A lenda de Minervina
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Ela foi repudiada pelo noivo na noite de núpcias, por não ser mais virgem? Ela foi ao Papa para obter licença e construir uma igreja? Ela foi a modelo da Nossa Senhora da Imaculada Conceição que, no templo, ocupa o centro do altar? ZH viajou a Jaguarão para deslindar a história dessa personagem, na segunda reportagem da série Singular – um olhar sobre o rio grande.

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a festa da Imaculada Conceição de 1953, aos nove anos de idade, Eduardo Alvares de Souza Soares esteve pela primeira e única vez na presença de Minervina Carolina Correa, que vivia então os últimos dias de uma existência marcada por escândalo e mistério. O encontro ocorreu na igreja que ela mandara construir em homenagem à Virgem. A edificação é, ainda hoje, detentora do título de mais alta de Jaguarão.

Terminada a missa, celebrada em meio aos mármores de Carrara importados da Itália, o menino acompanhou o avô em uma recepção no casarão da nonagenária, localizado no mesmo terreno. Ali, no salão principal da residência, a um ou dois metros de distância, pôde contemplar com calma a mulher mais rica e mais falada da região. Sentada à cabeceira da mesa, Minervina apareceu-lhe em um traje escuro, com um véu muito comprido sobre a cabeça e o ar ausente de quem já havia perdido algo do contato com a realidade.

Passados mais de 60 anos daquele encontro, gravado para sempre na memória, Eduardo conseguiu reunir um conjunto de documentos, objetos e testemunhos que lançam uma luz inédita sobre mais de um século de rumores, lendas e maledicências envolvendo a figura de Minervina. Herdeira da família mais poderosa da região, proprietária de 20 mil hectares de terra, ela está há 130 anos na boca e no imaginário dos jaguarenses, primeiro através de cochichos e insinuações a portas fechadas, atualmente na condição de protagonista do episódio mais comentado da história local, transmitido de pai para filho e recitado por todo guia turístico diante dos que visitam a cidade.

As versões sobre o que aconteceu são variadas, mas em linhas gerais o que se conta, geração após geração, é que a jovem Minervina foi repudiada pelo marido em plena noite de núpcias. Ele a teria devolvido aos pais ao constatar que já não era pura, que já experimentara outro homem. O falatório teria levado o padre a vetar a presença da pecadora nas dependências da igreja.

Segundo a tradição, foi por isso, ou então para dar algum tipo de resposta a uma comunidade recriminadora, que Minervina viajou a Roma e obteve do papa a licença para construir uma nova igreja em Jaguarão, um templo capaz de rivalizar em requinte com a própria Matriz. Sob os alicerces, depositou terra que buscou em Jerusalém. Forrou o interior com retábulos, uma pia batismal e um púlpito ricamente esculpidos no mármore italiano. Bem no centro do altar, mandou colocar uma imagem de Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Dizem que a estátua reproduz com exatidão o tamanho, as formas e as feições da própria Minervina. Dizem que ela, talvez num desafio à sociedade, pôs a si mesma no altar.

Eduardo, autor de 10 livros sobre a história de Jaguarão, passou a vida a escutar esses relatos, até resolver apurar o que havia de verdade neles. Há pouco, depois de uma década de investigações que o levaram a perseguir pistas em diferentes partes do Brasil e do Exterior, chegou ao fim desse novelo. Desenredou o enigma. E o que ele descobriu é que a real história de Minervina é ainda mais interessante do que a lenda.

– Eu me criei ouvindo essas histórias, que todas as familias de Jaguarão comentavam intramuros, ainda que socialmente se fizessem de desentendidas. Minervina sempre viveu, não estou dizendo se justa ou injustamente, vítima de toda essa boataria, de uma grande maledicência que persiste até hoje. Porque a verdade, ao ser ocultada, nunca veio à tona. Pela desinformação, pelo fato de as famílias nunca terem contado a verdade, criou-se um imaginário enorme em torno dela. Fui entrando nessa história e cheguei aonde não esperava chegar – afirma o pesquisador.

Para começar, os documentos desencavados por Eduardo comprovam a veracidade do fim brusco e escandaloso do casamento, mas derrubam o mito da noiva repudiada na noite de núpcias. O tal matrimônio ocorreu no dia 20 de janeiro de 1883, em Jaguarão, às vésperas do 22º aniversário de Minervina. O noivo era um conhecido médico de Rio Grande, Custódio Vieira de Castro, formado e condecorado na Alemanha. Vinte anos mais velho do que a noiva, ele também vinha de família ilustre e rica, ainda que não fosse tão endinheirado quanto ela.

