Um legítimo “shtetl” gaúcho
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No início do século 20, o Rio Grande do Sul recebeu famílias de judeus para formar, no Noroeste do Estado, colônias agrícolas como as do leste europeu. suas marcas persistem na paisagem do município de Quatro Irmãos

Shtetl, “cidadezinha” em iídiche, era algo usual até o século 19 na Europa Oriental, assim como era comum o próprio iídiche, o dialeto híbrido de alemão e hebraico que os judeus adotaram em meio às perseguições sofridas. Essas aldeias, nas quais os hábitos judaicos se mantinham preservados, surgiram no século 12, quando judeus receberam a permissão de colonizar território na Polônia. Se você viu o clássico Um Violinista no Telhado (1971), de Norman Jewison, emblema do equilíbrio entre tradição e modernidade, sabe do que está sendo falado aqui. O que talvez você não saiba é que o Rio Grande do Sul teve um típico shtetl, como os de Rússia, Romênia e Polônia. A existência de algo tão singular ocorreu por obra do Barão Maurice de Hirsch, filantropo alemão de origem judaica que, no fim do século 19, preocupado com as perseguições, criou em Londres a Jewish Colonization Association (ICA) e tratou de instalar colônias agrícolas no Brasil, na Argentina, no Canadá e nos Estados Unidos.

Maurício Agranionik segue a tradição rural herdada do pai e do avô, que veio da Rússia em 1912

O “shtetl gaúcho” se instalou em Quatro Irmãos, a 30 quilômetros de Erechim (na época, Paiol Grande), passando 73 quilômetros de Passo Fundo, para quem parte de Porto Alegre. Fica pertinho do núcleo colonial de Erebango (a apenas 17 quilômetros de distância), outra localidade onde chegaram judeus – além da colônia pioneira de Philippson, nas cercanias de Santa Maria (a 25 quilômetros do centro da cidade, no coração do Estado).

O começo da imigração judaica no Brasil ocorreu em 1904, em Philippson, nome que homenageia Franz Philippson, diretor da ICA. Eram de 37 famílias, que chegaram principalmente da Bessarábia, região da Europa Oriental banhada pelo Mar Negro. Depois, vieram romenos, russos, alemães e poloneses. Alguns, antes de chegar ao Rio Grande do Sul, passaram pela Argentina. Em Philippson, receberam lotes de 25 a 30 hectares, pequenas casas de madeira, ferramentas agrícolas, animais e sementes. Poderiam pagar a longo prazo pelo novo lar e pelos equipamentos destinados à subsistência.

À Fazenda Quatro Irmãos, os judeus chegaram entre 1911 e 1914. Muitos deles partiram depois para outras paragens, e alguns mantiveram propriedades rurais por ali mesmo, mas estabelecendo residência em Passo Fundo e Erechim.

Em Philippson, logo na primeira colheita, os colonos perceberam que as terras não eram apropriadas para a agricultura, e, em 1906, uma praga de gafanhotos devorou toda a pouca plantação de trigo e fumo que vingara nas terras pedregosas. Em Quatro Irmãos, a aldeia prosperou por mais tempo, permitindo que se desenvolvesse algo comparável aos shtetls. Tornou-se comum a imagem de judeus vestindo botas e bombachas. Foram erguidas sinagoga e escola, e havia dois cinemas. No total, mais de 400 famílias chegaram em diferentes levas. A permanência no povoado, porém, enfrentou dois empecilhos. O primeiro é que a maioria dos judeus tinha pouca intimidade com o trabalho rural. Em razão das perseguições, não podiam ter sua própria terra na Europa, o que lhes limitava as opções profissionais, como as áreas médica, comercial e financeira, todas atividades urbanas, e algumas não praticadas por cristãos. Outro motivo foi o conflito de 1923, que voltou a opor pica-paus (governistas) e maragatos (opositores ao presidente estadual Borges de Medeiros, que mantinha hegemonia no poder, em seu quinto mandato), 30 anos depois da Revolução Federalista, em que as degolas foram uma marca sangrenta. O colono David Faiguenboim foi assassinado em meio à refrega, e houve diversos episódios de violência. Centenas de judeus fugiram apenas com as roupas do corpo e seus pertences essenciais.

