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Houve um tempo em que, de Osório a Torres, podia-se viajar através das lagoas da região litorânea. Aproveitando os caminhos antes desbravados pelos índios, os imigrantes abriram canais e construíram uma história da qual, hoje, só existem lembranças

Entre os caminhos rodoviários que levam ao Litoral, uma parte da história da região costeira do Rio Grande do Sul perdeu-se no roteiro de quem segue em busca do mar. A paisagem de serras e lagoas é o lembrete ignorado de um tempo em que circular por aquelas bandas significava enfrentar desafios bem mais embaraçosos do que um engarrafamento sobre o asfalto.

Desde a metade do século 18 as terras praticamente isoladas da área praiana já eram habitadas por imigrantes – primeiro os açorianos, mais tarde alemães e italianos.

O plantio de banana, feijão, cana de açúcar, mandioca e outras culturas resultava em uma produção que precisava ser escoada. Mas os caminhos por terra não tinham boas condições. Foi quando olhar para o cordão de lagoas no entremeio da Serra e do oceano passou a ser mais do que apreciativo. O transporte lacustre no Litoral seria uma nova rota para o progresso e para a integração daquelas gentes quase esquecidas no mapa.

– A navegação sistemática nas lagoas se deu de forma particular, pela imigração alemã em Três Forquilhas e D. Pedro Alcântara, mas os índios que viveram na região antes já conheciam bem esses caminhos – conta a historiadora Marina Raymundo da Silva, pesquisadora taquarense que vive em Osório e se dedica a resgatar a história e o folclore do Litoral Norte.

Em seu livro Navegação Lacustre Osório-Torres, lançado em 1985 e com edição ampliada e revisada em 2014, ela tenta preencher lacunas sobre o uso das lagoas como transporte, apontando a importância que este teve – e poderia voltar a ter – no desenvolvimento da região. Entre seus registros, está a ousadia dos imigrantes que se lançaram às águas em canoas e barcos à vela – depois, em embarcações a vapor –, na sanha de levar seus produtos agrícolas via Palmares do Sul até Porto Alegre. Sem apoio oficial do governo, os colonos inicialmente navegavam pelas ligações naturais das lagoas, sem canais estruturados e em portos improvisados. As mercadorias, incluindo barris de cachaça, saíam da região de Torres e dos altos da serra em burros cargueiros e seguiam pelas águas desde Itapeva até a Lagoa das Malvas, em Osório, no chamado Pontal dos Diehl, família de origem germânica dona de terras da região, que, ao lado dos Voges e dos Dreher, estiveram à frente desse comércio.

– Fora das lagoas, a viagem seguia em carretas de bois até Palmares do Sul. De lá, ia-se de barco pelo Rio Palmares, Lagoa dos Patos e pelo Guaíba até Porto Alegre – diz Marina.

Essa saga recebeu a devida atenção das autoridades por volta de 1914. Para melhorar a navegação, tiveram início estudos de viabilidade e a implantação de uma ferrovia ligando Osório a Palmares do Sul. Seria menos trabalho aos carreteiros, mas mais agilidade no comércio. Estar assistida por trens era um sinal de prosperidade para qualquer comunidade àquele tempo. Então, em 1921, o presidente do RS, Borges de Medeiros, inaugurou a linha férrea entre os dois municípios.

– A partir daí, o governo também ampliou o uso das águas, melhorando os canais, porque, até então, navegava-se somente de Torres até o Pontal dos Diehl, na altura da Lagoa das Malvas, no improviso – afirma Marina.

Com esse incremento oficial, os povoados, especialmente Osório, prosperaram, inclusive com uma movimentação social mais intensa por conta das estações de trem e também pela ampliação dos portos, que, na metade dos anos 1920, não só garantiam o embarque de mercadorias, como também de passageiros das redondezas e ainda alguns turistas aventureiros. Estabelecia-se ali também uma troca cultural na região que por anos ficou relegada na integração com o restante do Estado.

O mais importante ponto de partida e chegada na rota por entre lagoas costeiras foi o Porto da Lacustre, na Lagoa do Marcelino, onde se instalou também uma efervescente oficina de manutenção, que assegurava os cuidados dos canais de navegação e também da via férrea. Esses conhecimentos náuticos foram tão arraigados na cultura de Osório e arredores que, poucos anos atrás, ainda se tinha, integrado ao ensino escolar, o aprendizado de técnicas sobre navegação e embarcações.

