Pedras que um dia foram madeira
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Fenômeno raro, a fossilização de uma floresta tombada já arrastou milhares de turistas à região de Mata. Hoje, esse patrimônio natural do Rio Grande do Sul está (quase) esquecido

A vasta floresta desabou, ninguém sabe por quê. Os troncos tombaram uns sobre os outros e submergiram nos rios. Eram águas ricas em sílica. À medida que a matéria orgânica dos lenhos se deteriorava, o mineral ia ocupando as paredes celulares, uma a uma. As árvores viraram pedra.

Duzentos milhões de anos depois, em um dia do século 21, o produtor rural Claudir Kleber, 41 anos, percebeu um claro na lavoura de soja. As plantas não vicejavam, vinham fracas. Aflorava ali, rente ao solo, a ponta de uma rocha. As marcas no chão pareciam indicar uma estrutura de mais de 10 metros de comprimento correndo sob a terra – um dos maiores troncos fossilizados já encontrados no município de Mata, na região central do Rio Grande do Sul.

– Diz que tem uma árvore inteira aqui embaixo, que é bonito de olhar, uma raridade. É comum nas lavouras. Os pedaços que estão soltos, pomos para a beirada e deixamos lá. Mas nas que estão enterradas não se mexe, porque para tirar é um trabalhão – conta Kleber.

Houve um tempo, três décadas atrás, em que hordas de turistas, do Brasil e do Exterior, afluíam a Mata e à vizinha São Pedro do Sul para admirar esse tesouro paleontológico, então recém revelado ao mundo. Eram sete ou oito ônibus de excursão a cada dia. Os visitantes desembarcavam ávidos por contemplar os famosos troncos, que pareciam madeira, com todas as ranhuras e nós da casca, com os anéis de crescimento intactos, com raízes a se projetar – mas que eram indiscutivelmente pedra. Queriam tocar nas árvores que cobriram o atual território gaúcho em um período remoto, muito anterior ao surgimento da humanidade.

Foi uma febre, uma moda. Hoje pouca gente vai a Mata, talvez mil pessoas por mês, em grande parte alunos de colégios da região. As pessoas já nem sabem que existe. Tornaram-se ignorantes de um dos maiores patrimônios do Rio Grande do Sul, de algo que só se encontra em mais um ou dois lugares do planeta. O secretário municipal de Cultura, Turismo e Paleontologia, Jéferson Saurin, conta que até em eventos turísticos, quando menciona a floresta petrificada de sua cidade, depara com olhares de ponto de interrogação no rosto de autoridades do setor.

– Não sabem! Nunca ouviram falar! – revela Saurin.

As primeiras referências à existência de fósseis de árvores no Rio Grande do Sul datam do século 19, feitas por naturalistas forasteiros. Em 1910, o médico alemão Wilhelm Rau radicou-se em Santa Maria e notou os afloramentos de madeira petrificada. Conta-se que, nos anos seguintes, pesquisadores europeus estiveram na zona e levaram grande quantidade de fósseis, hoje exibidos em museus estrangeiros. Para os moradores da região, aquilo não valia nada, eram apenas pedras, incômodas pedras, que estragavam o arado e atrapalhavam o cultivo da terra. O costume era triturar aquele material, que ninguém suspeitava serem fósseis valiosos, para transformá-lo em brita de construção.

– Quando eu era criança, as pessoas viam isso espalhado por tudo, mas não tinham noção do que era, não tinham nenhuma teoria sobre isso. Desconheciam que era um processo de fossilização. O pessoal todo dizia que era “pedra pau”. Esse era o termo usado – lembra o comerciante Edmar Bisognin, 73 anos.

No começo da década de 1970, em Porto Alegre, uma jovem chamada Margot Guerra Sommer concluiu sua graduação em História Natural bem na época em que chegou à UFRGS, para uma temporada de dois anos, o professor alemão Klaus Ulrich Leistikow, especialista em madeira petrificada. Como Margot mostrava interesse por botânica, sugeriram que ela aproveitasse a presença do estrangeiro para fazer um mestrado em paleobotânica, sob orientação dele. O objetivo era que estivesse capacitada a estudar diminutos fragmentos de fósseis vegetais encontrados com relativa abundância em toda a bacia do Rio Paraná.

A PROFESSORA  E O PADRE

Essa formação, em anatomia de lenhos petrificados, acabaria por se revelar providencial. Em 1975, recém concursada como professora da universidade, Margot foi chamada pelo também professor e geólogo Carlos Alfredo Bortoluzzi para tratar de uma questão que surgira durante a abertura da rodovia entre Santa Maria e Mata.

– Estão com um problema lá. Telefonaram para dizer que há uns troncos de árvore atravessados na estrada, que eles não conseguem tirar. Se é tão pesado, não pode ser árvore, deve ser madeira petrificada – disse o professor.

– Mas tão grande que atravessa a estrada? – espantou-se Margot.

– Vamos lá ver.

Hoje professora emérita da UFRGS, mas ainda atuante no Laboratório de Paleobotânica da instituição, Margot evoca o cenário que encontrou quatro décadas atrás:

– Era fantástico, um patrimônio científico da humanidade. Troncos em cima de troncos. Eu vi isso. Havia afloramentos lindos.

