Segredos de Papai Noel
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Erny Hennig incorporou a figura do bom velhinho e, ao longo de décadas de trabalho em shoppings, casas e empresas, fez sua imagem se confundir com a do benfeitor natalino

 

Foi em uma noite de Natal, muitos anos atrás. Lustrosas botas pretas, alvas polainas, túnica vermelha, o comprido gorro com pompom à ponta, a rigor como deve ser, Papai Noel visitou quatro ou cinco residências de Porto Alegre para entregar pacotes e alimentar fantasias infantis. Finda a jornada, depois de horas para lá e para cá, virou-se para a mulher dentro do veículo – era um automóvel, não um trenó – e declarou:

– Agora quero fazer a minha ceia de Natal! Quero garçom de luva branca, quero vela na mesa, quero beber champanhe.

 Já era uma da madrugada do dia 25. Noel e a mulher percorreram a Protásio Alves, vasculharam a Auxiliadora, palmilharam a Floresta. Nenhuma porta aberta. Donos de restaurante também têm família, também querem estar com os seus na noite feliz.

É assim mesmo, a ceia teve de ser na loja de conveniência de um posto Shell, em uma esquina qualquer.

Quem entrasse ali naquele momento veria Papai Noel, com a ajuda de uma latinha de cerveja, empurrar um sanduíche triangular goela abaixo.

– Nem me fala. Não tenho noite de Natal – desabafa o velhinho.

Cabe ressaltar que, nas visitas de lar em lar, ninguém se lembra de oferecer algum quitute ou uma taça de espumante ao célebre personagem. Ele vai de banquete em banquete, mas o máximo que fazem é perguntar-lhe se aceita um copo de água, coitado, enfurnado dentro daquela roupa em pleno calorão.

“Pô, água enferruja!”, pensa ele.

– Acham que faço uma boquinha nessas visitas, mas não tem nada disso! Sou um estranho nas famílias. É só eu dar os presentes e já vão abrindo a porta: “Te manda”. Acostumei – revela.

 

O Papai Noel em questão é um dos mais longevos do Estado, Erny Egon Hennig, que segue firme na atividade às vésperas de completar 88 anos de idade. O leitor pode achar que não, mas já o conhece: viu-o em capas de jornal, em comerciais de TV, em alguma festa de empresa, escola ou hospital, ou então com uma criança ao colo, sentado numa poltrona vermelha, no corredor de um shopping center.

Na origem Hennig era empresário, dono de uma companhia especializada em montar estandes em feiras e congressos. Em 1990, seu filho, Fredo Hennig, de 33 anos, participou da reinauguração do autódromo de Tarumã, pilotando um Fiat Uno em prova do campeonato gaúcho de marcas e pilotos. O carro capotou na pista. Fredo foi arremessado para fora e partiu a coluna. Teve morte quase instantânea. Desgostoso, o pai resolveu largar a empresa. Passou a dedicar os dias a entalhar pequenas esculturas em madeira, um hobby de infância, ao som de discos de música clássica.

Acontece que, à medida que envelhecia, ficava cada vez mais parecido com a clássica figura do Papai Noel: a corpulência, os olhos azuis, os cabelos brancos, a barba comprida. Os convites para sair do ócio e animar natais começaram a se multiplicar. Na estreia, deram-lhe uma vestimenta de veludo e mandaram-no distribuir balas e doces na Praça Maurício Cardoso, debaixo de uma soalheira dos infernos.

– Tomei um suadouro sem tamanho! Foi a maior sauna da minha vida – recorda.

Outro qualquer poderia ter ficado com uma ojeriza duradoura. Hennig descobriu uma vocação. Ter cara de Papai Noel era mera circunstância, percebeu. Onde ele realmente carregava o generoso ancião da Lapônia era na alma. Era um jeito especial de falar com as crianças e de entrar no mundo delas, um anseio de realizar sonhos e espalhar alegria, um gosto pela magia e pela solenidade dos natais da própria infância, a facilidade chocarreira e convincente com que soltava a risota clássica:

– Hohoho!

Erny Egon Hennig não se vestia de Papai Noel; ele era o Papai Noel. Por exemplo, um dia apareceram dois irmãos no Shopping Iguatemi, onde ele trabalhou por década e meia.

Um menino e um menina.

– Fizeram uma cartinha de Natal?

– Não – respondeu a garota, que era maiorzinha.

– Então têm de fazer. Porque o Papai Noel é velho. Se tu disseres agora o que queres, o Papai Noel esquece. Quando chegares em casa, pede para o papai e para a mamãe ajudarem a escrever – instruiu.

– Não, nossos pais não nos amam mais – contou a menina.

Hennig estremeceu debaixo da fantasia vermelha.  Pediu a uma noelete que chamasse a senhora que acompanhava os dois irmãos. A mulher contou-lhe que era a avó, que os pais haviam abandonado as crianças um ano antes, que haviam desaparecido, deixando-as praticamente só com a roupa do corpo.

