Monarcas de Osório
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NO MUNICÍPIO DO LITORAL NORTE, AS RECENTES MORTES DOS TRÊS PRINCIPAIS INTEGRANTES DA CORTE REAL DO MAÇAMBIQUE DESAFIAM A CONTINUIDADE DE UM RITUAL CRIADO NO SÉCULO 19

nquanto os tambores ressoavam em louvor à Nossa Senhora do Rosário, em Osório, no Litoral Norte, Francisca Dias, 55 anos, a Preta, prometia à rainha Ginga Severina Maria Francisca Dias, 89, seguir o legado presente na família há quase um século. A soberana, olhando firme nos olhos da filha e a segurando com força pelas mãos, recomendou:

– Tu abraça os meus filhos, recebe eles na minha casa e continua com tudo o que eu estava fazendo.

– Sim, mãe, mas só até a senhora se recuperar – disse Preta, e então se despediram, na tarde de 7 de outubro de 2016.

Detentora da coroa desde 1994, a ex-parteira Severina estava internada havia 20 dias no Hospital São Vicente de Paulo, devido a problemas respiratórios. Para que os festejos religiosos da cidade tivessem sua representante da corte real – uma tradição criada nos tempos da escravidão e que tem seu momento de protagonismo duas vezes ao ano –, Preta tinha sido coroada às pressas pelo padre da paróquia, durante a celebração católica do Rosário e da santa de devoção da realeza de Osório. Depois da visita ao hospital, a filha engoliu o choro e voltou para as homenagens à santa. Meia hora depois, Severina morreu. Preta se tornava o cialmente a rainha Ginga do grupo Maçambique de Osório.

Único no Estado a cantar, tocar e dançar o maçambique, ritual afro-brasileiro cultural e religioso originado da congada para homenagear Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, o grupo é composto por rainha, o rei do Congo, a alferes da bandeira, dois pajens, dois capitães de espada, três tamboreiros e pelo menos 10 dançantes do sexo masculino. A maior parte descende dos escravos que formaram Morro Alto, comunidade reconhecida pela Fundação Cultural Palmares como remanescente de quilombo, em Maquiné, no Litoral Norte. Mulheres só podem ostentar a coroa ou carregar a bandeira.

Representante da linhagem que mantém viva a prática iniciada no século 19, Preta assumiu o posto mais respeitado entre os maçambiqueiros depois de acompanhar a trajetória da mãe e de duas primas na mesma função. Apesar de frequentar o grupo desde criança, a auxiliar de Educação Infantil, mãe de três filhos e ex-estudante de História e Pedagogia não desejava a coroa. Ela só aceitou o desafio ao receber o apoio dos tios Sebastião Francisco Antônio, o rei do Congo, e Antônio Nunes de Quadros, o tamboreiro mais antigo. Preta não imaginava que logo enfrentaria a morte repentina de ambos. Antônio morreu em fevereiro deste ano, aos 80 anos. Dois meses depois, Sebastião partiu, com 87. Pela morte dele, o prefeito de Osório, Eduardo Abrahão, decretou luto oficial de três dias na cidade.

E

Além de suportar as perdas e de carregar uma coroa secular, a nova rainha tem pela frente o desafio de encontrar um companheiro para o reinado, que não precisa ser o próprio marido – os dois representantes anteriores, por exemplo, eram irmãos. A decisão passará pelo grupo, mas a última palavra será de Preta. Para receber a coroa, é preciso ter conhecimento do legado deixado pelos antepassados e ser devoto de Nossa Senhora do Rosário. O grupo exige que o novo rei seja maçambiqueiro.

– O maçambique tem características performáticas de matriz africana historicamente transmitidas pelos africanos, em geral, de origem banto. No Brasil, os descendentes foram reinventando os rituais em termos culturais, assim como seus signos, símbolos, costumes, saberes e valores – explica o antropólogo Iosvaldyr Carvalho Bittencourt Junior, marido de Preta, que estuda os maçambiqueiros.

A origem do festejo remonta à resistência de Congo e de Angola frente aos portugueses, na época da colonização da África. O rei representa os bacongos do Reino do Congo, que existiu entre os séculos 14 e 19. A rainha Ginga representa Nzinga Mbandi, que viveu entre 1582 e 1663 e foi rainha do Ndongo, atual Angola. Ela chefiou pessoalmente o exército e ampliou os territórios angolanos. Era tão respeitada pelos portugueses que Angola só foi dominada depois da morte dela, aos 81 anos.

Na história transmitida a cada geração, o maçambique no Brasil teria iniciado depois que a filha de um senhor de engenho  cou indignada com o tratamento violento dado aos escravos. Ela, então, decidiu criar uma festa para os negros e convidou um escravo condenado à morte para ser o primeiro festeiro. O homem foi salvo no último momento, e o maçambique nunca mais parou.