Florestas inteiras que caíram e foram sepultadas dentro de sistemas fluviais, até petrificar. Fomos para lá e começamos a identificar sítios em várias regiões, uns 14 ou 15 deles. Os fósseis estavam visíveis, mas não eram reconhecidos como tal.

Margot dedicou a carreira ao estudo daquela descoberta. Em sua sala, no campus do Vale, onde mantém várias amostras, ela explica que ainda persistem muitas dúvidas sobre o fenômeno. Pela análise dos anéis de crescimento dos fósseis, sabe-se que o clima era muito distinto do atual, com períodos de seca e de precipitação intensa intercalados. Por causa da aridez, havia pouca variedade de espécies. A floresta era extensa, mas formada principalmente por gimnospermas, hoje em dia representadas pelo grupo dos pinheiros. Não há evidências de que tipo de fauna viveu nesse ambiente.

Outra incerteza diz respeito à razão para uma floresta inteira ter fossilizado, um evento extremamente raro. Acredita-se que tenha sido resultado de alguma circunstância extrema.

– Florestas como essa são raríssimas. O processo que gera fósseis mineralizados nós conhecemos, mas não se sabe direito por que aconteceu, a parte geológica da coisa. Pode ter sido um evento catastrófico, alguma ação que não é da natureza normal e que derrubou uma grande quantidade de árvores. Os troncos caíram dentro de um corpo de água, porque o processo de silicificação tem de ser subaquático. A condição essencial é ter um isolamento do meio ambiente, para a planta não ficar exposta. A sílica estava dissolvida na água. Ela penetra no tecido, mesmo dentro da água, as microbactérias vão degradando o lenho, e a sílica aproveita e vai pegando molécula a molécula e entrando no tecido degradado. No final, tu tens uma réplica perfeita do que era a planta, só que, em vez de ser em matéria orgânica, é em sílica. Isso que é fantástico. Podemos fazer lâminas e ver toda a estrutura anatômica preservada – diz a professora.

Na época em que Margot começou a trabalhar em Mata, uma figura decisiva chegava à cidade: o padre Daniel Cargnin, recém nomeado para a paróquia local.

Ele foi pioneiro em perceber a relevância da madeira petrificada e em lutar para preservá-la. O grande medo do padre era a perda do patrimônio. Por um lado, os moradores usavam as pedras como material de construção. Por outro, começou a haver gente contrabandeando lenhos para vender a curiosos, a colecionadores e a museus.

Em São Pedro do Sul, uma fábrica foi aberta para cortar os troncos, poli-los e confeccionar badulaques como cinzeiros ou pesos para papel.

Cargnin foi um vendaval na cidade. Conseguiu conscientizar a população, que a princípio o tachava de doido por afirmar que aquelas pedras incômodas eram valiosas. Tornou os moradores orgulhosos da riqueza paleontológica local, divulgou o nome de Mata e transformou a região em atração turística. Sobretudo, salvou toneladas de fósseis do desaparecimento.

– Ele valorizou aquilo que todo mundo achava um incômodo – relata o comerciante Edmar Bisognin, cuja casa, no centro de Mata, tem uma parede atravessada por um tronco de pedra, mantido no local por ser pesado demais para remover.

A principal ideia do padre foi usar os fósseis para decorar a cidade, o que deu-lhe o aspecto único que conserva até hoje. Boa parte das calçadas, dos muros das casas, das paredes, das escadarias e dos monumentos é confeccionada com blocos das árvores petrificadas. Quatro praças foram totalmente ladrilhadas e ornamentadas com as pedras. Em um esforço ecumênico, Cargnin garantiu que a paróquia católica, a igreja luterana e o templo da Assembleia de Deus fossem enfeitados com os lenhos de 200 milhões de anos. Espalhou pedaços de troncos por todo o lado. Era o Midas do fóssil mineral. Transformou Mata em uma cidade revestida de madeira petrificada.

Em 1999, quando eu estive na cidade para falar com o padre, ele contou sobre a ocasião em que soube de um carregamento de material que seria triturado:

– Quando vim para cá, a madeira era serrada em São Pedro do Sul para ser vendida como material de construção. Fui até lá e comprei, a preço de brita, 32 toneladas de fóssil cortado. Resolvi usar essas pedras para enfeitar a cidade, porque foi a única saída que achei para preservá-las e mantê-las em Mata.

Essa opção, usar um tesouro científico como elemento decorativo, rendeu muitas críticas ao padre. Com o tempo, no entanto, ganhou força a percepção de que ele estava certo. Passadas quatro décadas, o que resiste em Mata é basicamente o que Cargnin incrustou nas ruas e prédios da cidade.

– Houve controvérsia, muito bafafá, diziam que ele não podia mexer. Mas dá para entender a proposta dele. Ele não tinha apoio para a proteção. Se não soldasse o patrimônio no solo, roubavam. No desespero de preservar, começou a colocar em praças, em jardins, em altares. As autoridades não entenderam direito. Mas depois ele foi plenamente entendido. No final de tudo, o que foi que ficou? Foi isso – avalia a professora Margot.

