Cactos, cactos, 
milhares de cactos
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Ingo Horst mantém em Imigrante, no Vale do Taquari, aquele que é considerado o maior cactário do Brasil. São suvenires de lugares para onde ninguém deseja ir

lvo de pele, de pelo, de olhos, um homem percorre o sertão da Paraíba em atitude suspeita. Sobe serras, adentra recônditos, demora o olhar em arbustos ardidos. Os nativos daquele cafundó espreitam o forasteiro e murmuram desconfianças. O sujeito aloirado e alto, de ar estrangeirado, garante estar à procura de cactos. Os roceiros duvidam, calculam que, se ele coleta plantas do semiárido, só pode ser com propósitos alucinógenos.

– O pessoal achava que era para outra coisa.

Achava que ele era um traficante – conta Maria Aparecida Orson, 43 anos.

Passadas mais de três décadas, Aparecida trocou a caatinga paraibana pelo sopé da serra gaúcha e hoje trabalha sob as ordens daquele homem misterioso que espreitou na infância. Ele se chama Ingo Horst, tem 58 anos, vive no município de Imigrante e, relaxem, não tem nada a ver com o mundo das drogas. O vício dele é outro. Ingo é o encanzinado proprietário do que costuma ser descrito como o maior cactário do Brasil, um conjunto de 10 mil metros quadrados de estufas, em pleno centro da cidade, onde se enfileiram centenas de milhares de plantas, de quase mil espécies diferentes e origens como os Estados Unidos, o México, o Peru, a Colômbia e a Bolívia.

Convertido em uma das principais e mais surpreendentes atrações turísticas da região, o Cactário Horst consiste em um inventário de formas, dimensões, texturas e cores onde se encontram plantas com mais de meio século de vida e exemplares que podem ultrapassar os quatro metros de altura. Dizer que se trata do resultado do trabalho de uma vida seria pouco, porque a bem da verdade Ingo é um continuador. Ele já cresceu entre os cactos. Herdou o interesse e parte da coleção do pai, Leopoldo Horst (1917-1988), um pioneiro que não apenas descobriu várias espécies novas, batizadas com o nome da família, como identificou algo muito mais raro: todo um novo gênero de cactos.

– Meu pai era filho de colonos, muito pobre, lascado. Nasceu ali em cima dos morros, no meio das capoeiras. Não estudou. Tinha talvez o primário. Mas era um cara diferenciado. Ele sabia ler muito bem em alemão, que aprendeu em casa antes do português. Foi eletricista, foi fotógrafo, chegou a montar turbinas para gerar energia com quedas d’água – diz Ingo.

Uma das particularidades de Leopoldo era, ainda muito jovem, aproveitar os finais de semana, quando descansava do trabalho na roça, para desbravar os paredões da região, às vezes dependurado em cordame. Descobriu dois ou três hábitats com espécies endêmicas de cactos, recolheu exemplares e passou a cultivá-los no jardim, um hobby encarado com perplexidade na colônia. Quem não estranhava era o pastor de uma Igreja Luterana do Vale do Taquari, vindo da Alemanha. Ele revelou a Leopoldo que, na Europa, havia inúmeros aficionados. Estimulado pelo pastor, Leopoldo remeteu  plantas nativas de Imigrante para o Velho Mundo, produzindo sensação no círculo dos colecionadores, que salivaram diante das espécies desconhecidas que vinham dos confins da América do Sul.

Por essa época, Leopoldo teve a primeira oportunidade de multiplicar sua coleção: foi encarregado de palmilhar o Estado para vender números de uma rifa que ajudaria na construção de um colégio em Estrela, cidade à qual Imigrante pertencia. Nas incursões pelo Interior, aproveitava para inspecionar as zonas pedregosas, promissoras. Foi encontrando, registrando e recolhendo uma respeitável variedade de cactos.

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Leopoldo Horst (1917-1988) em uma de suas expedições à procura de cactos

Às voltas com as encomendas do estrangeiro, pediu que ao menos lhe enviassem alguma bibliografia especializada, para nortear o trabalho de campo. Com ajuda dos cartapácios em alemão recebidos pelo correio, consolidou sua condição de perito autodidata. Quem consulta a Wikipédia encontra hoje um alentado verbete – escrito em alemão – dedicado a Leopoldo Horst, com foto dele no sertão, biografia detalhando suas expedições e uma lista de 11 espécies batizadas com seu nome.