Na época, os casamentos ocorriam no âmbito religioso, com validade civil, e foi em uma vara eclesiástica que Eduardo localizou o processo de divórcio (correspondente então a uma separação de corpos e bens, sem rompimento do vínculo matrimonial). Esses papéis revelam que Custódio, após subir ao altar, ainda permaneceu um mês ao lado de Minervina. Deixou-a apenas em fevereiro. Foi embora para Rio Grande, onde o irmão estava à beira da morte, e não mais retornou a Jaguarão.

– Em um primeiro momento, ele não quis se separar. Tenho a impressão de que esse homem relutou, que ela custou a confessar. O que está escrito é que nas primeiras noites do casamento não houve conjunção carnal. Isso está escrito, é a palavra do Custódio. Até que ele, determinada noite, apalpou Minervina. Era médico. Apalpou a vagina e os seios e notou os seios flácidos, de uma mulher que já tivesse engravidado. A dor desse homem é que ele se sentiu traído, por ela esconder o fato de que já tinha sido, segundo a expressão dele, “desonestada”. Ela escondeu o fato de ter perdido sua virgindade, que era um valor absoluto e exigido das mulheres, que se casassem imaculadas.

O historiador suspeita que os rumores sobre uma gravidez antiga de Minervina já circulassem por Jaguarão, tendo chegado aos ouvidos do médico rio-grandino e provocado sua desconfiança. O certo é que ele partiu, mas não foi ele quem pediu o divórcio. Eduardo surpreendeu-se ao constatar que a iniciativa veio da própria Minervina, alegando calúnia e difamação por parte do marido que a abandonara.

É provável, entende Eduardo, que ela tenha feito isso para se antecipar. Além de apresentar-se como ofendida antes de que o marido o fizesse, esse movimento trazia outra vantagem. Minervina era católica. Custódio, maçom. Na época, ainda estavam abertas as cicatrizes da chamada Questão Religiosa, que opôs a Igreja à Maçonaria. Não era de esperar que um tribunal eclesiástico ficasse ao lado de um não crente. Seja como for, em dezembro de 1884, quase dois anos depois do casamento, a sentença foi proferida. Acolhia as razões de Minervina. Oficialmente, Custódio é que dera causa ao divórcio.

– O resultado prático é que ele não pôde provar que ela mentiu, que ela traiu. Ao contrário, esse homem morreu com a pecha de ter sido caluniador e difamador da sua mulher. Mas o fato de ela ter ganho o processo nunca apagou, durante toda a vida, a versão de que ela teve um filho – afirma Eduardo.

 talvez a peça mais impressionante seja o púlpito, dotado de uma escada recurva para alcançá-lo e de umA cobertura trabalhada, tudo em mármore

MINERVINA TEVE FILHO COM O CUNHADO,
ORGANIZADOR DO BAILE DA ILHA FISCAL?

 

Se Minervina teve um filho antes de casar, que filho era esse? E quem era o pai? Convém voltar à adolescência da personagem para buscar essas respostas. Ela tinha 14 anos quando perdeu o pai, Faustino João Correa. Aos 15, morreu-lhe a mãe, Maria Carolina Correa. Por ser menor de idade, um tutor foi nomeado: José Francisco Diana, o marido de Amélia Leopoldina, irmã de Minervina.

José Francisco foi uma figura relevante do Segundo Império. Advogado formado em São Paulo, com veleidades literárias que o levaram a lançar-se a uma tradução da Eneida, fez carreira política no Partido Liberal e foi eleito várias vezes deputado por Jaguarão, onde também exerceu a função de promotor público. O cargo máximo a que chegou foi o de ministro – o último a ocupar a pasta dos Estrangeiros (atual Ministério das Relações Exteriores) no período imperial. Coube ao jaguarense a organização do famoso baile da Ilha Fiscal, a grande festa da Monarquia realizada dias antes da Proclamação da República.

Vasculhando jornais do período em que Minervina e Custódio se separaram, Eduardo encontrou ataques a José Francisco desferidos por integrantes do adversário Partido Conservador, nos quais faziam-se insinuações maliciosas de uma ligação entre ele e a jovem cunhada. O historiador afirma que alusões a essa ligação costumavam circular em Jaguarão, mas muito à sorrelfa, por causa da blindagem que a poderosa família Correa impunha ao assunto.

Dias atrás, em sua residência atulhada de livros na área central de Jaguarão, diante de uma janela da qual se avistava a azulada torre da igreja que Minervina mandou construir, Eduardo contou ter obtido um convincente testemunho de que realmente houve um romance entre a jovem e seu cunhado. Foi buscá-lo em Montevidéu, a cidade para onde Diana transferiu-se após a queda da Monarquia. Na capital uruguaia, localizou o major do exército Justo Diana Lorenzo, bisneto do político jaguarense.