Medo e fuga

No estudo Imigração Judaica no Rio Grande do Sul – Pogroms na Terra Gaúcha?, a historiadora Ieda Gutfreind aborda o trauma histórico dos colonos e relata o “temor do ressurgimento” daquelas vivências de horror em terras distantes:

“Os atos de violência nomeados pogroms fazem parte da memória coletiva judaica, no caso em estudo, dos imigrantes radicados no extremo sul do Brasil. Esse grande medo vai se exteriorizar nos anos 1920. (...) Os colonos sofreram atos de violência e de humilhações. Saques, roubos de animais, de objetos pessoais, de instrumentos agrícolas; eram comuns as requisições de suprimentos, pagamentos de subornos e de taxas de guerra tanto para legalistas quanto para insurretos. Casas foram invadidas, e as colheitas, destruídas (...).

Os meses e os anos em que passaram por provações levaram os colonos ao esgotamento dos recursos de sobrevivência e da tolerância emocional, agravados com os estragos nas linhas férreas, que impediam o transporte de pessoas, produtos e mercadorias”.

Conta Maurício Agranionik, “judeu de bombacha” que segue a tradição rural do pai e do avô e é seguido pelo filho Hercio, agrônomo de 40 anos (a outra filha de Maurício e da sua mulher, Helena, chama-se Eliane, tem 42 anos e vive nos Estados Unidos): – Muitos judeus não tinham vocação agrícola, e outros ficaram impressionados com a violência de 1923. Temiam que se repetissem os pogroms (perseguições violentas contra os judeus na Europa). Por isso, muitos partiram daqui com destino a Porto Alegre e a diversos outros pontos do Brasil.

Ao falar sobre o pai, Jacob, e o avô, Abrão, Maurício fica emocionado, sobretudo ao recordar a rotina no campo.

– Olha, os dois eram como eu. Sabiam dizer a idade de um cavalo só de abrir a boca dele e olhar a arcada dentária – lembra.

Ao lado do pai, Hercio dá uma pista sobre a técnica que os estudos lhe deram.

– Já eu sei a idade do cavalo levantando o rabo – sorri.

Maurício olha para o prédio de madeira que sediou o hospital e hoje abriga a Secretaria da Educação e o memorial da colonização judaica, com seus objetos típicos e fotografias de época. A edificação é o principal ponto turístico do município de 1.840 habitantes, ainda dedicado sobretudo à agricultura, em especial à soja. Após um silêncio que dura alguns segundos, comenta:

– O que atraía judeus a virem é que quem já estava aqui mandava cartas contando que se podia arrendar e até comprar terras. Na Rússia, de onde viemos, pessoas com sobrenome judeu não podiam nem arrendar. Foi o que o Abrão Litvin, que chegou a Philippson, contou para o meu avô em 1911. Minha família veio em 1912.

O sonho de uma vida melhor para os descendentes era uma imposição. Muitos o concretizaram de duas formas: pela aliá (imigração judaica) à terra de Israel e pela emigração para o chamado Novo Mundo.

Agranionik leva a reportagem para conhecer sua propriedade rural, que se espalha em mais de 3 mil hectares, onde se cria gado e se plantam soja, aveia e trigo. Afirma, orgulhoso, que foi o primeiro patrão do CTG de Quatro Irmãos, entre 1964 e 1965, sendo hoje patrão honorário. Ele se diz “um legítimo judeu de bombacha”:

– Tenho certeza de que o Barão de Hirsch queria mostrar como os judeus podem trabalhar a terra, o que era negado no local de onde vieram. E tenho orgulho de mostrar isso.

Mas a família não se limitou ao setor rural, para o qual recebeu, ao chegar, cem hectares, uma junta de bois e uma vaca de leite, que foram pagos em 20 anos.

