Depois do fim do mundo
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Há 80 anos, Putinga, no Vale do Taquari, presenciou

um incidente raro: a queda de um meteorito. O dia virou noite e uma bola de fogo cruzou o céu, relatam testemunhas

Quando o céu azul começou a escurecer repentinamente por volta das 16h30min, os cerca de 400 católicos que festejavam em frente à igreja Nossa Senhora da Purificação, no centro do então distrito de Putinga, município de Encantado, no Vale do Taquari, logo previram uma chuva forte. Era 16 de agosto de 1937,

Dia de São Roque, o padroeiro daquela comunidade que duas décadas depois se emanciparia.

Parte dos festeiros decidiu se abrigar dentro do templo cristão. Até os cavalos “estacionados” próximos à festa foram protegidos com capas. Mas o que seria a chegada de um temporal logo se revelou outra coisa, espalhando o desespero. Sobre olhos e ouvidos incrédulos, uma bola de fogo cruzou o céu da localidade. Apavoradas, famílias inteiras saíram correndo sem rumo. Quem imaginou a chegada do apocalipse tratou de esperar a última bênção do padre Domingos Carlino. Sem sucesso, ele tentava acalmar a todos, como recorda o hoje comerciante aposentado Cestílio De Mari, 86 anos, participante da festa na igreja há exatas oito décadas:

– Apareceu um risco vermelho vindo do alto, feito o sol, e aquilo explodiu. Deu aquele estrondo. Chegou a tremer a terra, e parecia uma chuva de fogo. Todo mundo se assustou, achando que vinha o fim do mundo. Foi uma correria.

Hermínio e anair, 89 e 85 anos: Casal guarda medalha de “testemunha ocular” da queda do meteorito, cuja imagem reproduz a pintura de Gisela Schinke (acima).

Na mesma hora, em Linha Carlos Barbosa, a menos de dois quilômetros, Hermínio Marchese, então com nove anos, só teve tempo de se esconder embaixo de um chiqueiro, ao ouvir os gritos de alerta da mãe:

– Nós estávamos brincando no campo, numa turminha de oito guris. Tinha escurecido muito rápido. De repente, deu um pequeno relâmpago, e boom, boom! Minha mãe veio na janela e me chamou: “Te escapa, guri, que vem o fim do mundo!”.

Apenas o médico da cidade, o italiano Vicenzo Guaragna, e o pároco levantaram a hipótese de um meteorito ter caído na região. Mesmo desacreditados pelos moradores, eles tinham razão:

Putinga acabara de presenciar a queda do fragmento de quase uma tonelada vindo do espaço.

O choque do bólido contra os morros foi ouvido e sentido em cidades a 180 quilômetros de distância, como Candelária, no Vale do Rio Pardo, conforme relatos da época. Um cheiro de enxofre se espalhou pelo ar e o rastro de 15 quilômetros de fumaça permaneceu por horas no céu do Vale do Taquari. O evento é considerado o maior deste tipo já ocorrido no Brasil, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Depois da explosão, o dia voltou a clarear, mas as famílias ainda esperavam o apocalipse. Na casa de Marchese, a notícia chegou rápido.

– Vieram lá de cima do morro e disseram que havia caído uma pedra. Mas ficamos nos perguntando como é que poderia ter caído uma pedra inteira do céu? Quem é que atirou ela de lá? Teve gente que desafiou: “Vai até lá! Se é verdade que caiu uma pedra, eu quero comê-la inteira!” – lembra Marchese, às gargalhadas.

Os moradores de Linha Carlos Barbosa trataram de identificar o que acabara de se espalhar entre as terras dos agricultores. Partes do meteorito caíram próximas ao potreiro do sítio dos Marchese.

– Foi bem no pé do morro brabo – relembra Hermínio, apontando para o topo de uma montanha na entrada da cidade – Dois velhos que viram tudo enquanto tomavam chimarrão na porta de casa disseram que tinha caído alguma coisa. Fomos com uma rapaziada ver de perto. Eu pensava que era dinheiro – completa o senhor de fala mansa, divertindo-se.

Ao se aproximar de um dos locais da queda, Hermínio conta ter visto um buraco de cerca de cinco metros de profundidade. Era o maior, mas havia outros. Havia uma enorme pedra redonda dentro dele.

– Era preta e brilhosa, com mais de 50 quilos, mas não foi a única. Caíram pedaços por toda parte.

Na hora, ninguém deu muita bola. Mas os curiosos começaram a aparecer – comenta Hermínio.

No dia seguinte, o subprefeito de Putinga, Hermínio Cé, coordenou uma equipe para desenterrar os pedaços espalhados em mais de 10 propriedades. Eles foram distribuídos entre os moradores e também encaminhados à prefeitura de Encantado. O prefeito, Demétrio Costi, enviou para Porto Alegre dois fragmentos que ficaram expostos no saguão do jornal Diário de Notícias, o primeiro periódico do Estado a publicar a história, antes de serem enviados a museus. Um dos fragmentos, de 45 quilos, até hoje está no Museu de Mineralogia e Petrologia Luiz Englert, da UFRGS, e outro, de nove quilos, no Colégio Anchieta. No Brasil, há partes catalogadas também no Museu Nacional do Rio de Janeiro, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e no Museu Geológico da Bahia, em Salvador.