– Pena que esse homem morreu. Era a memória viva da família Diana. O que eu tenho de maior certeza é o depoimento desse bisneto, que eu trouxe a Jaguarão e que, diante  do Instituto Histórico e Geográfico, com a presença de vários membros, afirmou: “Eu não sou bisneto da Amélia Leopoldina, que era a mulher do Diana, eu sou bisneto da Minervina” – conta o historiador.

Segundo o relato feito por Justo, no seio da família nunca houve dúvidas ou mistério sobre essa origem. Eduardo ainda não quer que sejam publicados o nome e as imagens daquele que seria o filho de José Francisco com a cunhada, porque planeja revelar as descobertas que fez e a documentação que reuniu em um livro que está escrevendo. Mas diz que esse rebento proibido nasceu em 1880, quando Minervina contava 19 anos, e fez a vida como advogado em Montevidéu. O que se acredita é que, constatada a gravidez, José Francisco e as irmãs viajaram para algum destino incerto. Voltaram a Jaguarão com um bebê, apresentado como filho de Amélia Leopoldina.

Segundo Eduardo, outros elementos reforçam a hipótese de que a criança era de Minervina, a começar pelo fato de que Amélia esteve grávida muitas vezes, mas não conseguiu gerar nenhum outro filho. Também chama a atenção o ressentimento que a mulher de José Francisco demonstrava em relação à irmã, um indício de que teria sido forçada a aceitar uma situação humilhante para salvar as aparências.

O major Justo contou ao pesquisador brasileiro que Amélia teve uma reação virulenta ao receber Minervina, em 1929, no seu leito de morte:

– Sai daqui, coruja, que tu foste a desgraça da minha vida.

Não deve mesmo ter sido fácil para Amélia. Minervina sempre se manteve por perto, ao redor de José Francisco e da criança, que tratava para efeitos sociais como “afilhado”. Quando o advogado e político mudou-se para Montevidéu com a esposa, a jovem cunhada passou a residir mais tempo com eles, no país vizinho, do que em Jaguarão. Só voltou em definitivo à cidade natal depois que José Francisco morreu.

O historiador Eduardo preferiu escrever um livro de ficção, um romance

O QUE A ORNAMENTAÇÃO DA IGREJA
DIZ SOBRE O FILHO CLANDESTINO?

 

Quando isso aconteceu, Minervina já tinha mandado construir a Igreja da Imaculada Conceição, concluída em 1912, após três anos de obras. Para obter licença para o empreendimento, viajou várias vezes ao Vaticano, onde privou com os papas Leão XIII (1878-1903) e Pio X (1903-1904). Foi o primeiro, em 1901, quando Minervina tinha 40 anos, que concedeu a permissão. A relação com os dois papas está documentada em correspondência coletada por Eduardo.

– Pense bem na situação de uma pessoa, frente a toda essa maledicência que havia, ser recebida por um papa. Era uma demonstração de grande poder. Sem nenhuma dúvida, Minervina estava tentando mostrar à comunidade de Jaguarão a força que tinha, a reputação que tinha. Imagine o custo de fazer uma Igreja dessas. A torre, do solo ao cume, tem 45 metros. É o ponto mais alto de Jaguarão. Não há dúvida de que isso não veio de graça, de que tem um significado – analisa o pesquisador.

O interior tem certa suntuosidade, principalmente por causa dos mármores importados. No nobre e dispendioso material, Minervina mandou esculpir dois retábulos, um em homenagem à mãe, outro ao pai. Mas talvez a peça mais impressionante seja o púlpito, dotado de uma escada recurva para alcançá-lo e de uma cobertura trabalhada, tudo em mármore.

Há ainda detalhes insólitos, que desafiam interpretações, como um conjunto de cisnes esculpidos no alto da torre – elemento estranho à arquitetura sacra. Eduardo desconfia de uma referência ao mito grego de Leda e o cisne, em que Zeus se metamorfoseia na ave para seduzir a rainha de Esparta. Dessa relação, Leda tem dois filhos, que são adotados por seu marido como se dele fossem. Seria, portanto, uma alusão à própria história de Minervina, Amélia e José Francisco Diana.

Mas o aspecto mais significativo, mais evocativo, do templo tem a ver com sua consagração a Nossa Senhora da Imaculada Conceição – a santa que celebra o dogma católico segundo o qual Maria concebeu Jesus sem mancha, sem pecado, cheia de graça divina. Seria uma referência a como Minervina via ou queria que vissem o filho clandestino concebido com Diana? Eduardo, o historiador, identifica na imagem da Virgem colocada sobre o altar uma gestante, algo que foge à tradição das representações da Imaculada Conceição.

