Casa de pedra

Nila Silveira do Nascimento, uma das veteranas de Minas do Paredão, em sua morada, na distante localidade da zona sul do Rio Grande do Sul

Um paredão distante de tudo
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Há 27 anos, ZH visitou Minas do Paredão e identificou o lugar esquecido nos mapas como "um retrato fiel do grau de paralisação econômica" da região.
E hoje, como está o vilarejo do sul do Estado?

Faz uns 20 anos que Nila Silveira do Nascimento avistou, em uma curva da estrada de chão batido em frente a sua casa de barro, uma mulher que chegara a Minas do Paredão.

– Por que a senhora não tem luz? – quis saber a visitante.

– Ué, não tenho condições – deu de ombros Nila, que se lembra da mulher, em suas palavras, como “uma alemoazinha”.

– Mas a senhora assinou o documento? – insistiu a desconhecida.

– Sim, mas não ganhei a luz – resignou-se uma das únicas moradoras de Minas do Paredão que não havia recebido os funcionários da CEEE encarregados de levar energia elétrica àquele lugar esquecido.

Os cerca de mil moradores do vilarejo, no interior de Piratini, zona sul do Rio Grande do Sul, haviam feito um abaixo-assinado. Mesmo tendo assinado o documento, Nila ficou de fora. Até hoje, não fosse a “alemoazinha”, que ela não sabe se era funcionária da prefeitura ou da CEEE, ainda viveria no escuro. No dia seguinte à visita, a mulher voltou:

– Não vou lhe prometer, mas daqui a um mês chega a luz pra senhora.

– Quando fez 25 dias, técnicos vieram para instalar a luz – emociona-se Nila, hoje com 69 anos de idade.

Até a chegada dos postes e cabos de energia elétrica à casa de moradores como Nila, Minas do Paredão era um dos lugares mais isolados do Rio Grande do Sul. Os primeiros habitantes chegaram no rastro das lutas travadas durante a Revolução Farroupilha. Alguém um dia achou estanho em uma sanga e, aproveitando a conformação de um “paredão” de rocha na margem do Rio Camaquã, batizou o lugarejo, a 90 quilômetros do centro de Piratini.

cerro grande

O Rio Camaquã e o paredão de 119 metros de altura que dá nome à localidade,

onde já funcionaram minas de estanho

A formação rochosa é mesmo impressionante. Seus 119 metros de altura estão localizados dentro de uma Área Particular de Preservação Ambiental. Além dos aventureiros que volta e meia escalam o cerro, conta-se que cabras costumam pastar lá no alto. Volta e meia, uma delas despenca até o leito do Camaquã.

Em abril de 1990, uma equipe de Zero Hora esteve em Minas do Paredão, como parte de uma série de reportagens sobre um movimento que exigia a separação da metade sul do Estado. “Minas do Paredão é um lugar esquecido dos mapas do Rio Grande do Sul e um retrato fiel do grau de paralisação econômica que se abateu sobre muitas localidades semelhantes espalhadas pela região. Sem luz, telefone ou asfalto, a vila está encolhendo”, notou a reportagem. Ariel Peliguenotti, um menino de oito anos descrito à época, nunca havia visto TV. Conhecia Xuxa apenas pelas músicas que tocavam no rádio. Outro dos personagens da matéria, Ari Peliguenotti, pai de Ariel, lamentava os quatro anos de seca que destroçaram seus 10 hectares de lavoura de feijão. Um terceiro morador, Donaldo Moura, tinha comprado um bolicho havia três anos. As prateleiras estavam quase vazias devido a uma crise econômica.

– Estamos empacados aqui de teimosos – afirmou Donaldo à época, referindo-se às dificuldades financeiras do vilarejo cuja única lembrança de sua existência pelo poder público era uma escolinha municipal, a Acelino Morales.