Preta relata que, em Osório, as rainhas em Morro Alto escolhiam os festeiros que organizariam as cerimônias religiosas e resolviam os conflitos dentro da comunidade. Na época de Maria Tereza Joaquina de Oliveira, que reinou de 1950 a 1978, por exemplo, ela determinava a prisão dos dançantes atrasados, embriagados ou indisciplinados. Com o aval do delegado de polícia local, eles ficavam detidos até o final das festas. Hoje, os poderes da rainha resumem- se às principais decisões dentro do grupo, às participações nos festejos de São Benedito, em maio, e de Nossa Senhora, em outubro, e nos eventos de pagamento de promessas de devotos aos dois santos.

– Não é fácil ser rainha ou rei. É uma grande responsabilidade! Na hora em que a gente se veste, carregamos toda uma história – diz Preta. – No dia a dia, continuarei sendo a Preta. Mas, quando eu colocar a coroa, serei a rainha Ginga Francisca – completa, sem esconder as lágrimas ao recordar os parentes mortos recentemente.

A PRIMEIRA APRESENTAÇÃO

Em Osório, até quem não é devoto de Nossa Senhora do Rosário conhece os maçambiqueiros. A dúvida de todos era como seria a primeira aparição pública do grupo depois de uma mudança tão profunda. A data já estava marcada: segundo domingo de maio, menos de um mês depois da morte do rei. Todos os anos, o Maçambique de Osório participa como convidado da igreja na festa em honra a São Benedito, no distrito de Aguapés, a 18 quilômetros do centro da cidade.

Dividido por conta do luto e da falta de um rei, o grupo quase desistiu de fazer parte da cerimônia. Mas três descendentes de Sebastião optaram por manter a apresentação, uma forma de também homenagear os entes que partiram. Faustino Antônio, 54 anos, o filho mais velho e há três décadas no grupo, se tornou o chefe dos tamboreiros e tem a missão de passar os conhecimentos musicais ao primogênito de Preta, o tamboreiro Adriano, 34, xodó da vó Severina.

– Se tiver que ficar três, quatro dias tocando e fazendo algo para o grupo não morrer, estarei sempre disposto. Amo esta tradição. É a minha vida – a rma Faustino.

O filho dele, o dançante Cassiano Antônio, 26 anos, e o irmão de Faustino, José Carlos Antônio, 50, chefe de espada, também aceitaram seguir o ritual da festa de São Benedito. À rainha, coube estrear, justamente, na data que também celebraria o dia das mães – o primeiro dela sem Severina.

No dia da festa, a reportagem acompanhou o grupo. Chovia e ventava no bairro Caravaggio, em Osório, por volta das 8h30min. Preta quase não falava, conferindo os últimos detalhes da roupa a ser usada e os equipamentos e trajes do grupo. Cada pedido feito por ela soava como ordem:

– Já pegaram as coroas?

– Sim, senhora.

– Os tambores já foram colocados junto com as espadas?

– Também, senhora.

Apesar da tensão da estreia entre os integrantes, o experiente Faustino estava con ante:

– Tenho a certeza de que haverá sol em Aguapés. E eles (pai e tios falecidos) estarão conosco.

Na chegada à igreja, um raio de sol surgiu entre as nuvens pesadas e escuras e iluminou apenas o entorno do prédio. Um arco-íris cobriu à distância a entrada da rua que levaria até o local da apresentação. Concentrados, os maçambiqueiros se reuniram dentro do ginásio ao lado de onde ocorreria a celebração especial. Devotos os aguardavam, como o casal Susete e Gilberto Borges, de 37 e 43 anos. Moradores do interior do município, os dois participam das festas onde o maçambique é dançado desde o nascimento do pequeno Anthony, quatro anos, e a conquista na Justiça do  lho adotivo Tailon, oito anos, em 2016. Os dois meninos usam as mesmas vestes dos dançantes.

– Tentei engravidar durante 10 anos, mas não consegui. Prometi à Nossa Senhora do Rosário que, se ela me desse um filho, ele seria maçambiqueiro. Acabei ganhando dois. O mais velho já dança na vara (junto com os dançantes). O pequeno está tomando o gosto – comemora a dona de casa.

TAMBOREIROS TOCAM APÓS A COROAÇÃO

A agitação dos preparativos se encerrou quando a primeira batida do tambor de Faustino ecoou no prédio. Até quem não faz parte do grupo sente um arrepio dos pés à cabeça quando ouve o primeiro e intenso batucar. Era a hora da cerimônia inicial, anterior à entrada na igreja. Quando o cântico em homenagem à Nossa Senhora foi entoado pelos tamboreiros, Francisca beijou o manto e a coroa antes usados pela mãe e escolheu um dos maçambiqueiros para ser o rei durante a celebração. O eleito foi o zelador João Batista Rodrigues, 34, morador de Viamão, que participa como dançante há 20 anos:

– Eu não esperava. Foi uma surpresa estar no lugar do seu Sebastião. Emocionante! Hoje, deixei de ser zelador para me tornar rei por um dia.