– A lenda sempre foi que a imagem teria as dimensões corporais da Minervina, talvez como um gesto de vingança frente à sociedade de Jaguarão, que a criticou e repudiou. Eu me dei ao trabalho de subir ao altar por trás e de medi-la. Não sei se são as medidas da Minervina, mas tem medidas humanas. A altura e as dimensões correspondem às de um corpo humano. Não há nada desproporcional nela – diz.

Um forte indício de que isso incomodou a comunidade é um objeto que o historiador conserva em um cofre e que revelou pela primeira vez na conversa com Zero Hora. Trata-se de uma medalha, do tipo que, no passado, era comum cunhar em celebração às festas religiosas. Datada de 1913, ano seguinte à inauguração da igreja de Minervina, a medalha alude à festa da Imaculada Conceição daquele ano. Mas tem características perturbadoras. Em uma das faces, exibe uma mulher grávida, com um filho no colo. No verso, a inscrição: “Maculada Conceição”.

Não se sabe a origem dessa medalha e não existe documentação alguma sobre sua existência. Para Eduardo, ela foi cunhada como uma provocação:

– Penso que é uma insinuação sobre a Minervina. Não posso garantir, mas tudo leva a crer. A inscrição poderia parecer um erro, não fosse a imagem no anverso, de uma mulher com o filho no colo, que não é uma representação da Imaculada Conceição.

O livro que Eduardo vem escrevendo sobre o assunto já leva 220 páginas e deve ficar pronto no ano que vem. Pela primeira vez na carreira do pesquisador, não será um tratado histórico. Será um romance. De certa forma, atenderá a uma cobrança feita meio século atrás por uma figura que o influenciou profundamente, o escritor Erico Verissimo. Aos 19 anos, em uma visita a Porto Alegre, o então autor de sonetos deparou com o romancista de O Tempo e o Vento a andar pela Rua da Praia. Seguiu-o até o interior da Livraria do Globo, mas não teve coragem de abordá-lo.

Um tio de Eduardo veio a calhar: contatou Verissimo e conseguiu um encontro do escritor com o jovem poeta. Em 19 de setembro de 1963, segundo Eduardo, ele foi recebido para uma conversa de três horas na residência da Rua Felipe de Oliveira – experiência que define como a coisa mais marcante que fez na vida. Aquela visita prolongou-se depois em uma troca de cartas, nas quais vê-se o autor consagrado a incentivar o literato iniciante. Eduardo confessa que sempre alimentou essa ambição, mas só agora, passado mais de meio século, encontrou um tema à altura, Minervina. E acredita que apenas a ficção é capaz de dar conta desse enredo:

– Acho que esse livro não pode ser escrito como História, porque não se pode excluir uma certa dose de emoção. Vou fornecer os dados e reproduzir os documentos, pois nada impede a ficção de fazer isso. Na minha novela, não vou fazer acusações. Embora eu tenha suspeitas muito fortes, vou apresentar as três versões: a do Custódio, a do José Francisco Diana e a da Minervina.

O primeiro do trio, Custódio, nunca voltou a se casar. Com a morte do irmão, assumiu o cuidado das filhas que ele deixou, entre elas Serafina Correa (que hoje empresta o nome a um município gaúcho). Morreu em 1905, aos 50 e poucos anos. O comércio de Rio Grande fechou, em sinal de luto. Sua lápide define-o como “puritano” e assegura que “seu nome será sempre bendito, porque na família é glória, na comunidade é lema, na comunhão é símbolo da honra e do trabalho”.

A vida de José Francisco Diana chegou ao fim em 1916, no país vizinho. Morto o cunhado, Minervina mandou construir em Jaguarão, ao lado da sua igreja, a casa onde passou os últimos anos de vida. Usado por ela como capela particular, o templo só era aberto ao público duas vezes por ano: em 7 de fevereiro, aniversário da proprietária, e em 8 de dezembro, dia da Imaculada Conceição.

Minervina morreu em 1954, um dia antes de completar 93 anos. Seu corpo saiu da igreja que construíra, em cortejo até o cemitério da cidade.

Depois disso, o casarão virou casa paroquial, e a capela, paróquia católica e atração turística. Mas, um dia, Minervina voltou. Seus restos foram trasladados e hoje encontram-se no interior da igreja. Estão mais perto de uma inscrição meio oculta na lateral do altar, que ela mandou gravar no mármore:

 

Nossa Senhora da Conceição

Rogai por mim

 Minervina

TEXTO

Itamar Melo

itamar.melo@zerohora.com.br

IMAGENS

Carlos Macedo

carlos.macedo@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Ticiano Osório

ticiano.osorio@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

A lenda de Minervina
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CAPA DO ESPECIAL

A lenda de Minervina

Ela foi repudiada pelo noivo na noite de núpcias, por não ser mais virgem? Ela foi ao Papa para obter licença e construir uma igreja? Ela foi a modelo da Nossa Senhora da Imaculada Conceição que, no templo, ocupa o centro do altar? ZH viajou a Jaguarão para deslindar a história dessa personagem, na segunda reportagem da série Singular – um olhar sobre o rio grande.

