As leoas da ilha dos siris
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marcada pela pesca dos crustáceos, a ilha da torotama, perto de Rio Grande, é um lugar onde vivem mulheres fortes, mas cujo trabalho nem sempre recebe o devido valor

Os calos nos indicadores, as impressões digitais gastas dos dedões e os cortes nas mãos ajudam a identificar as sirizeiras da Ilha da Torotama, em Rio Grande. As marcas surgem com a força manual feita por elas – a maioria, esposas de pescadores – enquanto vão desmembrando o siri, cuja carne é responsável por garantir uma renda extra às famílias na localidade de 1,2 mil habitantes, distante 50 quilômetros do centro do município no sul do Rio Grande do Sul. A atividade sempre foi considerada a mais desvalorizada entre os moradores – é comum na região a frase “pescador é profissão, sirizeira é o destino”.

Retirado da laguna dos Patos, o crustáceo tem preço até cinco vezes menor do que o camarão. E é mais difícil de ser selecionado. Um trabalho penoso, como costumam dizer as mulheres da Torotama. Para se obter um quilo de carne, é preciso descascar 50 siris. Mas a função que atravessa gerações começou a ser vista de outra forma a partir de 2016, quando uma professora da escola municipal Cristóvão Pereira de Abreu, única instituição de Ensino Fundamental da região, propôs aos estudantes contarem as histórias das sirizeiras. Deu tão certo, que o projeto acabou envolvendo toda a escola. No final de 2017, a ação foi premiada nacionalmente.

– Quando cheguei à Torotama, percebi uma baixa autoestima entre os alunos e os próprios moradores. Eles demonstravam vergonha de dizer que tinham uma mãe sirizeira porque consideravam uma atividade sem valor. Então, descartavam o termo. Minha intenção era fazer com que se compreendessem como sujeitos daquele lugar. Dessa forma, eles começariam a valorizá-lo – conta a idealizadora do projeto, a professora de português Rosa Maria Martins.

sobre o Trabalho

Arlete (acima) escreve poesias que abordam a rotina na ilha. Ela e as demais mulheres do local carregam nas mãos as marcas do trabalho de limpeza e preparo dos siris para a venda e o consumo

As cinco estudantes do nono ano foram desafiadas a uma saída a campo para olharem como turistas o cenário diário. Segundo a professora, os moradores quase não saem da ilha porque a passagem até Rio Grande é considerada cara (R$ 8,85). Ela estava certa de que a turma voltaria à sala de aula com outra visão sobre a própria vida na ilha.

– Sempre acharam tudo feio e sem graça. Mas, naquele dia, disseram que a praia estava bonita e repleta de gaivotas. Ali, encontraram um grupo de sirizeiras trabalhando, elas riam muito enquanto tiravam a carne do siri, e ficamos contemplando de longe. Todas as mulheres eram conhecidas das meninas. Convidei-as para uma roda de conversa, outro dia, na escola – lembra Rosa Maria, que tem 60 anos.

O projeto interdisciplinar Valorizando Saberes Torotameiros recebeu a adesão de outros professores do sétimo e do oitavo anos: o aspecto ambiental foi enfocado em ciências; o espaço e as belezas, na geografia; os textos em crônicas e a pesquisa sobre o vocabulário local, em português. O foco principal do projeto foram as mulheres torotameiras – ou trotameiras, como se diz na ilha.

– Elas são fortes, não têm medo de enfrentar qualquer obstáculo. Lutam junto com as companheiras e se empoderam. São leoas porque fazem tudo pelos filhos, pois querem que eles tenham uma vida melhor do que aquela que elas tiveram. Mas não descuidam do companheiro. Trabalham em equipe com ele, indo para o mar, descascando siri, camarão e cortando os pescados em filés – resume Rosa Maria, a partir dos textos entregues pelos alunos.

as sirizeiras

Arlete, Maria Arlene, Janete e Cláudia
preferem trabalhar em grupo

Lugar de poesia

Sirizeira desde os 10 anos de idade, Arlete Borges, 47, orgulha-se em dizer que o dinheiro conquistado com o siri ajudou o filho Jean Borges Rocha, 25 anos, a concluir a faculdade de Matemática. Desde adolescente, ele auxiliava a mãe a retirar as carnes das garras maiores do crustáceo. O dinheiro arrecadado em moedas foi guardado num cofrinho. Assim, ela conseguiu reunir mais de R$ 1 mil.

– Foi com esse dinheiro que ele pagou a caução do aluguel de um apartamento na cidade (R$ 1,2 mil), quando passou no vestibular e precisou se mudar para o centro. Sem o siri, não teríamos conseguido pagar – conta, orgulhosa.

