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Dauri Dilso Klein, de Marques de Souza, no Vale do Taquari, é o responsável por manter funcionando dezenas de relógios de igrejas, seminários e escolas em todo o sul do país

Amparado por duas cordas resistentes, Dauri Dilso Klein, 61 anos, inclina o corpo para trás e fica na ponta dos pés antes de iniciar a descida em um ritmo preciso: um passo atrás, uma ajeitada no freio do rapel e uma olhada para baixo, e assim repetidamente.O vento golpeia com força as suas costas, fazendo com que ele sacuda levemente sobre a cadeirinha preparada para o trajeto na vertical. A cada rajada, as pernas de Klein tremem. As mãos precisam seguir firmes.

Passarinhos desatentos quase trombam com ele. Do alto, percebe-se o grande número de curiosos acompanhando a função na Rua General Osório, centro do município de Marques de Souza, no Vale do Taquari.

São três metros de descida até que Klein consiga apoiar o pé direito sobre o número um e o esquerdo, sobre o 11. Em seguida, a confiança se fortalece: ele alcança os números cinco e sete, conseguindo agarrar com força os ponteiros. Segundos depois, o som estridente do sino ecoa: 16h30min. Era a hora certa, do alto da torre de 40 metros da Paróquia Evangélica de Marques de Souza, para começar a conferir o funcionamento do septuagenário relógio da igreja.

É na revisão desse que é identificado como seu “primeiro paciente” que Klein recorda o início da atividade profissional que mantém há quase duas décadas, desde quando iniciou um curso técnico de relojoeiro por correspondência – apenas para ganhar conhecimento, ele diz.

aventura

Klein conserta o relógio da Paróquia Evangélica de Marques de Souza

Não passava pela sua cabeça, hoje, ser considerado o único profissional capacitado para consertar relógios públicos em toda a região sul do Brasil – é assim que Klein se identifica.

O início propriamente dito se deu quando, em 1998, o relógio do templo de Marques de Souza parou de funcionar. Klein mantém, há 35 anos, uma ótica e joalheria no município. Foi chamado às pressas pelos vizinhos, e sentiu-se obrigado a auxiliar a comunidade evangélica. Em sua lembrança, só deu tempo de colocar um jaleco para se proteger da graxa das peças e encher uma maleta com martelos, chaves de fenda, alicates e luvas para, assim, fazer o primeiro de muitos consertos que se seguiriam nos anos posteriores.

Na época, Guido Theobaldo Schwertner, então com 80 anos, era o único a fazer o serviço no Rio Grande do Sul. Mas ele estava impedido de movimentar com força a corda do aparelho mecânico, datado de 1940.

O proprietário da indústria de relógios públicos Schwertner, de Estrela, era uma referência: sua empresa fora fundada em 1924 e até hoje é tida como a única fábrica do gênero no Estado. Produziu 14 séries diferentes até 1995, ano de encerramento das atividades. Hoje, mais de 200 relógios públicos com a sua marca estão espalhados pelo Brasil.

– Até então, eu estava acostumado a consertar os relógios de pulso ou de parede – recorda Klein. – Fiquei curioso com o desafio. Sobrou pra mim. Parecia um serviço simples, porque precisava regular um dos pontos. Resolvi o caso em dois dias.

Para sua surpresa, começaram a chover ligações de todas as partes do Estado perguntando se era ele o especialista em grandes relógios. O comerciante negava, fazendo questão de ressaltar que apenas era responsável pela manutenção do relógio da igreja local. Com o tempo, Klein descobriu que as indicações eram feitas pelo próprio Schwertner. A primeira resposta positiva a um chamado fora dos limites de Marques de Souza foi dada a uma representante da comunidade evangélica de Taquara. Klein havia sido chamado para analisar um equipamento que estava parado havia cinco anos. Ou ele seria consertado, ou seria doado a um museu.

– Percebi que poderia resolver a questão, mas estava me negando. Quando percebi, isso doeu. Me senti como um médico que vê alguém doente e se nega a salvá-lo. Fui a Taquara e avaliei o serviço. Pediram um preço. E eu desconhecia por completo os valores desse tipo de serviço. Pensei: vou chutar um valor bem alto para eles não aceitarem. Respondi e só ouvi: você pode começar em qual data? Fui obrigado a fazer o conserto – conta.