Em outra iniciativa, o já falecido médico Hardy Grunewaldt, de Arroio do Meio, reuniu um grupo de pesquisadores, recuperou outros pedaços e os doou a centros de pesquisas, museus e bibliotecas ao redor do mundo. Receberam pedaços do meteorito de Putinga o Observatório do Vaticano,

o Instituto de Mineralogia de Modena, na Itália, o Museu de História Natural de Londres, o Museu Nacional, em Washington (EUA), o Museu de História Natural, em Nova York (EUA), o Instituto de Meteoritos, em Albuquerque (EUA), e o Museu de Munique, na Bavária, na Alemanha.

Na década de 1970, Hardy ainda encomendou à artista plástica Gisela Schinke um quadro que retrata a passagem do asteroide sobre o Rio Taquari, visto de Arroio do Meio.

Ele foi pintado a partir dos relatos das testemunhas. É a única imagem que se tem daquela data. Depois da morte do médico, o quadro ficou com familiares dele. Gisela, 87 anos, mora em Estrela, também no Vale do Taquari.

MAIS VELHA QUE A TERRA

Pesquisador da área de geociências do Inpe, o geólogo Paulo Roberto Martini ressalta que, nas últimas oito décadas, o Brasil registrou apenas mais uma queda de meteorito com testemunhas. Ela ocorreu há cinco anos, na divisa entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo. Porém, os blocos encontrados tinham entre 50 gramas e 100 gramas. Martini, nascido no Vale do Taquari e cujos pais testemunharam o fenômeno ocorrido em Putinga, é um estudioso especializado no caso gaúcho.

– Pelos vestígios encontrados, calculamos que o bólido era gigante e ingressou na superfície a uma velocidade de 50 quilômetros por segundo, enfrentando uma temperatura de até 1,3 mil graus Celsius. Existem fortes indícios de que não se trata de um refugo de asteroide, mas de um asteroide inteiro. Algo raro de ocorrer com testemunhas oculares. Precisamos encontrar outras partes para confirmar essa teoria.

Outro fator relacionado ao meteorito Putinga é seu peso real. Pelos cálculos do cientista, baseados nas medições do campo de espalhamento e da área de observação, metodologias usadas pelos principais institutos geológicos do mundo, ele poderia pesar até cinco vezes os 200 quilos que foram recuperados até agora. Paulo afirma que qualquer pedra magnética, de cor escura ou até mesmo que possa se parecer com basalto, encontrada naquela região, tem chance de ser um resquício do meteorito. Mas o que o torna verdadeiramente singular, segundo o geólogo, é a composição dos blocos já localizados. Identificado pelos cientistas como condrito, trata-se de uma rocha que demonstra não ter sido fundida no interior de um planeta como o nosso.  Uma rocha mais velha do que a Terra.

– Os blocos têm 4,3 bilhões de anos. A rocha mais antiga da Terra tem 3,4 bilhões ou 3,5 bilhões de anos. O de Putinga tem um tipo de associação mineral não existente na Terra, desenvolvida em situação de pressão muito além das encontradas por aqui. Ou seja, ele tem um valor científico incalculável por conter traços do material que deu origem

ao nosso Sistema Solar – argumenta o pesquisador.

A partir das pesquisas de campo, que contaram com depoimentos dos que estavam na região no dia da queda, Paulo traçou o possível trajeto de entrada do bólido até a colisão. Ele teria vindo de Sul para o Norte, a partir do município de Fazenda Vilanova, a 92 quilômetros de Putinga, percorrendo a margem esquerda do Rio Taquari e liberando pedaços em Encantado, Ilópolis,

Anta Gorda e São José do Herval. Sobre o motivo de o céu ter escurecido, Paulo acredita que a posição do sol naquele horário do dia e a poeira solta pelo próprio meteorito, chapando o astro solar, deixaram o dia nublado em alguns locais.

– O bólido não deixou uma grande cratera, pois explodiu no ar. Os sismógrafos da UFRGS não registraram o impacto, mesmo

com a onda sonora muito intensa. Quando ele entrou na atmosfera, mais densa do que nos níveis superiores, houve uma fricção maior. Ele venceu a ablação (perda de material sofrida pela superfície de um veículo espacial, por fusão ou vaporização, no seu regresso à Terra) que a atmosfera provocou. Então, começou a vibrar ainda mais, fazendo aumentar a temperatura do bloco e transformando-o na bola de fogo relatada pelos moradores – resume o geólogo.

Parte do meteorito que caiu na região atualmente sob os cuidados da prefeitura.