O texto da enciclopédia colaborativa informa que foi em 1964, quando Ingo era uma criança de cinco anos e o pai já mantinha um cactário visitado por especialistas estrangeiros, que Leopoldo firmou contrato com o suíço Werner Uebelmann (1921-2014), um reputado colecionador e comerciante. O acordo tornava Uebelmann o revendedor na Europa de tudo o que o morador de Imigrante encontrasse.

Leopoldo começou a organizar expedições mais ambiciosas. A primeira delas foi realizada em um automóvel que Ingo descreve como uma baratinha 1948, de traseira alongada. Depois de um mês de viagem por Minas Gerais e Bahia, o calhambeque voltou abarrotado. Foi nessa ocasião, nas proximidades de Diamantina (MG), que Leopoldo descobriu o gênero novo de cactos – batizado como uebelmannia, em honra ao sócio suíço.

–  Os cactos são divididos em gêneros, espécies e subespécies. Descobrir uma espécie ou subespécie é importante, mas achar um gênero é coisa fenomenal – admira-se o filho.

As jornadas subsequentes já ocorreram em uma caminhonete Willys, financiada por Uebelmann e paga em cactos. Ingo, que começou a participar de turnês durante as férias escolares, conserva o carro até hoje. A grande aventura veio quando ele completou o Ensino Médio, aos 18 anos. O pai chamou-o para oferecer duas alternativas: entrar para a faculdade ou participar de uma jornada de mais de cem dias pelo Nordeste. “Vou contigo”, anunciou Ingo.

Pai e filho percorreram 26 mil quilômetros, vasculhando terrenos de Minas Gerais ao Ceará. Dormiam pelo caminho, aventuravam-se nos ermos, avançavam por zonas de acesso complicado – porque é da natureza dos cactos crescer em geografias estéreis, de aridez e pedregulhos, para onde ninguém deseja ir. Em cada local, coletavam cinco ou 10 exemplares de uma espécie e seguiam em frente. Para Ingo, foi uma experiência transformadora:

– Vi que podia estar na natureza, livre. Comecei a trabalhar com meu pai e nunca mais desisti disso aí.

o fascínio e os muitos usos dos cactos

Os cactos são parte de uma família botânica – cactacea – originária das Américas (uma única espécie é encontrada na África, acredita-se que devido a sementes carregadas no sistema digestivo de aves migratórias). Conta-se que Cristóvão Colombo ficou tão impressionado quando chegou ao continente, em 1492, que na viagem de volta à Europa levou os primeiros exemplares no navio, lançando as raízes de um notável interesse científico e de um colecionismo desenfreado.

Antes disso, os cactos já eram cultuados pelos indígenas. Os astecas deixaram uma infinidade de pinturas e esculturas que retratam a planta, usada então em rituais religiosos. O nome original da atual Cidade do México, Tenochtitlán, significaria, segundo algumas interpretações, algo como “Lugar dos Cactos Sagrados”. A espécie é tão central para a cultura nacional que a bandeira mexicana ostenta, no brasão, um exemplar.

O fascínio exercido pelas cactáceas tem muito a ver com sua capacidade ímpar de sobrevivência. Do norte da América do Norte ao sul da América do Sul, elas assumiram uma multiplicidade quase infinita de formas, adaptando-se a ambientes inóspitos, sejam eles quentes ou extremamente áridos. Têm enorme capacidade para estocar água, o que garante a resistência em locais como o deserto de Atacama, um dos mais secos da Terra. Um espécime adulto de Carnegiea gigantea, para dar um exemplo, consegue absorver até 760 litros de água durante um temporal. Os cactos podem ser compostos de até 90% de água. Outra adaptação importante são os espinhos, na realidade folhas altamente modificadas, que servem como proteção contra herbívoros e evitam perda de líquido.

Há cerca de 2 mil espécies na família, divididas em mais de cem gêneros. A menor mal alcança um centímetro (Blossfeldia liliputiana). A maior (Pachycereus pringlei) ultrapassa os 19 metros.