Como determina o ritual, rainha e rei foram coroados por dois membros do grupo. Faustino repassou a coroa do pai a João Batista. Em lágrimas, os dois se abraçaram por mais de um minuto. Depois, o tamboreiro beijou a mão do casal real. Reverência feira, em seguida, por todos os outros.

Cada integrante do grupo se diferencia pelo traje usado. A rainha tem manto azul. O rei, vermelho. A alferes carrega uma bandeira enfeitada com fitas coloridas de ex-votos e flores artificiais, com a imagem da padroeira. Os tamboreiros vestem branco. Os dançantes usam uniformes brancos que ultrapassam gerações – camisas, calças, lenços e gorros, metade deles com detalhes em vermelho, metade em azul – e têm amarrados aos tornozelos as maçaquaias, pequenos chocalhos produzidos por Faustino com hastes de taquara e que carregam sementes responsáveis pelos sons. Eles ficam o tempo inteiro com os pés descalços, lembrando os primeiros dançantes – ainda escravos – do ritual.

Sob sol firme, o grupo seguiu rumo à igreja, com tamboreiros entoando os cânticos – alguns deles criados por Faustino – e os dançantes em duas filas identificadas como varas. Quando o Maçambique de Osório foi recebido pelo padre, os capitães cruzaram suas espadas sobre a porta do templo para proteger a entrada do grupo. A chuva voltou a cair quando o último integrante ingressou na igreja.

Rainha Ginga Francisca e rei do Congo João Batista se sentaram à frente do altar, enquanto os demais ficaram no corredor, ao lado de cada banco com lugares reservados para eles. Durante a missa, o padre coroou simbolicamente o casal dentro da igreja, um gesto de reconhecimento à importância do grupo na cerimônia. Depois da celebração, o Maçambique de Osório puxou a procissão pela principal rua de Aguapés. Já não chovia.

– Minha mãe dizia que na missa dentro da igreja era o padre quem mandava. Mas, fora dela, era a rainha do Maçambique – recordou Preta.

Na segunda parte da festa, o grupo fez a apresentação aos demais fiéis. Em alguns momentos, como parte do ritual, os dançantes se ajoelhavam e abaixavam as cabeças em frente ao casal real e só voltavam a dançar quando recebiam o sinal da rainha.

– Na vara, no momento em que eles estão dançando, olham para o rei e a rainha com uma forma de respeito. Quando se ajoelham e cantam para o rei, só se levanta quando a rainha faz um cumprimento com a cabeça. A gente se comunica só pelo olhar. Só olho para eles e eles já sabem – descreveu Preta.

Um banquete foi oferecido ao grupo, que se reuniu no entorno dos reis – os primeiros a serem servidos. Com a coroa sobre as cabeças, Preta e João Batista quase não conversavam. Faz parte do ritual não dançarem, não beberem e falarem o mínimo possível.

– Tenho que mudar quando estou com a coroa. Vejo muitas pessoas me atirando beijinho, e eu não posso fazer isso. Olho firme para eles. Tento passar, pelo menos, com um sorriso. Dizendo assim: eu estou te vendo. Mas não posso ir lá dar um abraço, beijar. Naquele momento, sou outra pessoa: a rainha Ginga – contou Preta.

CONTINUAÇÃO DA HISTÓRIA

Passado o primeiro teste, Preta fez questão de visitar Morro Alto, no dia seguinte. Não há mais moradores no alto da localidade onde o ritual começou e de onde a nova soberana Ginga partiu ainda menina com a família. Foi um momento de reflexão e de homenagens aos antepassados. Ela reconheceu que há muito a fazer pelo grupo.

Inclusive, resgatar aqueles que estão deixando a tradição. E será na casa de madeira onde vivia Severina, no bairro Caravaggio, que ela pretende reforçar a própria memória. Quando a rainha no leito de morte pediu à filha que tomasse conta dos filhos, referia-se aos maçambiqueiros.

A casa se tornará o ponto de encontro para ensaios do grupo. As paredes da sala foram cobertas com fotos de antigas apresentações e do casal real já falecido. Ali também ficam guardados os livros com a história dos povos africanos, os estandartes com as imagens de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito, réplicas de outros santos, os tambores e as coroas usadas por rainhas e reis anteriores. Entre elas, a de Maria Tereza, prima de Severina e que foi coroada pelo cardeal Dom Vicente Scherer. Ela virou nome de rua em Osório depois de morrer aos 111 anos. Ainda é lembrada com carinho e devoção por quem segue dançando o maçambique.