Na festa da Imaculada Conceição de 1953, aos nove anos de idade, Eduardo Alvares de Souza Soares esteve pela primeira e única vez na presença de Minervina Carolina Correa, que vivia então os últimos dias de uma existência marcada por escândalo e mistério. O encontro ocorreu na igreja que ela mandara construir em homenagem à Virgem. A edificação é, ainda hoje, detentora do título de mais alta de Jaguarão.

Terminada a missa, celebrada em meio aos mármores de Carrara importados da Itália, o menino acompanhou o avô em uma recepção no casarão da nonagenária, localizado no mesmo terreno. Ali, no salão principal da residência, a um ou dois metros de distância, pôde contemplar com calma a mulher mais rica e mais falada da região. Sentada à cabeceira da mesa, Minervina apareceu-lhe em um traje escuro, com um véu muito comprido sobre a cabeça e o ar ausente de quem já havia perdido algo do contato com a realidade.

Passados mais de 60 anos daquele encontro, gravado para sempre na memória, Eduardo conseguiu reunir um conjunto de documentos, objetos e testemunhos que lançam uma luz inédita sobre mais de um século de rumores, lendas e maledicências envolvendo a figura de Minervina. Herdeira da família mais poderosa da região, proprietária de 20 mil hectares de terra, ela está há 130 anos na boca e no imaginário dos jaguarenses, primeiro através de cochichos e insinuações a portas fechadas, atualmente na condição de protagonista do episódio mais comentado da história local, transmitido de pai para filho e recitado por todo guia turístico diante dos que visitam a cidade.

As versões sobre o que aconteceu são variadas, mas em linhas gerais o que se conta, geração após geração, é que a jovem Minervina foi repudiada pelo marido em plena noite de núpcias. Ele a teria devolvido aos pais ao constatar que já não era pura, que já experimentara outro homem. O falatório teria levado o padre a vetar a presença da pecadora nas dependências da igreja.

Segundo a tradição, foi por isso, ou então para dar algum tipo de resposta a uma comunidade recriminadora, que Minervina viajou a Roma e obteve do papa a licença para construir uma nova igreja em Jaguarão, um templo capaz de rivalizar em requinte com a própria Matriz. Sob os alicerces, depositou terra que buscou em Jerusalém. Forrou o interior com retábulos, uma pia batismal e um púlpito ricamente esculpidos no mármore italiano. Bem no centro do altar, mandou colocar uma imagem de Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Dizem que a estátua reproduz com exatidão o tamanho, as formas e as feições da própria Minervina. Dizem que ela, talvez num desafio à sociedade, pôs a si mesma no altar.

Eduardo, autor de 10 livros sobre a história de Jaguarão, passou a vida a escutar esses relatos, até resolver apurar o que havia de verdade neles. Há pouco, depois de uma década de investigações que o levaram a perseguir pistas em diferentes partes do Brasil e do Exterior, chegou ao fim desse novelo. Desenredou o enigma. E o que ele descobriu é que a real história de Minervina é ainda mais interessante do que a lenda.

– Eu me criei ouvindo essas histórias, que todas as familias de Jaguarão comentavam intramuros, ainda que socialmente se fizessem de desentendidas. Minervina sempre viveu, não estou dizendo se justa ou injustamente, vítima de toda essa boataria, de uma grande maledicência que persiste até hoje. Porque a verdade, ao ser ocultada, nunca veio à tona. Pela desinformação, pelo fato de as famílias nunca terem contado a verdade, criou-se um imaginário enorme em torno dela. Fui entrando nessa história e cheguei aonde não esperava chegar – afirma o pesquisador.

Para começar, os documentos desencavados por Eduardo comprovam a veracidade do fim brusco e escandaloso do casamento, mas derrubam o mito da noiva repudiada na noite de núpcias. O tal matrimônio ocorreu no dia 20 de janeiro de 1883, em Jaguarão, às vésperas do 22º aniversário de Minervina. O noivo era um conhecido médico de Rio Grande, Custódio Vieira de Castro, formado e condecorado na Alemanha. Vinte anos mais velho do que a noiva, ele também vinha de família ilustre e rica, ainda que não fosse tão endinheirado quanto ela.