No dia 25, Hennig entrou no carro com a mulher, Ingeborg, e foi até o endereço dos manos, no alto da Avenida do Forte. Levava dois brinquedos empacotados e enfeitados com fita. Como ia à paisana, estacionou o carro uns metros à frente e pediu que Inge fizesse a entrega, para que as crianças não o vissem sem a fantasia e não duvidassem da existência de Papai Noel. A avó apareceu ao lado do carro uns minutos depois, chorando.

– Foi o melhor presente de Natal que eles poderiam receber – disse.

Hennig chorou junto.

Teve outra ocasião em que um menino foi conversar com ele no shopping e contou que gostaria de ganhar uma bicicleta.

– Mas sei que não vou ganhar, porque minha mãe está muito doente, e meu pai está gastando todo o dinheiro com remédios.

Hennig comprou ele mesmo uma bicicleta para o garoto. Mas o menino morava no Interior, e o Papai Noel não encontrou uma forma de fazer a entrega. Teve de dar o presente a outra criança. Faz 20 anos, mas nunca esqueceu daquele garoto.

– Isso ainda está atravessado na minha garganta. Esse menino já deve ser um gurizão agora. Eu me comovo. Algumas coisas que as crianças dizem machucam, principalmente quanto contam que os pais faleceram e pedem: “Papai Noel, faz meu pai voltar, faz minha mãe voltar”. Não sei como desdobrar isso. Não faço milagres.

A identificação é tamanha que, mesmo fora do período natalino, e à paisana, o idoso do bairro Boa Vista é reverenciado como Papai Noel – e se comporta como tal. Jamais sai de casa sem carregar uma bolsa com pirulitos – ele compra pesados pacotes com mil unidades de cada vez – que distribui a rodo, para o frentista do posto de gasolina, gente que encontra nas calçadas, crianças em geral. De vez em quando está em um restaurante e vem uma mãe pedir-lhe um favor:

– Meu filho acha que o senhor é o Papai Noel. Pode falar com ele?

Hennig deixa passar um tempo, levanta-se como se fosse pagar a conta ou ir ao banheiro e passa pela mesa da família. Encara a criança e estanca.

– Espera aí! Tu não és o Fernando?

O menino arregala os olhos, surpreso.

– Em me lembro de ti – continua Hennig. – Fui à tua casa no Natal. Levei um presentinho. Tu estás comportadinho, obedecendo à mamãe? Estás comendo a comidinha toda ou estás deixando no prato?

Quando o velhinho se afasta, Fernando reage, decidido:

– Mãe, manda buscar meu prato de volta na cozinha!

A famosa barba Hennig ajardina desde os 32 anos, mas já a ambicionava antes, só não tinha coragem de permitir que vicejasse. Eram os anos da Revolução Cubana, e os barbudos lembravam Fidel Castro, eram tidos como insidiosos comunistas. A libertação dos fios ocorreu durante uma viagem pelo país, de trailer, em 1962. Um dia, arriscou não barbear-se. Ingeborg olhou-o atravessado.

Faziam um passeio de trem entre Paranaguá e Curitiba, e ela recusou-se a sentar ao seu lado.

– Com essa barba malfeita, não ando contigo – criticou.

Hennig foi ao barbeiro escanhoar-se, reapareceu com o rosto liso. Mas uns dias depois, em Canasvieiras (SC), voltou à carga. E, desde então, lá vão mais de 50 anos, jamais tirou a barba. Quer dizer, na verdade, aconteceu um acidente de percurso, um tempo atrás. O aparelho engasgou quando aparava a vasta pelagem. Hennig desmontou-o, reparou-o e retomou a faina. Passou a máquina com gosto em um dos lados da face. Um chumaço de longos fios veio junto. Tinha esquecido de colocar o espaçador no aparelho. Durante vários dias, tratou de ficar confinado em casa. Se precisava mesmo sair, mantinha a mão no rosto a todo custo, para esconder a falha.

Depois de algumas aparições esporádicas em festas e eventos, profissionalizou-se como Papai Noel no ano 2000. Precisava entregar um documento qualquer na Storck, empresa que agencia vários papais noéis, e encontrou um aviso à porta: “Precisa-se de um bom velhinho”.

– Não sei se sou bom, mas velhinho eu sou – anunciou ele.

Acertou a contratação e saiu para comprar botas em uma loja de artigos gauchescos – não queria o calçado fornecido pela empresa, já usado por outros. Mal fez a aquisição, telefonaram-lhe.

– Seu Erny, o senhor pode estar às 15h no Shopping Iguatemi?

– Mas o que eu tenho que fazer?

– É só conversar com as crianças.

Às 15h, estava no shopping, fazendo sua estreia. Seriam 15 natais consecutivos no Iguatemi – atualmente ele participa só da abertura, já não tem a mesma mobilidade para percorrer  diariamente os corredores.

