Lula ladrão corno fia-daputa”, “Povo ké casa comida cultura”.

Olhando para tudo isso, Léo Rosa, o filho ator, enxergou um personagem fascinante. E resolveu levá-lo para os palcos. Escreveu o texto daquela que será sua primeira peça como dramaturgo, um monólogo chamado P.A.I., que ele mesmo pretende interpretar, sob a direção de Georgette Fadel.

– Somos eu e ele em cena, mas só eu faço. A figura dele vai estar presente de algumas formas. Uma coisa que estou tentando entender como externar para o público é que a carta, muitas vezes, tem uma falta de senso lógico. É meio charada. Ele coloca uma Mônica para decifrar uma coisa da politica, que ele junta com um pedaço de uma frase de um jornal e depois ainda junta uma parte falando da política da cidade dele. É deslumbrante.

Alheio aos planos do filho, Leoni apenas escreve. Um dia antes da visita de ZH, passou a madrugada preparando uma autoentrevista. São seis páginas escritas em letra apertada. Além das questões (como “Qual seria seu conceito numa pequena comunidade de 8.000 habitantes fazendo muita crítica?”), há citações, um recorte de um mapa da seção Singular e uma lista de nomes, endereços e telefones de nove pessoas que poderiam ser entrevistadas para dar um depoimento sobre ele. As folhas rabiscadas trazem ainda sugestões para o final desta matéria, incluindo a frase “não há dia melhor que o de hoje para deixar para amanhã o que você não vai fazer nunca” e uns versos de Blowin’ in the Wind, de Bob Dylan. Por fim, ao pé da página, acrescenta mais um pergunta, com a respectiva resposta:

“– Sr. Leoni, pra encerrar a matéria, o senhor gostaria de fazer-nos alguma pergunta?”

“Oh, sim! Oh, sim! Escrevam aí num papelzinho seus nomes, endereços com CEP, nome dos filhos, data de nascimento...”

Recortes, letras achatadas por serem escritas com o auxílio de uma régua: o estilo de Leoni

TEXTO

Itamar Melo

itamar.melo@zerohora.com.br

IMAGENS

Carlos Macedo

carlos.macedo@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Daniel Feix

daniel.feix@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

 

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

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