O principal uso é ornamental, pela beleza das formas, mas os cactos costumam ter aplicações ainda mais nobres. São cultivados como alimento e remédio, servem de material de construção e têm papel crucial na extração de um corante carmim que é usado em bebidas e cosméticos. Certas variedades, como o peyote (de crescimento extremamente lento, sai por volta de R$ 300 no cactário de Imigrante), contêm mescalina, um alucinógeno utilizado por povos indígenas.

A formação de Ingo nesse rico universo da botânica deslanchou durante as inúmeras viagens com o pai pelo Brasil e por países vizinhos. Nessa altura, Leopoldo já tinha reconhecimento internacional. No começo dos anos 1970, passou três meses ministrando conferências na Europa. O feito era tão espantoso que, ao voltar, foi recepcionado em Estrela por uma caravana de automóveis. Os colonos queriam saber de Leopoldo como era, afinal, a tal Alemanha de seus antepassados.

De viagem em viagem, fazendo enxertos e plantios na estufa e mais tarde servindo de guia para colecionadores holandeses, ingleses e alemães em excursões que organizava pelos hábitats do Brasil, da Argentina e da Bolívia, Ingo aprendeu tudo sobre o ofício. Na cabeça, ele desenvolveu uma espécie de mapa do continente que indica onde está cada uma das centenas de variedades que ele e o pai numeraram. Nas suas estufas, examina qualquer das espécies que cultiva e declama na hora, sem titubear, o nome científico, em latim. Confrontado com um cacto desconhecido, pode acertar, só pelas características exteriores, de que parte do mundo ele veio e a que gênero pertence. Aprendeu tudo isso na prática.

– Não existe curso sobre isso e, se existisse esse curso, eu que teria de dar – assegura ele.

Uma diferença fundamental ente Leopoldo e Ingo é que, no tempo do pai, a atividade familiar consistia basicamente em coletar espécimes na natureza e exportá-los para satisfazer colecionadores. Para o filho, essa prática tornou-se impossível, devido à Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (CITES), que impôs barreiras à comercialização. Coube a Ingo investir no cultivo das plantas, a partir de sementes, para continuar no ramo.

Foi na busca da semente de um raro cacto amarelo e comprido, no interior da Paraíba, que ele acabou confundido com um traficante de substâncias ilícitas. Já fazia muito tempo que ele e o pai visitavam a zona, mas nunca acertavam a época das sementes. Um dia, um dos irmãos de Maria Aparecida Orson, a menina que espreitava o forasteiro branquela, venceu a desconfiança e se ofereceu:

– Pode deixar. Quando tiver a sementinha, eu guardo pra ti – disse a Ingo.

Aquela era uma gente muito humilde, que vivia em uma casa sem eletricidade, e Ingo acabou por trazer os irmãos para trabalhar com ele em Imigrante. Vários já retornaram e hoje têm seu próprio cultivo de cactos na Paraíba. Aparecida ficou, uma rara nordestina na comunidade de origem germânica. Trabalha o dia inteiro cultivando e manipulando cactos e suculentas, outra família de plantas produzida no estabelecimento.

– Lá onde eu vivia, existem cactos na natureza, mas são cinco ou seis espécies. Trabalhar no cactário é uma coisa bem diferente. Eu gosto bastante. Se não gostasse, não tinha como ficar, porque com cactos precisa ter um certo cuidado – diz a funcionária.

paixão de colecionador aliada a visão comercial

Quando Leopoldo morreu, quase 30 anos atrás, o Cactário Horst consistia em uma acanhada estufa de madeira, de mil metros quadrados, junto à casa da família. Ingo transformou o empreendimento em um negócio de vulto, que ocupa área mais de 10 vezes maior e continua em expansão. Trata-se de uma verdadeira fábrica de cactos. Cerca de 15 funcionários trabalham sem parar nas diferentes etapas de produção, desde o plantio até a expedição.

A antiga estufa de madeira, reformada por Ingo, é reservada para a semeadura. Na área moderna, que se estende a perder de vista, há cactos em diferentes estágios de desenvolvimento. Um setor é para o preparo do substrato em que a planta encontra condições para sobreviver. Outro, de repique de sementes, funciona como uma espécie de berçário. Há uma área reservada a cactos bojudos e imponentes, que não estão à venda. São plantas de 30, 40, 50 anos, muitas delas da coleção de Leopoldo, usadas como matrizes. Todo ano, elas florescem, são fecundadas e geram fruto, que depois de maduro dá origem às sementes que serão plantadas em bandejas e permitirão a fabricação de uma nova fornada.