– Meu avô, Jaime Melnik, construiu aqui uma fabrica de azeite – conta Maurício. – Ele fabricava também farinha de mandioca. E ergueu o hospital. A colonização prosperou bastante até os anos 1920. Tinha até uma ferrovia entre Erebango e Quatro Irmãos. Tivemos aqui a primeira cooperativa de energia elétrica do Brasil.

O prefeito de Quatro Irmãos, Adilson de Valle fala sobre a colonização judaica com um conhecimento que faz ele próprio parecer um judeu cuja família veio há um século. Dá detalhes da vida difícil das comunidades judaicas na Europa e da contraface do acolhimento no Brasil:

– Foi aqui o ponto de partida para os judeus no Brasil. Muitos depois seguiram para Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo. Mas Quatro Irmãos é o símbolo da colonização judaica no Brasil. A história da imigração judaica é a nossa história, mesmo que poucas pessoas tenham ficado por aqui.

A origem do nome da cidade se deve às terras da família Santos Pacheco, quatro irmãos que possuíam 93.985 hectares, fazendo parte do município de Passo Fundo em 1909. No fim do século 19, o Barão Hirsch fundou a ICA, que adquiriu a fazenda do quarteto para transformá-la na incipiente colonização judaica.

O atual presidente da Federação Israelita (Firs), engenheiro Zalmir Chwartzmann, 66 anos, é filho de uma das famílias que colonizaram Quatro Irmãos. Saiu dela rumo a Erechim em 1961 e seguiu para Porto Alegre em 1966. Seu pai, Samuel Chwartzmann, escreveu Memórias de Quatro Irmãos (Est Edições, 2005) apontado como um dos livros mais importantes sobre a colonização judaica na região. Na capa, há uma foto do pioneiro, Samuel, de bombachas, montando o cavalo com a pequena cidade ao fundo.

– Quatro Irmãos era um legítimo shtetl. As pessoas faziam as coisas pensando nas datas judaicas. Minha mãe comprava roupas antes do Rosh Hashaná (ano novo judaico) e o Pessach (Páscoa judaica). As datas eram lembradas sempre vinculadas às festas religiosas – recorda Zalmir.

Cultura da mandioca

O antissemitismo, que remonta à destruição, por parte dos romanos, do Segundo Templo no início da era cristã, obrigando os judeus a deixarem a atual terra de Israel, chegou ao máximo de crueldade no Holocausto, nos anos 1940. Naquela época, Philippson, Erebango e Quatro Irmãos eram exemplos de porto seguro para um povo inteiro. Acostumados à instabilidade nos territórios que ocupavam, os judeus intensificaram sua educação com a leitura de textos, como a Torá (o Pentateuco, primeiros cinco livros do Velho Testamento), e a formação nas áreas cultural e médica. Os imigrantes fundaram uma escola em Philippson, cujo ensino era realizado em português e acolhia também os brasileiros nativos. Em Quatro Irmãos ocorreu algo muito semelhante. O forte da escola, na cidade do noroeste gaúcho, era o teor bilíngue das aulas. Havia um professor de português e outro de hebraico e iídiche. Mas havia um problema: o plantio de mandioca, incentivado pela fábrica das famílias Agranionik, Melnik, Litwin e Nagelstein, levava todos os colonos a se concentrar nessa atividade, vislumbrada como a principal alternativa de prosperidade.

No seu livro, Samuel Chwartzmann narra uma situação curiosa: “Nas épocas da plantação da mandioca, as meninas eram utilizadas em serviços mais leves e não frequentavam a escola. No livro de registro de chamada da escola, as ausências eram justificadas da seguinte maneira: Dora Nagelstein: plantando mandioca... Cecília Nagelstein: plantando mandioca...”

Em outros trechos, há episódios que contam um pouco sobre a vida cultural da comunidade de Quatro Irmãos:

“Havia mulheres e moças, entre estas a minha mãe, que, tendo boa voz, cantavam em iídiche, romeno e russo. Os jovens também se reuniam para ler, faziam jogos de prendas ou dançavam.