– Tia Maria Tereza era pequena, mas uma mulher muito forte e de decisões firmes. Foi ela quem enfrentou parte da Igreja Católica quando tentaram impedir a participação dos maçambiqueiros na festa do Rosário. Não sossegou até conseguir a liberação do cardeal, em Porto Alegre. É por ela, pela minha prima Tomazia, que a sucedeu, e por minha mãe que honrarei esta coroa. Enquanto uma mulher negra estiver ganhando um filho, sempre existirá o maçambique – garantiu a rainha Ginga Francisca.

À ESPERA DO REI

TEXTO

Aline Custódio

aline.custodio@diariogaucho.com.br

IMAGENS

Mateus Bruxel

mateus.bruxel@diariogaucho.com.br

EDIÇÃO

Ticiano Osório

ticiano.osorio@zerohora.com.br

DESIGN

Douglas Menezes

douglas.menezes@zerohora.com.br

 

Thais Longaray

thais.moraes@zerohora.com.br

Monarcas de Osório
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Monarcas de Osório

Enquanto os tambores ressoavam em louvor à Nossa Senhora do Rosário, em Osório, no Litoral Norte, Francisca Dias, 55 anos, a Preta, prometia à rainha Ginga Severina Maria Francisca Dias, 89, seguir o legado presente na família há quase um século. A soberana, olhando firme nos olhos da filha e a segurando com força pelas mãos, recomendou:

– Tu abraça os meus filhos, recebe eles na minha casa e continua com tudo o que eu estava fazendo.

– Sim, mãe, mas só até a senhora se recuperar – disse Preta, e então se despediram, na tarde de 7 de outubro de 2016.

Detentora da coroa desde 1994, a ex-parteira Severina estava internada havia 20 dias no Hospital São Vicente de Paulo, devido a problemas respiratórios. Para que os festejos religiosos da cidade tivessem sua representante da corte real – uma tradição criada nos tempos da escravidão e que tem seu momento de protagonismo duas vezes ao ano –, Preta tinha sido coroada às pressas pelo padre da paróquia, durante a celebração católica do Rosário e da santa de devoção da realeza de Osório. Depois da visita ao hospital, a filha engoliu o choro e voltou para as homenagens à santa. Meia hora depois, Severina morreu. Preta se tornava o cialmente a rainha Ginga do grupo Maçambique de Osório.

Único no Estado a cantar, tocar e dançar o maçambique, ritual afro-brasileiro cultural e religioso originado da congada para homenagear Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, o grupo é composto por rainha, o rei do Congo, a alferes da bandeira, dois pajens, dois capitães de espada, três tamboreiros e pelo menos 10 dançantes do sexo masculino. A maior parte descende dos escravos que formaram Morro Alto, comunidade reconhecida pela Fundação Cultural Palmares como remanescente de quilombo, em Maquiné, no Litoral Norte. Mulheres só podem ostentar a coroa ou carregar a bandeira.

Representante da linhagem que mantém viva a prática iniciada no século 19, Preta assumiu o posto mais respeitado entre os maçambiqueiros depois de acompanhar a trajetória da mãe e de duas primas na mesma função. Apesar de frequentar o grupo desde criança, a auxiliar de Educação Infantil, mãe de três filhos e ex-estudante de História e Pedagogia não desejava a coroa. Ela só aceitou o desafio ao receber o apoio dos tios Sebastião Francisco Antônio, o rei do Congo, e Antônio Nunes de Quadros, o tamboreiro mais antigo. Preta não imaginava que logo enfrentaria a morte repentina de ambos. Antônio morreu em fevereiro deste ano, aos 80 anos. Dois meses depois, Sebastião partiu, com 87. Pela morte dele, o prefeito de Osório, Eduardo Abrahão, decretou luto oficial de três dias na cidade.

RAINHA GINGA FRANCISCA DIAS

JOSÉ LAUDI DA SILVA, DANÇANTE E AUXILIAR DO CAPITÃO DE ESPADA

CASSIANO ANTÔNIO, DANÇANTE

PAULO OLIVEIRA, PAGADOR DE PROMESSA

JOSÉ CARLOS ANTÔNIO, CAPITÃO DE ESPADA

ADRIANO DIAS, TAMBOREIRO

ANTHONI BORGES, PAGADOR DE PROMESSA

ANDRÉ LUIS DA ROSA OLIVEIRA, DANÇANTE

FAUSTINO ANTÔNIO, CHEFE DO GRUPO E TAMBOREIRO

REI DO CONGO POR UM DIA, JOÃO BATISTA RODRIGUES