Viúva três vezes, Arlete é merendeira na escola e, nas horas vagas, divide-se entre o descasque e um hobby só revelado na roda de conversa com as estudantes: ela é poeta. Há sete anos, a sirizeira que havia cursado apenas a terceira série retornou à sala de aula, concluiu o Ensino Fundamental na Educação de Jovens e Adultos (EJA) e o Ensino Médio a distância. Descobriu nas letras uma paixão que já era latente desde a infância. Um caderno escolar repleto de composições segue junto com ela o tempo inteiro, inclusive na hora de descascar o siri.

– Voltar aos estudos me fez perceber que tudo pode se tornar inspiração na hora de escrever. A laguna, as pessoas, o dia bonito e até as sirizeiras – conta.

torotameiras

laguna é inspiração para Arlete . nas horas vagas, Neiloir também costura redes.

A exposição na roda de conversa dos estudantes ajudou Arlete a perder a vergonha de falar sobre as próprias poesias. No dia em que a reportagem esteve na Torotoma, ela fez questão de folhear o seu caderno. Nele, pequenos versos e poemas longos descrevem a realidade de quem mora na ilha. Arlete acabou surpreendendo, também, Rosa Maria e as colegas de trabalho ao propor produzir em alguns minutos um poema homenageando as mulheres da Torotama.

– Sabia que eu faço poesia? E posso fazer uma agora, só um minutinho – disse Arlete.

A entrevista com a professora nem tinha sido concluída quando ela retornou com uma folha de caderno nas mãos. Durante 20 minutos, sob a pia da cozinha da escola, Arlete escreveu As Sirizeiras:

 

Aqui na Torotama

não temos grande opção

trabalhamos com siri

sirizeiras de plantão.

 

Sirizeiras somos com alegria

é um meio de ganhar dinheiro

para sustentar a família.

 

Trabalhamos de sol a sol

incansáveis guerreiras

esta é a marca

das mulheres trotameiras.

 

Mulheres que trabalham

nesta luta divertida

mulheres sem mistério

sirizeiras atrevidas.

 

Profissão que me orgulho

que me orgulho bastante

de um anão

nos transformamos em um gigante.

 

Ao ler o poema diante da equipe de ZH e das colegas sirizeiras, Arlete se emocionou – e emocionou a todos ao seu redor. Ela diz que seu maior desejo é, um dia, publicar um livro com a própria obra. Mas não almeja ganhar fama. O que ela quer divulgar, por meio de seus versos, é a própria Ilha da Torotama.

 Comer siri? Não!

Entre as sirizeiras mais experientes da ilha, Arlete costuma ser chamada de “faca na bota”. É uma das únicas que se acostumaram a agarrar siri vivo sem ser atacada pelo animal. Todas carregam cicatrizes de cortes feitos pelas garras afiadas do crustáceo. É um mecanismo de defesa do siri, antes de ser jogado na água fervendo.

A árdua desconstrução do pequeno animal invertebrado, que muitas vezes cabe na palma de uma mão, criou uma situação comum entre as mulheres: nenhuma come siri. A justificativa está na dificuldade da função e na forma como precisam tirar a vida dele, atirando-o na panela quente.

– Passava tanto trabalho para limpar o siri, que não valia a pena comer. Nunca quis colocá-lo na minha boca – confessa a merendeira Maria Arlene Gonçalves da Costa, 47 anos, sirizeira desde os 12.

– Vocês não têm noção do trabalho que é – completa a faxineira Janete da Rocha, 58 anos, que também começou com a mesma idade de Maria Arlene.

Aproximando-se de um ritual único envolvendo as mulheres, a retirada da carne passa por pelo menos cinco etapas. A primeira é colocar os siris ainda vivos na água fervida sobre a brasa improvisada na rua – geralmente, o trabalho é desenvolvido no pátio para evitar o cheiro dentro de casa.

Depois, elas retiram o casco, um por um. Colocados num recipiente limpo, os siris recebem um jato de mangueira para lavá-los mais uma vez. Em seguida, as duas garras maiores são separadas, pois também têm carne própria, e cortadas a faca nas duas juntas. Só então as carnes começam a ser separadas. A do corpo é clara, enquanto a das garras é mais escura e tem menor valor. Para cada quatro quilos da carne branca, são 1,5 quilo de carne retirada das garras.

– Tenho uma raiva de garra, de tanto que me machuquei. Por isso, aprendi a pegá-lo num bote só, pela barriga, para separá-lo dos outros – orgulha-se Arlete.

– O nosso é o melhor siri, mais claro e mais gordinho – defende faxineira Cláudia Rejane Lopes Miranda, 43 anos, há 33 sendo sirizeira nas horas vagas.

Na roda de trabalho, as mulheres fazem o processo manualmente e nem percebem a hora passar. A poeta confessa que chega a cochilar descascando, tamanha naturalização da tarefa que compartilha com as vizinhas de ilha.

– Trabalhar ao lado das outras ajuda a passar o tempo mais rápido e a não dormir sobre a bacia – justifica Arlete.

Apesar da aparente facilidade, foram necessários 60 minutos para 50 siris virarem 1 quilo de carne branca. Por dia, cada uma descasca até 300 siris.