O problema de Taquara foi resolvido em menos de uma semana – e o relógio foi reinaugurado em uma grande festa na cidade. No dia do evento, Klein foi convidado a participar de um culto especial. A lembrança ainda o emociona.

– Faltando segundos para as 21h, o pastor pediu para eu me levantar em meio aos fiéis. O sino começou a bater depois de muito tempo, e todos me aplaudiram de pé. Daquela noite em diante, prometi que nunca mais negaria ajuda a uma cidade.

Voltei à vida – relembra.

Daquela noite em diante, quase uma centena de relógios de igreja, seminários e escolas em diferentes municípios do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e do Paraná já passou pelas mãos de Klein. E o passatempo, reconhece, acabou se tornando o que considera um vício. Tanto que a primeira tarefa ao visitar uma cidade é contar os seus relógios públicos. Segundo a sua contagem, há mais de 500 em todo o Brasil. Em uma viagem recente de férias ao Rio de Janeiro, contou 10 apenas na região da Lapa. Todos parados, para sua tristeza. Em outras épocas, explica, ostentar um relógio na torre de uma igreja era sinônimo de força daquela instituição religiosa. Atualmente, a maior parte se tornou patrimônio histórico e cultural.

– O diagnóstico é quase sempre o mesmo para a maioria: sujeira e falta de manutenção adequada. Eles funcionam como o motor de um Fusca ou de uma Brasília: sem regulagem, perde a força e não anda. Se está no ponto, funciona bem. Todo relógio pode ser consertado – defende.

LEGADO

Uma das missões de Klein é ensinar seu ofício. “Não quero ser o único”, diz

O técnico calcula que a fabricação e a instalação de um relógio público, devido à complexidade, pode ultrapassar os R$ 150 mil. Por isso, é melhor consertar aqueles que estão inoperantes.

Em 2002, um caso se tornou especial para Klein. Era o maquinário da Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição Aparecida, em Alegrete. Importado da Espanha, o relógio era uma peça única, com detalhes desconhecidos. Estava desmontado e parado havia três décadas. Para piorar a situação, parte das peças havia desaparecido. As sobras foram levadas por Klein para Marques de Souza. Na sua oficina, ele gastou seis meses estudando o conserto. Insistente, produziu até peças de madeira como protótipos para entender o funcionamento do equipamento. Fabricou em bronze 10 peças que fizeram o relógio voltar a funcionar.

– Dei um berro quando acertei os ponteiros. Foi uma vitória! Na volta a Alegrete, ensinei uma pessoa a fazer a manutenção básica. Sigo ligando para saber se está tudo em ordem. Ele jamais parou novamente – assegura, orgulhoso.

Já o centenário relógio à corda de Vila de Santa Theresa, em Bagé, fora importado da Alemanha em 1908. Também estava parado havia décadas (50 anos, precisamente) e foi transformado por Klein em um equipamento automático. O trabalho demandou três meses de pesquisas.

Entre as façanhas do relojoeiro, há a criação de um sistema que elimina o som das badaladas à noite em locais nos quais existe a lei do silêncio entre 22h e 6h – casos de Venâncio Aires, Passo Fundo e Estrela, no Rio Grande do Sul, e Pato Branco, no Paraná. O mais recente desafio foi aprimorar a prática do rapel, necessária quando o problema se dá nos ponteiros dos equipamentos. Klein garante não ter medo de altura – mantém apenas respeito por ela. Em São Luís Gonzaga, na região das Missões, contou com a ajuda do Corpo de Bombeiros para subir na torre da igreja local. Em Marques de Souza, costuma ter o auxílio do pintor Moacir Nolan, acostumado a pintar nas alturas. A próxima meta é adquirir equipamento próprio para o rapel – que também virou hobby, diz.