Minervina construiu ao lado da Imaculada Conceição a casa onde viveu seus últimoS anos. Os restos mortais estão na igreja

Na época, os casamentos ocorriam no âmbito religioso, com validade civil, e foi em uma vara eclesiástica que Eduardo localizou o processo de divórcio (correspondente então a uma separação de corpos e bens, sem rompimento do vínculo matrimonial). Esses papéis revelam que Custódio, após subir ao altar, ainda permaneceu um mês ao lado de Minervina. Deixou-a apenas em fevereiro. Foi embora para Rio Grande, onde o irmão estava à beira da morte, e não mais retornou a Jaguarão.

– Em um primeiro momento, ele não quis se separar. Tenho a impressão de que esse homem relutou, que ela custou a confessar. O que está escrito é que nas primeiras noites do casamento não houve conjunção carnal. Isso está escrito, é a palavra do Custódio. Até que ele, determinada noite, apalpou Minervina. Era médico. Apalpou a vagina e os seios e notou os seios flácidos, de uma mulher que já tivesse engravidado. A dor desse homem é que ele se sentiu traído, por ela esconder o fato de que já tinha sido, segundo a expressão dele, “desonestada”. Ela escondeu o fato de ter perdido sua virgindade, que era um valor absoluto e exigido das mulheres, que se casassem imaculadas.

O historiador suspeita que os rumores sobre uma gravidez antiga de Minervina já circulassem por Jaguarão, tendo chegado aos ouvidos do médico rio-grandino e provocado sua desconfiança. O certo é que ele partiu, mas não foi ele quem pediu o divórcio. Eduardo surpreendeu-se ao constatar que a iniciativa veio da própria Minervina, alegando calúnia e difamação por parte do marido que a abandonara.

É provável, entende Eduardo, que ela tenha feito isso para se antecipar. Além de apresentar-se como ofendida antes de que o marido o fizesse, esse movimento trazia outra vantagem. Minervina era católica. Custódio, maçom. Na época, ainda estavam abertas as cicatrizes da chamada Questão Religiosa, que opôs a Igreja à Maçonaria. Não era de esperar que um tribunal eclesiástico ficasse ao lado de um não crente. Seja como for, em dezembro de 1884, quase dois anos depois do casamento, a sentença foi proferida. Acolhia as razões de Minervina. Oficialmente, Custódio é que dera causa ao divórcio.

– O resultado prático é que ele não pôde provar que ela mentiu, que ela traiu. Ao contrário, esse homem morreu com a pecha de ter sido caluniador e difamador da sua mulher. Mas o fato de ela ter ganho o processo nunca apagou, durante toda a vida, a versão de que ela teve um filho – afirma Eduardo.

Talvez a peça mais impressionante seja o púlpito, dotado de uma escada recurva para alcançá-lo e de uma cobertura trabalhada, tudo em mármore.

MINERVINA TEVE FILHO COM O CUNHADO, ORGANIZADOR DO BAILE DA ILHA FISCAL?

Se Minervina teve um filho antes de casar, que filho era esse? E quem era o pai? Convém voltar à adolescência da personagem para buscar essas respostas. Ela tinha 14 anos quando perdeu o pai, Faustino João Correa. Aos 15, morreu-lhe a mãe, Maria Carolina Correa. Por ser menor de idade, um tutor foi nomeado: José Francisco Diana, o marido de Amélia Leopoldina, irmã de Minervina.

José Francisco foi uma figura relevante do Segundo Império. Advogado formado em São Paulo, com veleidades literárias que o levaram a lançar-se a uma tradução da Eneida, fez carreira política no Partido Liberal e foi eleito várias vezes deputado por Jaguarão, onde também exerceu a função de promotor público. O cargo máximo a que chegou foi o de ministro – o último a ocupar a pasta dos Estrangeiros (atual Ministério das Relações Exteriores) no período imperial. Coube ao jaguarense a organização do famoso baile da Ilha Fiscal, a grande festa da Monarquia realizada dias antes da Proclamação da República.

Vasculhando jornais do período em que Minervina e Custódio se separaram, Eduardo encontrou ataques a José Francisco desferidos por integrantes do adversário Partido Conservador, nos quais faziam-se insinuações maliciosas de uma ligação entre ele e a jovem cunhada. O historiador afirma que alusões a essa ligação costumavam circular em Jaguarão, mas muito à sorrelfa, por causa da blindagem que a poderosa família Correa impunha ao assunto.

Dias atrás, em sua residência atulhada de livros na área central de Jaguarão, diante de uma janela da qual se avistava a azulada torre da igreja que Minervina mandou construir, Eduardo contou ter obtido um convincente testemunho de que realmente houve um romance entre a jovem e seu cunhado. Foi buscá-lo em Montevidéu, a cidade para onde Diana transferiu-se após a queda da Monarquia. Na capital uruguaia, localizou o major do exército Justo Diana Lorenzo, bisneto do político jaguarense.