(...) Quase todas as noites, após os trabalhos do dia, grupos se reuniam para ler, debater cultura, política e assuntos gerais. Apesar de, naquela época, não haver rádio nem televisão, estava-se a par de tudo o que se passava no mundo. A biblioteca e algumas pessoas da comunidade recebiam  jornais, tanto em iídiche quanto em português. Muitos já sabiam ler em português e, nas reuniões, liam noticiário em voz alta para que todos tomassem conhecimento. Dessas reuniões saíam muitos casamentos com festas maravilhosas, com leiquech (bolo de mel) e shtrudel (à base de amendoim), carnes cozidas em panelões de ferro e pães fresquinhos, tudo regado a bebidas finas, como água de poço ou de fonte. Não era preciso garçom, pois, quando se tinha sede, apanhava-se um caneco ou um balde, ia-se no poço, tirava-se água fresquinha e bebia-se à vontade.

(...) Em 1929 ou 1930, chegou a Quatro Irmãos o senhor Natan Cohen, irmão do ex-professor Isaac Cohen, que era maestro. Tocava tanto instrumentos de sopro quanto de corda. Por intermédio da ICA, foram comprados instrumentos e formados diversos conjuntos, que abrilhantavam muitas festas e noitadas. Naquela época, todos eram pobres, mas unidos. Ninguém era pior, nem melhor. Todos eram iguais, unidos pela necessidade.”

O prédio de madeira que era hospital e foi convertido em memorial, localizado ao lado da prefeitura, foi revitalizado em 2012. É um ponto de encontro, além de reunir estudiosos da história dos imigrantes. Outro local de visitação para os pesquisadores é o cemitério israelita. É ali que descansa boa parte daqueles pioneiros que atravessaram o mundo buscando dar uma vida diferente para seus descendentes. Tombado como patrimônio histórico municipal em 6 de maio de 1997, o cemitério abriga os corpos de 172 pessoas no alto de uma coxilha em meio a eucaliptos. São 84 homens, 71 mulheres e 17 crianças, conforme levantamento de Samuel Chwartzmann. Outro levantamento, feito por Marcos Feldman, dá conta da existência de 171 corpos – 82 homens, 72 mulheres e 17 crianças. A diferença é mínima e de difícil comprovação, porque nem todas as lápides estão preservadas suficientemente. O cemitério sofre com o desgaste do tempo e eventuais ações de vândalos.

Chama a atenção que a disposição dos corpos atende a costumes antigos: homens, mulheres e crianças separados. Os nomes das pessoas estão inscritos em iídiche. Muitas letras foram apagadas pela ação do tempo. Os últimos enterros no local, de Gregório Maguilnik e Nechame Iovchelovitch, ocorreram em 1979, encerrando as atividades iniciadas em 1913. De lá para cá, o local funciona apenas como ponto turístico.

 

Rumo a outras paragens

Se há os que permaneceram na região, houve um contingente maior de judeus que deixaram Phippson, Erebango e Quatro Irmãos, em busca de horizontes mais urbanos.

A migração para as grandes cidades intensificou-se, na verdade, em 1920. Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo eram os principais destinos. No Rio Grande do Sul, Erechim e Passo Fundo concentraram o recebimento de imigrantes, mas houve quem viajasse também a Santa Maria e Cruz Alta. No bairro Bom Fim, na capital gaúcha, foi criada a associação Poilisher Farband, de judeus poloneses, que prestava assistência e apoio a quem viesse, da Europa Oriental e de outros locais.

Nos anos 1930, intensificou-se a chegada de judeus alemães, fenômeno provocado pela ascensão de Hitler ao poder. Na década de 1950, os judeus expulsos do Egito, em meio aos confrontos com Israel, também chegaram a Porto Alegre. Mas tudo começou em Philippson, Erebango e Quatro Irmãos.

TEXTO

Léo Gerchmann

leo.gerchmann@zerohora.com.br

IMAGENS

Félix Zucco

feiix.zucco@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Daniel Feix

daniel.feix@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

 

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

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