Quase 30 anos depois, ZH voltou a Minas do Paredão. Saindo da cidade de Piratini, são nada menos do que três horas de viagem por uma sinuosa estrada empoeirada e cheia de buracos. Donaldo, hoje com 72 anos, vê o carro da reportagem se aproximar de seu armazém. Ao contrário dos anos 1990, as prateleiras do bolicho estão recheadas: mortadela, arroz, açúcar, feijão, absorvente feminino, chinelos de dedo, chaves de fenda. Não há problemas de abastecimento, como nos anos 1990. Os produtos chegam, um vez por mês, por meio de uma transportadora. O problema, hoje, é falta de gente para comprar.

– A situação começou a piorar desde que se instalou essa nova crise, quando começaram a surgir aqueles problemas lá em cima.

Lá em cima, no caso, é Brasília:

– É desemprego, aperto... Há escassez de dinheiro. Está difícil. Faz dias que não entra um cliente. Passamos mais fechados do que abertos. Quando aparece um freguês, a gente atende – diz Donaldo, que consegue com o bolicho uma renda média de R$ 400 mensais.

O restante de seu sustento vem da criação de galinhas, porcos e gado. Donaldo é o único dos retratados na reportagem de ZH de 1990 que permaneceu no lugarejo. Ariel, o menino de oito anos que nunca havia visto Xuxa, era seu sobrinho. Morreu aos 33 anos em consequência de um tumor cerebral. Antes, seguiu a sina dos moradores de Minas do Paredão. Desistiu de tentar retirar o sustento da terra pedregosa e do solo ralo, raramente com menos de 20 centímetros de profundidade. Foi embora para o município de Rio Grande. Donaldo ficou, mas está acostumado a assistir ao êxodo de vizinhos e filhos de amigos rumo à “cidade grande”. Há os viajantes sazonais – que passam dois meses fora, “nas granjas”, como eles chamam as plantações de arroz da região de Mostardas e São José do Norte.

Alguns poucos conseguem emprego no corte de acácia. As árvores, utilizadas para produzir carvão, ocupam grande parte da paisagem atual nos arredores do Paredão.

Na venda de Donaldo, há uma televisão de tela plana, com acesso a canais por assinatura, principal atrativo para os clientes em dias de futebol. A programação atrai vizinhos como Joecy Freitas, 72 anos, o Índio, que trocou há alguns anos o cavalo por uma motocicleta CG 125 cilindradas. Como o posto de combustíveis mais próximo fica a 60 quilômetros, ele adota uma estratégia: leva uma bombona extra para a gasolina. Não fosse assim, gastaria grande parte do produto no caminho de volta ao Paredão.

O maior movimento do dia costuma ser por volta das 12h, quando um ônibus escolar da prefeitura de Piratini passa pela venda de Donaldo para pegar os estudantes. Desde que a escolinha do vilarejo fechou por falta de alunos, meninos e meninas do Paredão são obrigados a percorrer uma hora até a Escola Municipal Antenor Elias de Matos. Para dar tempo de pegar o ônibus, todos os dias Donato Guterres de Moura, 12 anos, e João Victor dos Santos da Silva, 13, almoçam às 10h30min. Às 11h, já estão prontos na parada improvisada em uma pedra ao lado da venda de Donaldo.

– Sempre gostei de morar aqui. Quando a gente se junta, a gente brinca de jogar bola, andar de bicicleta, pega-pega, esconde-esconde – conta Donato.

João Victor tem o cabelo milimetricamente cortado e carrega no pescoço uma corrente prateada.

– Quando crescer, quero ser jogador de futebol – conta.

Internet? Tanto João Victor quanto Donato, que deseja cursar Veterinária, têm nos celulares. Não há rede na maioria das casas. Os meninos usam o WhatsApp para se comunicar – quando o 3G funciona.

Às vezes, Donato precisa se deslocar entre árvores e cerros para fazer rodar os vídeos sobrenaturais a que gosta de assistir no YouTube. Os dois não têm computador.