OUTROS TEMPOS

Na entrada de Mata, um dinossauro saúda os visitantes. Região é conhecida por descobertas paleontológicas.

A MISSÃO DE CONSCIENTIZAR

Outra coisa que ficou foi o Jardim Paleobotânico, uma área de 3,5 hectares, localizada a 900 metros do Centro, que concentra fósseis em estado natural. É uma área de afloramento, na qual enormes troncos surgiram à superfície por causa da erosão. O terreno foi desapropriado pela prefeitura para virar uma reserva. Ainda se podem ver ali muros e alicerces das casas de antigos moradores, feitos de lenhos mineralizados.

Mais um legado deixado pelo padre é o Museu Daniel Cargnin, no centro da cidade, que tem a fachada decorada por fragmentos da pedra que foi madeira e guarda no interior uma coleção paleontológica. Começou na casa paroquial. Hoje, tem um sala reservada às peças minerais reunidas pelo antigo pároco. O decano do museu é Claudio Salla Bortolaz, 56 anos, preparador de fósseis autodidata. Ele era um adolescente da zona rural quando, em 1976, Cargin apareceu na propriedade da família, viu potencial nele e convidou-o a trabalhar com paleontologia.

Foi Bortolaz quem passou largos meses ao relento, nas praças da cidade, calcetando-as com os pedaços de fóssil coletados pelo padre:

– Eu nem sabia o que eram essas coisas, ninguém sabia, ninguém dava bola. Só achavam que as pedras eram um problema. No começo, foi difícil para o padre conscientizar.

Bortolaz prossegue:

– As pessoas ficavam meio assim, diziam: “Onde se viu madeira virar pedra?”. Mas sempre que se passava uma patrola, apareciam aqueles fósseis todos. O padre começou a amontoar no pátio da casa. E comecei a ajudar a fazer as praças, os muros, os degraus.

Na minha visita anterior a Mata, em 1999, um Cargnin já fragilizado pela idade mostrava exasperação com a dilapidação do patrimônio. Na teoria, a legislação brasileira protegia os fósseis, impedia que eles fossem retirados do local, vetava sua saída do país. Mas grande parte do material já havia sumido. Já não se encontravam mais os lenhos espalhados nos campos, como dantes. Mas era possível ver pedaços à venda em lojas do centro de Porto Alegre ou em sites internacionais para colecionadores. O padre estava amargurado.

– Onde quer que encontrem fósseis, as pessoas pegam. Nas obras de ornamentação, usei cimento para não quebrarem e levarem lascas. Não adiantou. Mesmo estando cimentado,  arrancam. Roubaram até mesmo o calçamento da frente da igreja. Desapareceu muito material dos sítios, principalmente do Jardim Paleobotânico. Ficaram apenas os troncos maiores, muito pesados. Dos fragmentos, 80% já não estão lá. A depredação é um pecado pelo qual a humanidade vai pagar caro. No futuro, vão se referir a nós como uns rabugentos que destruíam tudo – lamentou.

O padre morreu em 2002. Na entrada do cemitério local, Cláudio Bortolaz construiu um túmulo feito de madeira petrificada, onde repousam seus restos. A floresta pré-histórica perdeu seu grande protetor e divulgador. Com o tempo, Mata sumiu da mídia e os turistas pararam de vir.

– Depois que o padre faleceu, caiu mesmo, caiu completamente. Porque era ele que batalhava, que buscava convênios com universidades. Ele ia lá e agitava. Faz muita falta – reconhece Bortolaz.

Apesar dos percalços, ainda há muito para ver em Mata. A praça diante da igreja luterana, por exemplo, conta com uma arquibancada construída com fósseis e conserva a peça predileta de Cargnin, um tronco de 11 metros de comprimento e 15 toneladas – que infelizmente teve a raiz roubada. O Jardim Paleobotânico ainda permite um vislumbre do que foram os afloramentos mais abundantes, apesar de ser necessário passar antes no museu e solicitar um guia para poder visitá-lo, porque já não há mais um funcionário no local.

Há ainda a última obra do padre, uma gruta dedicada a Nossa Senhora de Lourdes.

A prefeitura sonha em voltar aos melhores dias. Recentemente, fez um vídeo caprichado para divulgar a cidade. Planeja remover o tronco encontrado na propriedade rural de Claudir Kleber, por exemplo, e expô-lo no monumento a Madre Paulina, em Mata. Quer remobilizar a população e conscientizar as crianças, introduzindo o assunto nas escolas. Para a professora Margot, que esteve pela última vez na região há oito anos e ficou chocada com as perdas que testemunhou, a saída é um projeto que envolva apoio da universidade, pesquisa científica, incentivo ao turismo e engajamento da população local.

– Estamos em um momento decisivo para Mata e São Pedro do Sul. Existe um risco de perda do patrimônio. Daqui a pouco não tem mais nada. Mas ainda está em tempo de fazer alguma coisa.

TEXTO

Itamar Melo

itamar.melo@zerohora.com.br

IMAGENS

Carlos Macedo

carlos.macedo@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Daniel Feix

daniel.feix@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

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