DESTROÇOS ESPALHADOS

Apesar de a comunidade científica valorizar a ocorrência de Putinga – que no mês passado ganhou até programação especial alusiva aos

80 anos no Planetário Professor José Baptista Pereira, em Porto Alegre –, o fato só voltou a ter repercussão no município de 4 mil habitantes no final dos anos 1990, quando pesquisadores voltaram à região em busca de novos vestígios. A própria prefeitura precisou desembolsar R$ 2,5 mil em 1999, pagos a um morador de Ilópolis, para ter um fragmento de 1,7 quilo. Os dois lados da peça têm escritas gravadas pelo dono anterior e que incluem até o nome da cidade vizinha. Por mais de 20 anos, Putinga tentou sem sucesso encontrar as demais partes espalhadas pelo mundo para reforçar o título que a identifica: a Cidade do Meteorito. Hoje, o pequeno pedaço de pedra escura fica guardado num cofre e só é exposto em eventos considerados importantes pela administração municipal. O último ocorreu no aniversário de 80 anos, em apresentação a estudantes.

No horário aproximado da queda, os organizadores lançaram um morteiro para lembrar a explosão ocorrida no morro de Linha Carlos Barbosa. Até o começo do próximo ano, o prefeito de Putinga, Claudiomiro Cenci (PP), pretende inaugurar o memorial do meteorito dentro da nova casa de cultura municipal, em fase de finalização da obra. No local, conforme o prefeito, o fragmento ficará exposto dentro de uma redoma com vidro blindado.

– Vamos mantê-lo em segurança. Imagina se vem um caçador de meteorito e inventa de quebrá-lo em dois ou três pedaços. Não dá! Queremos que os moradores sintam orgulho em dizer que são da Cidade do Meteorito – diz Cenci.

O sentimento do prefeito já é esboçado por quem mantém vivo

na memória o dia incomum. Hermínio Marchese, 89 anos, é uma dessas pessoas. Morando com a mulher Anair, 85 anos, no mesmo lugar onde presenciou a queda, o agricultor faz questão de apresentar a única recordação restante da data. Na sala de casa, exposta em lugar de destaque, está a medalha recebida por ele em 2007 de “testemunha ocular da queda do meteorito”.

– Por muitos anos, meu pai guardou um pedaço da rocha em casa. Cada um que chegava pedia uma lembrança e ele foi cortando a pedra. Foi tudo, não ficou nenhum pedacinho em casa – revela, aos risos.

Na casa de De Mari, a situação foi parecida. Filho do dono de um hotel da época, o comerciante aposentado acompanhava o pai partindo a bola de pedra do tamanho de uma melancia em pequenos pedaços. Cada vendedor que chegava à cidade hospedava-se no hotel, ouvia a história e ganhava um pedaço do artefato.

– Um pedacinho para um e para outro. Até que sobrou só um do tamanho da minha mão, e o pai disse que era hora de parar de cortar. Quando o hotel fechou e nos mudamos, a pedra sumiu. Não sobrou nada, a não ser as minhas lembranças – suspira De Mari.

– Ele tem que se orgulhar de ter feito parte dessa história. Isso aí é uma coisa que fica para a vida inteira, né? – acrescenta Lurdes De Mari, 75 anos, mulher do aposentado.

Também houve quem decidisse jogar a relíquia bem longe – caso, por exemplo, da agricultora falecida Rosa Secco, vizinha dos Marchese. Ela viu o relâmpago e o rastro de luz do portão de casa. Depois, encontrou 20 quilos da pedra, material que foi doado porque temia maus presságios.

Outra vizinha, lembra Marchese, durante muitos anos guardou um pequeno pedaço para segurar a porta da sala nos dias de ventania.

– Era uma vovozinha. Ela botava a pedra no assoalho. Veio um e disse que tinha que sumir com a pedrinha porque podia trazer outros raios. E la fez isso, mas não falou nada para a família. Quando os outros se deram conta, já tinha sumido. Ela morreu sem contar onde havia escondido. Acho que jogou no banhado – conta Marchese.

A pensionista Ana Cerutti, 87 anos, outra rara testemunha do incidente com o meteorito, passou anos sem comentar o acontecido.

Na efeméride de 80 anos, resolveu falar aos amigos, em conversa presenciada pela reportagem de ZH.

– A bola era bem grande, mas foi sendo picotada – diz. – Uma vez, veio um homem, pesquisou, mas achou que não era um meteorito. Ele queria levar a pedra que estava com a gente, mas eu não deixei. Guardei como lembrança dos meus pais. Essa pedrinha é o que sobrou dela – completa, mostrando o artefato que, depois de ficar anos dentro de um armário, agora encontrou uma utilidade:

– Fica segurando a porta contra o vento. Aí não me estorva.

TOPO

TEXTO

Aline Custódio

aline.custodio@diariogaucho.com.br

IMAGENS

Mateus Bruxel

mateus.bruxel@diariogaucho.com.br

EDIÇÃO

Daniel Feix

daniel.feix@zerohora.com.br

DESIGN

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Paola Gandolfo

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