Minas do Paredão não aparece no Google Maps, mas tem página no Facebook. Quem a criou foi outro morador, Diego Nascimento Domingues, 38 anos, espécie de consultor informal de tecnologia dos vizinhos. Em sua casa, há três antenas: uma parabólica, outra de uma operadora de TV a cabo e outra de FM. Quando atravessa a estrada para levar a filha Stefanny até a parada de ônibus na pedra, vira alvo de questionamento dos vizinhos:

– Vai chover, Diego?

– Até sábado não tem chuva – responde o rapaz, olhando um aplicativo de previsão do tempo no celular.

É pela rede social que Diego se comunica com o mundo.

– De primeiro, não tinha isso. Era muito calmo. Só se uma pessoa viesse da cidade e dissesse: “Ó, aconteceu tal coisa” – explica.

Um bolinho se forma em volta da pedra, enquanto o ônibus escolar aponta no alto de um cerro. Alguém coloca no celular o funk Baile de Favela. De mochila da Pequena Sereia às costas, Stefanny, nove anos anos, filha de Diego, gaba-se dos 2 mil amigos no Face.

– Aqui é meio parado. Eu queria mais agitação.

Diego sabe que Stefanny, se perseverar no sonho de se tornar veterinária, deverá se mudar do Paredão. Hoje, o lugarejo tem cerca de um terço dos habitantes que tinha em 1990.

– Deveriam colocar uma empresa aqui para gerar emprego. Nossos filhos não precisariam ir para longe trabalhar. Trazer professores, para ter faculdade, nem que fosse três vezes por semana. Se tivesse uma empresa aqui, mudaria 100% – diz Diego.

Hora do estudo

Alunos reunidos à espera do ônibus, que viajará

durante uma hora para levá-los à escola

Passado o ronco do ônibus escolar, Minas do Paredão volta ao silêncio. Donaldo fecha a venda para a sesta da tarde. É tanto silêncio que se escuta o barulho do vento e, volta e meia, um galo. Quando alguém fica doente, uma ambulância pode levar até duas horas para socorrer um paciente. Se não for emergência e alguém precisar de atendimento médico especializado, é preciso uma peregrinação até a sede do município. Nila, por exemplo, já pagou R$ 200 para um motorista levá-la até Piratini. Juraci, 70 anos, mulher de Donaldo, faz tratamento contra o câncer de mama em Pelotas, a cem quilômetros do Paredão. Ela sai dois dias antes da consulta, dorme na residência dos filhos no centro de Piratini e só então embarca para Pelotas.

A relação entre a velha e a nova Minas do Paredão é de contraste entre os hábitos tradicionais de uma comunidade rural e as facilidades da chegada da tecnologia e da sensação de proximidade que ela traz. Depois de levar Stefanny até o ônibus, Diego, o assessor para assuntos tecnológicos do vilarejo, ajuda o tio, Isolindo, 76 anos, a carnear um leitão. O animal será conservado no freezer de 290 litros que Nila, aquela que foi uma das últimas moradoras a receber energia elétrica, comprou após a chegada da luz.

– Está muito cara essa luz – reclama. – Estou pagando quase R$ 90 por mês – diz a aposentada, que recebe um salário mínimo.

Pensamento semelhante tem Joecy Freitas, o Índio que trocou o cavalo pela moto. O progresso trouxe aos moradores de Minas do Paredão despesas que antes eles não as tinham:

– Antes, as pessoas daqui guardavam dinheiro. Não tinham com o que gastar. Hoje, tem de pagar TV por assinatura, gasolina, internet, luz.

TEXTO

Rodrigo Lopes

rodrigo.lopes@zerohora.com.br

IMAGENS

Jefferson Botega

jefferson.botega@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Daniel Feix

daniel.feix@zerohora.com.br

DESIGN

Rafael Ocaña

rafael.ocana@zerohora.com.br

Um paredão distante de tudo
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A beira do rio é para poucos