As mudas são depois acomodadas em extensas e infindáveis mesas, com irrigação individual, ligada uma vez por semana no verão e frequência consideravelmente menor no inverno. Beija-flores voejam pelo ambiente, estacionando no ar e espetando as folhagens com seus bicos. Ingo diz:

– Meu pai era de outra geração. Se ele tinha para viver, já estava bom. Eu tenho uma visão mais comercial. Fui fazendo mil metros quadrados aqui, notando que tinha venda, fazendo mais mil metros... Foi um crescimento gradual. Lamentavelmente, meu pai não viu no que isto se transformou.

O cactário é aberto ao público e costuma impressionar os visitantes, pela vastidão, variedade e beleza. Ninguém sai sem uma recordação. Os cactos mais baratos, mudas com pelo menos dois anos de cultivo, custam a partir de R$ 5,50. Outros, dependendo da idade, da raridade e da dificuldade de produção, podem sair por R$ 650.

Entre os espécimes cultivados e vendidos, há um de significado especial para Ingo. Duas décadas atrás, no topo de uma serra longínqua, no norte da Bahia, ele deparou com uns lajedos de aspecto peculiar. Ali, crescendo em cima de rocha seca e lisa, viu um cacto pequeno e estranho. Percebeu imediatamente que era uma variedade nova, desconhecida da ciência. Ela foi batizada como Discocactus zehntneri v. horstiorum, em homenagem ao seu descobridor:

– Encontrar uma espécie é uma alegria, uma coisa muito prazerosa. Qualquer colecionador ia gostar.

Não são apenas espécies raras de cacto que ele descobriu no Nordeste e trouxe para cultivar em Imigrante. Também veio de lá Danyela Torres, 36 anos, que Ingo conheceu em Serra Talhada (PE) durante uma das expedições. Engatou namoro, casou e trouxe-a para o Sul. Foi depois da chegada dela que o negócio explodiu.

– Quando cheguei aqui, era mais um hobby. O Ingo tinha uma estufa, mas 90% ele não queria vender. Ele ficou fazendo essa parte da produção, de que gosta mais, enquanto eu me dediquei a compra, venda, contratação, demissão, aumentar e administrar o dia a dia – relata a pernambucana.

Prática e bem-humorada, Danyela não faz rodeios para dizer que, nas quase duas décadas em Imigrante, aprendeu muito mais sobre negócios do que sobre cactos. Quando é questionada sobre o que, afinal, aprendeu a respeito das plantas que são a paixão do marido, oferece uma resposta desconcertante:

– As que vendem mais. O nosso carro-chefe é o popular assento de sogra, aquelas bolas grandes e amarelas.

Se foi o mercado europeu que alavancou o empreendimento, hoje Ingo está voltado apenas para o mercado nacional. Por causa do custo do frete, não há como competir com os superprofissionalizados cactários da Europa, que inundam os supermercados com plantas sazonais. E essa também não é a praia do homem de Imigrante. Porque ele não é só um produtor, é também um colecionador. Não se restringe a cultivar aquelas 300 espécies com maior saída, o chamado kit básico. Se esmera nas raridades, nas plantas de cultivo complicado.

Em ala nobre do cactário, mantém a sua coleção, uma espécie de bosque de cactos cultivados há décadas, em meio dos quais é fácil ficar boquiaberto. É um recanto que põe em xeque o que um leigo imaginaria sobre o que são cactos. Dali, Ingo não vende nada, não importa a proposta.

– Os cactários da Europa são diferentes do meu. Porque eu sou colecionador. Para eles, cresceu bem, vendeu, beleza. São cactários enormes, quatro, cinco vezes maiores, tudo automatizado, climatizado. Mas para eles não importa se é raro. Eles não têm a variedade que a gente tem. E esse é o meu diferencial. Eu gosto dos cactos. É um mundo de plantas que quem não conhece não faz ideia. Tem de tudo que é forma, de tudo que é cor, com tudo que é espinho.

Um exemplar  de Echinocactus grusonii, a cadeira-de-sogra, com vários anos de vida chega a custar R$ 650

TEXTO

Itamar Melo

itamar.melo@zerohora.com.br

IMAGENS

Carlos Macedo

carlos.macedo@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Ticiano Osório

ticiano.osorio@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

 

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

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