– Enquanto em outros lugares ensinavam sobre carros, a gente aprendia tudo sobre barco – relembra o empresário Adelandre Linhares, hoje responsável pela Fazenda Pontal, espaço de ecoturismo em frente ao antigo porto improvisado dos Diehl.

A consolidação do transporte lacustre no Litoral exigiu a organização do Serviço de Transporte entre Palmares do Sul e Torres (STPT), que estimulou a especialização da mão de obra, ordenou as atividades por água e por terra – havia até zeladores para reparar as margens das lagoas – e também garantiu ao governo a cobrança de impostos.

É nesse periodo que Bernardo Dreher constrói a Usina Santa Martha, às margens da Lagoa da Pinguela, onde se produzia açúcar e álcool-motor. O empreendimento, de acordo com registros históricos da época, recebeu a visita do governador Getúlio Vargas e de uma comitiva que almejava avaliar o combustível produzido. O empreendimento rendia tributos, assim como toda a movimentação de mercadorias.

– Apesar disso, o governo acabou incentivando a produção da cana de açúcar no nordeste brasileiro, e a usina durou pouco. De modo geral, perto dos anos 1930, o governo percebeu que estava tendo prejuízo com o transporte lacustre. Demorou 18 anos para os impostos subirem e ainda havia contrabando. Acabou inviável – explica Marina.

Nos anos 1930, o STPT passou a ser controlado por Bernardo Dreher, de acordo com a pesquisa da historiadora. Ele manteve a linha de transporte de cargas e passageiros e ainda fazia uma linha especial semanal com os veranistas que saíam de Capão da Canoa para visitar Torres. O começo da década era de crise mundial e, no Brasil, encorpava-se o movimento que culminaria na Revolução de 30, cujos revolucionários chegaram a utilizar os serviços da empresa para se deslocar. Dreher ainda enfrentaria o amargo achatamento do setor açucareiro gaúcho, preterido pelo do Nordeste.

O Instituto do Açúcar e do Álcool do país ordenou que a Usina Santa Martha, que produzia 60 mil sacas de açúcar por safra, reduzisse essa produção em 10%. Dreher logo faliu, e os serviços de transporte entre Palmares do Sul e Torres retornaram ao controle do Estado.

Na metade da década de 1930, com o governo incentivando os produtores a usar os serviços estatais, notou-se uma melhoria no transporte lacustre da região. Tanto que, em 1939, cogitou-se uma obra ousada: ligar Porto Alegre ao mar. A ideia era conectar as lagoas costeiras  a partir de Palmares do Sul, até Tramandaí. Com isso, estariam conectadas as lagoas dos Patos e Casamento ao mar, fazendo um cordão de navegação lacustre de Torres à Capital.

– Chegaram a fazer estudos, mas as condições de terreno e climáticas eram bem difíceis. Tinham de refazer o trabalho muitas vezes e não se dava continuidade. No fim das contas, acabou não saindo – diz Marina.

Abertura de canais foi custosa, mas transporte lacustre acabou preterido

Quando, lá no início do século passado, os imigrantes alemães do Litoral Norte começaram a desbravar as águas lacustres da região, o caminho a ser percorrido era definido pela natureza. Eles aproveitavam as ligações naturais entre as lagoas e o trajeto dos rios, sujeitos à intempérie.

O máximo que se fazia era aprofundar um ou outro ponto. Mas, quando as ambições de progresso cresceram, decidiram aprimorar o sistema, garantindo a passagem de embarcações de maior calado, superior a um metro e 30 centímetros.

Um dos entraves para ligar Torres a Osório por água doce era conectar a Lagoa Marcelino à do Peixoto, consequentemente, unindo-as à Lagoa da Pinguela e ao cordão de lagoas que segue em direção a Torres. Na região, já se faziam diversos levantamentos topográficos, manejo de canais e uso de dragas. Porém, em 1917, uma obra marcaria os tempos áureos da navegação daquelas bandas.

A escavação do Canal Pinguela-Peixoto, que também faria a ligação com a Lagoa do Marcelino, em Osório, foi colocada em prática. Mais de 50 homens – todos presos da Casa de Detenção de Porto Alegre – foram levados até os acampamentos na região conhecida como Caconde para escavar, no braço, os dois quilômetros de canal. A empreitada fez com que muitos soldados da Brigada Militar, designados para levar o material necessário à obra, criassem um acampamento na área.