Cada vez mais dedicado à função, ele afirma que “não faz meia sola” em nenhum serviço. Contratado para recuperar um “novo paciente”, compromete-se a fazer uma reforma geral e elaborar um manual de instruções para que a própria comunidade faça a limpeza, a lubrificação e a regulagem correta e, assim, evite novos problemas.

– Me chamam de louco porque sempre ensino alguém – comenta.

– Mas acredito que o sol nasceu para todos. Não quero ser o único. Irei em paz no dia em que morrer, pois terei feito a minha parte ao ensinar alguém.

Desde a infância, vivida no interior de Marques de Souza, Klein tem na curiosidade uma característica de sua personalidade. Estudou até a 5ª série do Ensino Fundamental e, na adolescência, aprendeu com a mãe, costureira na comunidade, a fazer a própria roupa para ir às festas. O pai, marceneiro, o ensinou a criar manualmente as ferramentas de trabalho. Do avô paterno, um artesão que gostava de produzir cestas de vime, afirma ter herdado a paciência para aprender algo novo. Com o avô materno, dono de uma pequena forjaria, começou a mexer com solda até produzir sozinho, ainda guri, um fole para matar formigas.

Klein trabalhou como agricultor durante a adolescência, ajudando a família na lida no campo. Durante a infância, comunicava-se apenas usando o alemão típico da região. Foi no período em que serviu ao Exército que se viu obrigado a comunicar-se em português. No retorno, sem emprego, fez cursos de eletrônica e relojoeiro – para consertos de relógios de pulso, despertadores e de parede – por correspondência. Morando numa região marcada pelas pedras semipreciosas, começou sozinho a lapidá-las e a produzir joias depois presenteadas aos amigos. Nessa época, no início dos anos de 1980, aprendeu com um lapidador a produzir correntes, brincos e anéis. Fez da lição seu ofício.

– Sempre foi assim: sem planos não sei viver. Gosto de fazer aquilo que os outros não conseguem – resume.

Ele e a mulher Marlise, com quem é casado há 33 anos, foram os primeiros a inaugurar uma joalheria em Marques de Souza. Os filhos seguiram outros ofícios: Denise formou-se em Ciências Exatas e trabalha como professora, e Cristian é fisioterapeuta. Klein está na busca por alguém que, no futuro, possa substituí-lo na rara função.

Há três anos, quase desistiu de atuar na área quando um incêndio consumiu parte da casa da família, incluindo a oficina montada especialmente para o trabalho com os complexos aparelhos. Dentro da peça havia também relógios de parede centenários que estavam em conserto. Até o carro usado nas viagens a trabalho foi destruído. Do local, sobraram chamuscados apenas o soldador, a esmerilhadeira e o torno. E a maleta com as ferramentas, que estava fora do local usual de trabalho.

A casa, aos poucos, foi inteiramente reconstruída. O novo espaço para os consertos ainda está sendo organizado. Na área, inacabada, dois relógios estão sendo montados apenas com as peças retiradas de aparelhos sucateados. Como não podia deixar de ser, os relógios não faltam na casa da família. Há duas dezenas em todas as peças da morada de três andares, desde a entrada principal. Um foi projetado pelo técnico especialmente para ficar no banheiro, embutido no armário ao lado do espelho, acima da pia. Até durante a escovação do cabelo, Klein faz questão de controlar o tempo. Quando a hora se completa, é possível ouvir da rua as badaladas dos cucos nas paredes da residência.

Do terceiro andar, o casal – que ainda usa relógios de pulso – costuma observar a torre da igreja da comunidade evangélica de Marques de Souza. Uma vez por semana, o relógio, que é do tipo manual, precisa de corda para seguir funcionando. Klein com frequência assume pessoalmente essa função para conferir se tudo segue em ordem. Desde que esteja na cidade. Quando recebeu a reportagem, semanas atrás, o relojoeiro tinha três viagens marcadas para consertar equipamentos entre o Rio Grande do Sul e o Paraná. Klein, assim como os relógios que ele conserta, não para.

TEXTO

Aline Custódio

aline.custodio@diariogaucho.com.br

IMAGENS

Mateus Bruxel

mateus.bruxel@diariogaucho.com.br

EDIÇÃO

Daniel Feix

daniel.feix@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

 

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

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