Sirizeira e pescadora

Ao contrário dos homens, que vão e voltam da laguna e do mar com os peixes e os crustáceos, restringindo seu trabalho à pesca, as trotameiras têm múltiplas funções na rotina de retirada dos animais da água. Além de descascarem e prepararem os siris, elas também aprendem a pescar e a costurar as redes usadas pelos maridos. Neiloir da Rocha, 55 anos, é pescadora aposentada. E trabalha como sirizeira há 37. Foi a difícil lida que a ajudou e ao marido, também pescador, a formar em Administração de Empresas a filha Gleici, hoje com 32 anos, que era a parceira de Neiloir no descasque de siri.

O filho Miguel, 19 anos, é vendedor no centro de Rio Grande e pretende cursar Engenharia. A filha mais nova, Melissa, 15, esteve entre o grupo de estudantes que fizeram parte do projeto da escola local. A adolescente ainda mora com os pais, mas Neiloir avisa que não quer que a caçula seja pescadora nem sirizeira. Entre os motivos, estão as marcas deixadas nas mãos pelas garras afiadas. Certa vez, a pescadora precisou tomar uma injeção antitetânica por causa de um corte em um dos dedos.

– É um serviço difícil e muito paciencioso. Quero meus filhos longe dessa vida, apesar de eu não conseguir me separar dela – diz a aposentada, que ainda pretende comprar uma casa no centro de Rio Grande, mas apenas para passeios: deseja continuar morando na Torotama.

Assim como as outras companheiras de função, Neiloir não come siri. Apesar disso, ela reconhece a importância do ofício nos últimos cinco anos, quando os peixe escassearam na região.

– O siri nos defendeu quando faltou peixe. Sou muito agradecida por este trabalho. Mas percebo que ele está ficando mais raro porque recebemos cada vez menos quando os maridos voltam da pescaria. Um dia, um senhor nos afirmou: “Vai chegar um tempo em que todos vão querer pescar siri e não vai ter”. Acho que esse dia está chegando – profetiza.

Projeto premiado

– Contar a nossa história a vocês nos ajudou ainda mais a perceber a importância do que fazemos – revelou, orgulhosa, Neiloir à equipe de reportagem.

O mesmo sentimento da aposentada foi vivenciado pelos estudantes da escola da ilha. A professora destaca que, a partir do momento em que as alunas se viram numa roda de conversa com essas mães, familiares e vizinhas, elas se reconheceram.

– Professora, meu texto me fez mais humana – uma delas confidenciou a Rosa Maria.

A tentativa deu certo e o projeto cresceu ainda mais, sendo reconhecido como uma das 10 práticas inovadoras no ensino de leitura e escrita durante o Seminário Com a Palavra, o Professor-Autor, em 2017, realizado pela Fundação Itaú Social.

Mais do que o prêmio, Rosa Maria celebrou as mudanças na Torotama. Demonstrou às alunas que o trabalho de sirizeira evidencia a força das mulheres e mostra aos homens que elas têm o que dizer e como ajudar para além dos serviços domésticos:

– Onde elas (estudantes) se reconheceram, elas entenderam que aquilo não era uma atividade menor. Era uma atividade de amor. E esse amor resgatou o sentimento de pertencimento que os estudantes têm agora pela Ilha da Torotama.

Beleza natural

O local de trabalho das sirizeiras

O que quer dizer?

Algumas palavras bem particulares usadas pelos moradores da Ilha da Torotama (e seus respectivos significados)

 

Arreganado – brabo, enjoado

Atacha – pessoa irritada

Barco a pano – barco à vela

Cana de leme – pau comprido

Croa – monte de areia no meio da laguna

Disamão – longe do caminho

Jacuba – café com farinha

Javira – morena clara

Miroqueira – fofoqueira (relativo à Miroca, uma moradora da ilha)

Panero – tábua colocada dentro do bote para evitar que se pise diretamente no fundo do bote, fazendo furos

Parelha – conjunto de utensílios de pesca, redes e botes pertencentes a um pescador

Pé de galinha – usado para remar

Poveira – mãe solteira

Proeiro – pescadores que trabalham para um determinado patrão

Rolo – tronco pequeno para colocar os barcos em cima para pintar ou fazer reparos e também para raspar a caraca

Trutameiro – pessoa que mora na Ilha da Torotama

Vassourinha – namoradeira

Virola – bolo doce amassado, cortado com a mão e dividido em bolinhas

Voga – remo maior

TEXTO

Aline Custódio

aline.custodio@diariogaucho.com.br

IMAGENS

Mateus Bruxel

mateus.bruxel@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Daniel Feix

daniel.feix@zerohora.com.br

DESIGN

Anna Fernandes e Nádia Toscan

anna.fernandes@zerohora.com.br

nadia.toscan@zerohora.com.br

As leoas da ilha dos siris
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As leoas da ilha dos siris