A chegada dos prisioneiros que trabalhariam na escavação, chamados de tiriricas, e a fixação de outras pessoas no entorno acabararam por formar um pequeno povoado às margens da construção. As moradias improvisadas, feitas em palha, não ofereciam condições adequadas de higiene. À beira da lagoa, a situação sanitária era degradante. Muitos foram vítimas da gripe espanhola e de outras moléstias. Esse cenário atrasou os trabalhos no canal e obrigou a implantação de medidas de saúde urgentes. Médicos foram levados ao povoado para examinar os acampados e tentar reduzir as contaminações. Praticamente 90% das pessoas que passaram pela avaliação médica tinham verminoses.

histórico

Operários trabalham entre as lagoas Pinguela, Peixoto e Marcelino, em fotografia de 1919

O serviço seguia a passos lentos, então, o governo decidiu abrir concorrência pública. Único interessado, Constantino Gayesky não conseguiu dar conta do serviço, então, o próprio governo assumiu a obra. A tarefa de abrir o canal dali para a frente seria tão penosa quanto no começo. Cerca de 300 homens se envolveram nas escavações, usando carrinhos de mão e pequenas locomotivas para escoar as grandes quantidades de areia. Um detalhe tornava o trabalho mais hercúleo do que já se pode imaginar: as locomotivas se deslocavam sobre trilhos desmontáveis, de nove metros cada. Assim, percorrido um trecho, retiravam-se os trilhos que ficavam para trás para que fossem recolocados à frente, e o veículo seguisse adiante.

– Era um trabalho muito difícil, foi realmente uma epopeia construir aquilo pelas condições que eles tinham – diz a historiadora Marina Raymundo.

A tão almejada ligação entre a Lagoa do Peixoto e a Lagoa da Pinguela foi finalmente concretizada apenas em janeiro de 1920, quando uma draga fez os últimos aparos para que os dois espelhos d’água, enfim, se encontrassem. Em seguida, foi feita a canalização para ligar a Lagoa do Peixoto à do Marcelino. Atualmente, as duas passagens são utilizadas para pequenas embarcações, mas, dependendo do volume de chuvas, há pontos em que se corre o risco de encalhar em razão do assoreamento, visível às margens do canal do Peixoto, utilizado por praticantes de esportes náuticos e pescadores.

O sonho de um dia fazer a travessia litorânea via lacustre, de Torres a Porto Alegre e, quem sabe, até Rio Grande, foi perdendo força à medida que o estímulo à indústria automobilística foi ganhando espaço no planejamento do governo brasileiro. Navegar e seguir caminho sobre trilhos de trens eram meios de transporte já ameaçados pela rodovia, e a própria manutenção das hidrovias passou a ser negligenciada em benefício das estradas para os carros. Oficialmente, a navegação entre lagoas de Torres a Osório foi desativada em 1958. De lá para cá, a região ganhou rodovias importantes de ligação com a Capital e também com o sul do Estado. Muitos daqueles que viviam de serviços ligados ao vaivém das embarcações acabaram transferidos para Rio Grande, Triunfo e Porto Alegre. No começo da década de 1960, o então Departamento Estadual de Portos, Rios e Canais (Deprec), que em 1998 passou a se chamar Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH), liquidou o que havia restado da ferrovia Osório-Palmares. Atualmente, os trechos em operação no Estado estão sob responsabilidade da Secretaria do  Porto de Rio Grande.

– A prioridade passou a ser a rodovia, mesmo que ela fosse uma opção mais cara, como ainda é – avalia Marina.

águas de osório

O município do Litoral Norte visto a partir da Lagoa do Marcelino, que recebe o esgoto produzido no município mas mantém a vida animal

Coincidências de um naufrágio histórico

Era 20 de setembro de 1947.  Pouco antes das 11h, uma comitiva de políticos se organizava no trapiche da Lagoa do Marcelino, em Osório, para zarpar em direção a Maquiné. Lá, haveria mais um comício político em busca de votos para a União Democrática Nacional (UDN), partido que fazia oposição a Getúlio Vargas.