– Pena que esse homem morreu. Era a memória viva da família Diana. O que eu tenho de maior certeza é o depoimento desse bisneto, que eu trouxe a Jaguarão e que, diante  do Instituto Histórico e Geográfico, com a presença de vários membros, afirmou: “Eu não sou bisneto da Amélia Leopoldina, que era a mulher do Diana, eu sou bisneto da Minervina” – conta o historiador.

Segundo o relato feito por Justo, no seio da família nunca houve dúvidas ou mistério sobre essa origem. Eduardo ainda não quer que sejam publicados o nome e as imagens daquele que seria o filho de José Francisco com a cunhada, porque planeja revelar as descobertas que fez e a documentação que reuniu em um livro que está escrevendo. Mas diz que esse rebento proibido nasceu em 1880, quando Minervina contava 19 anos, e fez a vida como advogado em Montevidéu. O que se acredita é que, constatada a gravidez, José Francisco e as irmãs viajaram para algum destino incerto. Voltaram a Jaguarão com um bebê, apresentado como filho de Amélia Leopoldina.

Segundo Eduardo, outros elementos reforçam a hipótese de que a criança era de Minervina, a começar pelo fato de que Amélia esteve grávida muitas vezes, mas não conseguiu gerar nenhum outro filho. Também chama a atenção o ressentimento que a mulher de José Francisco demonstrava em relação à irmã, um indício de que teria sido forçada a aceitar uma situação humilhante para salvar as aparências.

O major Justo contou ao pesquisador brasileiro que Amélia teve uma reação virulenta ao receber Minervina, em 1929, no seu leito de morte:

– Sai daqui, coruja, que tu foste a desgraça da minha vida.

Não deve mesmo ter sido fácil para Amélia. Minervina sempre se manteve por perto, ao redor de José Francisco e da criança, que tratava para efeitos sociais como “afilhado”. Quando o advogado e político mudou-se para Montevidéu com a esposa, a jovem cunhada passou a residir mais tempo com eles, no país vizinho, do que em Jaguarão. Só voltou em definitivo à cidade natal depois que José Francisco morreu.

O historiador Eduardo preferiu escrever um livro de ficção, um romance

O QUE A ORNAMENTAÇÃO DA IGREJA DIZ SOBRE O FILHO CLANDESTINO?

Quando isso aconteceu, Minervina já tinha mandado construir a Igreja da Imaculada Conceição, concluída em 1912, após três anos de obras. Para obter licença para o empreendimento, viajou várias vezes ao Vaticano, onde privou com os papas Leão XIII (1878-1903) e Pio X (1903-1904). Foi o primeiro, em 1901, quando Minervina tinha 40 anos, que concedeu a permissão. A relação com os dois papas está documentada em correspondência coletada por Eduardo.

– Pense bem na situação de uma pessoa, frente a toda essa maledicência que havia, ser recebida por um papa. Era uma demonstração de grande poder. Sem nenhuma dúvida, Minervina estava tentando mostrar à comunidade de Jaguarão a força que tinha, a reputação que tinha. Imagine o custo de fazer uma Igreja dessas. A torre, do solo ao cume, tem 45 metros. É o ponto mais alto de Jaguarão. Não há dúvida de que isso não veio de graça, de que tem um significado – analisa o pesquisador.

O interior tem certa suntuosidade, principalmente por causa dos mármores importados. No nobre e dispendioso material, Minervina mandou esculpir dois retábulos, um em homenagem à mãe, outro ao pai. Mas talvez a peça mais impressionante seja o púlpito, dotado de uma escada recurva para alcançá-lo e de uma cobertura trabalhada, tudo em mármore.

Há ainda detalhes insólitos, que desafiam interpretações, como um conjunto de cisnes esculpidos no alto da torre – elemento estranho à arquitetura sacra. Eduardo desconfia de uma referência ao mito grego de Leda e o cisne, em que Zeus se metamorfoseia na ave para seduzir a rainha de Esparta. Dessa relação, Leda tem dois filhos, que são adotados por seu marido como se dele fossem. Seria, portanto, uma alusão à própria história de Minervina, Amélia e José Francisco Diana.

Mas o aspecto mais significativo, mais evocativo, do templo tem a ver com sua consagração a Nossa Senhora da Imaculada Conceição – a santa que celebra o dogma católico segundo o qual Maria concebeu Jesus sem mancha, sem pecado, cheia de graça divina. Seria uma referência a como Minervina via ou queria que vissem o filho clandestino concebido com Diana? Eduardo, o historiador, identifica na imagem da Virgem colocada sobre o altar uma gestante, algo que foge à tradição das representações da Imaculada Conceição.