Como Noel de um dos mais tradicionais e movimentados centros de compras do Rio Grande do Sul, viu e viveu muita coisa. Conserva inúmeras cartas entregues por crianças (passados alguns anos, quando elas estão crescidas, já são adultas, gosta de reenviá-las para provocar um reencontro com a própria infância), mantém um caderno no qual anota os diálogos curiosos que teve com os petizes ao longo dos anos (“Está comendo a comida toda?”, “Na escolinha, sim, mas em casa não, que a comida da mãe não é boa”) e coleciona desenhos feitos por ele mesmo, de cenas que testemunhou de seu posto de observação privilegiado na poltrona vermelha. É uma coleção de poses para fotografia, de pais e filhos surtados, de choradeiras. Em um dos desenhos, de título Neurose do Último Dia, traçou a si próprio na poltrona, agarrando uma criança pelo pescoço e vociferando palavrões.

– Atendo 400 crianças por dia. Quando chega no fim de dezembro, já estou neurótico – confessa.

Isso acontece porque Hennig leva o ofício a sério. Ser Papai Noel não é vestir uma roupa, acredita. É saber entrar na mentalidade das crianças. Ele dá um exemplo, o caso de um menino a quem prometeu colocar um presente sob a árvore.

– Vem cá? Tu tens bolachinha em casa? – perguntou.

O garoto olhou para a mãe e, encorajado, confirmou que sim.

– Então faz o seguinte, deixa umas bolachinhas na mesa da cozinha, com um pouco de leite, que o Papai Noel está sempre com fome e cansado.

Ele vai descansar um pouquinho na tua casa e fazer um lanchinho.

– Tu gostas mais de bolachinha doce ou salgada? – embarcou o menino.

Em sigilo, Hennig orientou a mãe a retirar as bolachas e esvaziar o leite, quando o filho não estivesse vendo, mas tomando o cuidado de deixar algumas migalhas sobre a mesa.

– Tem de entrar no pensamento da criança, sabe? Não sei como os outros fazem, porque também nunca sentei em colo de Papai Noel, mas eu faço assim. Para mim é automático, eu gosto, espremo a criança para ela falar. É um dom que tenho – se envaidece.

Além de recomendar uma imersão no mundo infantil, Hennig costuma dar outros conselhos a colegas de ofício. Alguns são prosaicos, como optar por um gorro não muito comprido, que as crianças não alcancem, visto que têm uma propensão incontrolável de puxar o pompom. Outras recomendações são mais sérias e podem evitar constrangimento. Uma das regras é falar só com os pequenos, nunca com os pais, porque isso é encrenca na certa. Hennig também considera um erro fatal tocar em dois assuntos delicados: futebol e religião.

– Não me compete, sabe? Religião, cada um tem a sua. Tem Papai Noel que quer doutrinar, e depois os pais se queixam. Não toco no assunto e pronto. Só que muitos chegam lá e me pedem a bênção. Pô, eu sou protestante! Como é que se dá a bênção, que eu não sei? Tenho de enrolar.

Apesar dos quase 88 anos, Hennig segue a todo vapor. Em 2017, abriu o Natal de diferentes shoppings, está fazendo uma maratona em creches, escolas e centros comunitários, foi contratado para ser o Papai Noel das Lojas Lebes, pela primeira vez usando uma roupa verde (“Até o Natal, amadureço”, brinca). Em uma tarde recente, encontrou uma brecha para receber a equipe de Zero Hora em seu apartamento de 10º andar na Boa Vista. Sai-se do elevador e sabe-se que está no lugar certo. Há uma árvore de madeira no saguão, feita e decorada pelo próprio Hennig. As portas dos quatro apartamentos do andar são decoradas com ramos em coroa e papais noéis, uma cortesia dele aos vizinhos. Toca-se a campainha e ouvem-se lá dentro ecoarem os acordes de Jingle Bells. Surge Hennig, paramentado da cabeça aos pés, apesar do calorão.

– Hohoho! Vocês estão entrando na casa do Papai Noel! – anuncia.

E tudo leva a crer que é mesmo. O ambiente é todo decorado com motivos natalinos, incluindo uma infinidade de peças em madeira entalhadas e pintadas pelo próprio Hennig. São cabeças de Noel (dezenas delas), noéis inteiros em diferentes formatos e com variadas funções, árvores de Natal, reis magos, cruzes, enfeites variados. São esculturas confeccionadas na pequena oficina que ele mantém na sala, seu refúgio para relaxar enquanto Ingeborg assiste TV. Foi ali que ele produziu, laboriosamente, o acessório que faz a inveja de outros papais noéis: um imponente cinto esculpido em pau, dotado de lampadinhas que piscam ao toque de um botão. Não pretende deixar de usá-lo tão cedo.

– Hoje o Papai Noel começa a ter dificuldade de caminhar, sabe? Não sei quanto tempo aguento o tirão, mas não pretendo parar. Enquanto tiver forças, eu continuo.

TEXTO

Itamar Melo

itamar.melo@zerohora.com.br

IMAGENS

Carlos Macedo

carlos.macedo@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Daniel Feix

daniel.feix@zerohora.com.br

DESIGN

Carlos Garcia

carlos.garcia@zerohora.com.br

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