O rebocador batizado de Bento Gonçalves faria uma viagem concorrida pelas autoridades na data máxima da Revolução Farroupilha. Tinha tudo para dar certo, apesar do frio que aquele setembro reservava.

Todos embarcados – 20 pessoas, entre políticos e tripulação –, seguiram pelas águas da Lagoa do Marcelino e adentraram a Lagoa do Peixoto. Quando o Bento Gonçalves singrava a Lagoa da Pinguela, o vento minuano ganhou força e as ondas investiram contra a embarcação. Passava do meio-dia e, de acordo com relatos dos dois sobreviventes, os passageiros recém haviam encerrado o almoço.

Conforme o repórter Abdias Silva, do jornal Correio do Povo, que acompanhou o incidente à época, a cidade de Osório, então com menos de 5 mil habitantes, via-se frente a sua maior tragédia. Um dos sobreviventes, Arzemiro Viana, contou que postou-se na chaminé do barco, o que lhe salvou da morte. Mas, antes disso, viu os outros desaparecem nas águas da lagoa, em um desesperador esforço de sobrevivência. Outro passageiro, João Clemente, conseguiu chegar à margem. Já com sinais de hipotermia, foi encontrado por uma menina de seis anos que anunciou o desastre e assegurou o começo das buscas. Ninguém mais seria encontrado com vida, e o trapiche da Lagoa do Marcelino virou o ponto de encontro de praticamente toda a população osoriense. Ali, passaram o dia na vigília fúnebre pelos mortos, cujos corpos foram encontrados e resgatados, um a um, naquele mesmo dia. Acredita-se que muitos tenham morrido por conta do frio e também por congestão, dado o esforço que tiveram de fazer logo após a refeição e ainda domando vestes pesadas, como botas e casacos. O Bento Gonçalves foi retirado do fundo da Pinguela cinco dias depois, com uma cidade inteira ainda sob comoção.

o cais à época do naufrágio, no fim dos anos 1940, e o Bento Gonçalves, recuperado e hoje guardado no cais de Porto Alegre.

– Meu pai sempre dizia que, naquele dia, em cada casa de Osório, havia um velório – conta Rossano Teixeira, atualmente Secretário de Desenvolvimento, Turismo e Gestão Urbana de Osório, que teve um tio entre as vítimas e um parente que se safou porque, antes do embarque, resolveu ir a cavalo, cedendo lugar a outro passageiro.

Passados mais de 70 anos da tragédia, o Bento Gonçalves repousa no cais de Porto Alegre. A prefeitura de Osório tentou levar o rebocador de volta. As tratativas não avançaram, mas a administração promete seguir se empenhando, assim como tem feito para “repatriar” o trem que fazia o transporte de cargas por terra entre Osório e Palmares do Sul, que está no Pampas Safári.

A retomada da navegação também é almejada no município, que tem os principais espelhos d’água do Litoral Norte – em torno de 20. No entanto, esse sonho teria de passar por uma série de reestruturações, a começar pelo saneamento. A bióloga Rosane Lanzer, professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS) e vice-coordenadora do Projeto Lagoas Costeiras 3, que fez um levantamento das condições de parte das lagoas de Osório, ressalta que, antes de se pensar em explorar o potencial da área para a navegação e o turismo, deveria-se investir em saneamento. Um dos pontos mais críticos é a Lagoa do Marcelino, que recebe todo o esgoto produzido na cidade.

– É preciso ter condições mínimas de saneamento para expor as pessoas. Ninguém seria contra a navegação, é claro, mas uma coisa depois da outra. Não é bonito navegar no meio da poluição – sustenta.

O secretário de Desenvolvimento de Osório reconhece que o desafio para retomar a navegação nas lagoas com

fins turísticos requer esse cuidado e adiantou que a Estação de Tratamento de Esgoto de Osório, obra parada há pelo menos cinco anos por conta de uma ação na Justiça do município vizinho de Santo Antônio da Patrulha, que questionava pontos do projeto, deve ser retomada nos próximos meses. Seria o primeiro passo para uma reconciliação da cidade com seu patrimônio natural.

TEXTO

Bruna Porciúncula

bruna.porciuncula@zerohora.com.br

IMAGENS

Tadeu Vilani

tadeu.vilani@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Daniel Feix

daniel.feix@zerohora.com.br

DESIGN

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

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