– A lenda sempre foi que a imagem teria as dimensões corporais da Minervina, talvez como um gesto de vingança frente à sociedade de Jaguarão, que a criticou e repudiou. Eu me dei ao trabalho de subir ao altar por trás e de medi-la. Não sei se são as medidas da Minervina, mas tem medidas humanas. A altura e as dimensões correspondem às de um corpo humano. Não há nada desproporcional nela – diz.

Um forte indício de que isso incomodou a comunidade é um objeto que o historiador conserva em um cofre e que revelou pela primeira vez na conversa com Zero Hora. Trata-se de uma medalha, do tipo que, no passado, era comum cunhar em celebração às festas religiosas. Datada de 1913, ano seguinte à inauguração da igreja de Minervina, a medalha alude à festa da Imaculada Conceição daquele ano. Mas tem características perturbadoras. Em uma das faces, exibe uma mulher grávida, com um filho no colo. No verso, a inscrição: “Maculada Conceição”.

A Virgem na Igreja da Imaculada Conceição, em Jaguarão, teria as dimensões corporais de Minervina: gesto de vingança?

Não se sabe a origem dessa medalha e não existe documentação alguma sobre sua existência. Para Eduardo, ela foi cunhada como uma provocação:

– Penso que é uma insinuação sobre a Minervina. Não posso garantir, mas tudo leva a crer. A inscrição poderia parecer um erro, não fosse a imagem no anverso, de uma mulher com o filho no colo, que não é uma representação da Imaculada Conceição.

O livro que Eduardo vem escrevendo sobre o assunto já leva 220 páginas e deve ficar pronto no ano que vem. Pela primeira vez na carreira do pesquisador, não será um tratado histórico. Será um romance. De certa forma, atenderá a uma cobrança feita meio século atrás por uma figura que o influenciou profundamente, o escritor Erico Verissimo. Aos 19 anos, em uma visita a Porto Alegre, o então autor de sonetos deparou com o romancista de O Tempo e o Vento a andar pela Rua da Praia. Seguiu-o até o interior da Livraria do Globo, mas não teve coragem de abordá-lo.

Um tio de Eduardo veio a calhar: contatou Verissimo e conseguiu um encontro do escritor com o jovem poeta. Em 19 de setembro de 1963, segundo Eduardo, ele foi recebido para uma conversa de três horas na residência da Rua Felipe de Oliveira – experiência que define como a coisa mais marcante que fez na vida. Aquela visita prolongou-se depois em uma troca de cartas, nas quais vê-se o autor consagrado a incentivar o literato iniciante. Eduardo confessa que sempre alimentou essa ambição, mas só agora, passado mais de meio século, encontrou um tema à altura, Minervina. E acredita que apenas a ficção é capaz de dar conta desse enredo:

– Acho que esse livro não pode ser escrito como História, porque não se pode excluir uma certa dose de emoção. Vou fornecer os dados e reproduzir os documentos, pois nada impede a ficção de fazer isso. Na minha novela, não vou fazer acusações. Embora eu tenha suspeitas muito fortes, vou apresentar as três versões: a do Custódio, a do José Francisco Diana e a da Minervina.

O primeiro do trio, Custódio, nunca voltou a se casar. Com a morte do irmão, assumiu o cuidado das filhas que ele deixou, entre elas Serafina Correa (que hoje empresta o nome a um município gaúcho). Morreu em 1905, aos 50 e poucos anos. O comércio de Rio Grande fechou, em sinal de luto. Sua lápide define-o como “puritano” e assegura que “seu nome será sempre bendito, porque na família é glória, na comunidade é lema, na comunhão é símbolo da honra e do trabalho”.

A vida de José Francisco Diana chegou ao fim em 1916, no país vizinho. Morto o cunhado, Minervina mandou construir em Jaguarão, ao lado da sua igreja, a casa onde passou os últimos anos de vida. Usado por ela como capela particular, o templo só era aberto ao público duas vezes por ano: em 7 de fevereiro, aniversário da proprietária, e em 8 de dezembro, dia da Imaculada Conceição.

Minervina morreu em 1954, um dia antes de completar 93 anos. Seu corpo saiu da igreja que construíra, em cortejo até o cemitério da cidade.

Depois disso, o casarão virou casa paroquial, e a capela, paróquia católica e atração turística. Mas, um dia, Minervina voltou. Seus restos foram trasladados e hoje encontram-se no interior da igreja. Estão mais perto de uma inscrição meio oculta na lateral do altar, que ela mandou gravar no mármore:

 

Nossa Senhora da Conceição

Rogai por mim

 Minervina