O mundo de Lorena
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A história da youtuber de Gravataí que encontrou na internet uma forma de se expressar – e ajudar no tratamento de um grave problema de saúde

Em uma casa de alvenaria de uma rua de Gravataí, na Grande Porto Alegre, há um quartinho estreito, de cinco metros quadrados, com paredes de tijolo à vista pintadas de branco. Um mapa-múndi está afixado sobre a cama, que ocupa quase metade do aposento. A decoração inclui um fio repleto de lâmpadas piscantes e um painel de cortiça com uma infinidade de papéis e anotações presos por alfinetes. Uma folha de ofício rabiscada com capricho indica, por meio de um sistema de cores, as matérias difíceis (Química, Matemática e Literatura), as de dificuldade média (Biologia, História, Português e Redação) e as fáceis (Inglês, Geografia, Sociedade e Artes). Outra folha, também afixada à parede e devidamente colorida, recapitula as seis Regras de uma Vestibulanda:

 

Ler livros

Interpretar textos

Assistir questões comentadas

Simulados/Provas anteriores

Mapa mental/Resumos

Escrever redação

 

Esse é o quarto singelo, despido de requintes, de uma adolescente sem muitas posses, perdido em uma rua qualquer da América do Sul.

Ao mesmo tempo, é um quarto com o qual dezenas de milhares de visitantes de todo o Brasil e de outras partes do mundo estão perfeitamente familiarizados.

Quando não se encontra no hospital, é ali que Lorena Eltz, 17 anos, a proprietária do espaço, grava a maior parte dos seus vídeos, que chegam a passar das 400 mil visualizações.

O canal que ela mantém no YouTube soma pouco mais de 77 mil inscritos.

– Hey Lorelys de todo esse mundo! – repete ela há dois anos, diante da câmera, enunciando o bordão com que abre cada uma de suas produções.

Nascida em 29 de abril de 2000, Lorena é o retrato fiel de uma geração que cresceu em uma era pós-internet e que se acostumou desde o berço a navegar com desenvoltura pelas redes sociais. Apesar da condição humilde e do entorno sem glamour, ela descobriu na web o espaço ideal para se expressar, transcender a realidade imediata, ganhar popularidade e superar problemas pessoais sérios. Não é, pelo menos por enquanto, um Whindersson Nunes, um Felipe Neto ou uma Kéfera Buchmann – para citar alguns dos youtubers mais influentes do país –, mas, desde seu quartinho, a adolescente escreve, produz, grava e edita vídeos que rendem alguns reais pagos pelo YouTube, fazem marcas seduzidas por sua popularidade presentearem-na com produtos como cosméticos e doces importados e levam os fãs a reagirem com comentários entusiasmados: “MARAVILHOSA”, “Te amoooooooo Lorena linda”, “ME DÁ TEU CABELO? EU NUNCA TE PEDI ND”, “Quando é que vens visitar Portugal???”, “Pode me mandar um beijo no próximo vídeo linda?”, “Quando vai ter encontros de fãs?”, “Linda! Amo demais”.

Não há fogos de artifício, efeitos especiais ou roteiros mirabolantes. Exceto por um ou outro recurso de edição, as postagens consistem em Lorena diante da câmera, falando ou fazendo alguma coisa qualquer, como maquiar-se ou experimentar guloseimas enviadas por um fabricante do Japão. Muitas vezes, limita-se a responder perguntas dos fãs. Seu vídeo mais popular foi postado há pouco mais de seis meses, tem cinco minutos e mostra como é a rotina dela pela manhã, quando se arruma para ir à escola. Tem 442 mil visualizações e comentários do tipo “Cara, a voz dela é muito fofa”.

Durante a semana, Lorena vai anotando as ideias no celular ou em um caderno, imagina as cenas e pesquisa sobre o conteúdo no Google. Depois de gravar, dedica umas quatro horas à edição, no seu notebook, um processo que aprendeu a fazer sondando a web.

– Os vídeos de maior repercussão são aqueles em que estou conversando com as pessoas, sobre qualquer coisa. Eu sento e converso, respondo a perguntas. Elas gostam, principalmente de vídeo mais pessoal. A parte mais difícil é criar uma coisa diferente, que ainda não exista no YouTube. Tem muita gente na internet que não se mostra ela mesma, sabe? E eu tento ser o mais natural possível nos vídeos, passar a verdade ali, e acho que isso é o diferencial – avalia a adolescente.

Há também as postagens gravadas em quartos de hospital, durante os longos períodos de internação para cirurgias e tratamentos agressivos. Lorena convive com uma condição de saúde delicada desde bebê, o que levou os pais a mudarem-se de Imbé para Gravataí quando ela contava um ano e meio, para que estivesse mais perto dos serviços médicos. Com cinco anos, vivia de emergência em emergência, com vômitos, diarreia, febre, sangramentos. Ninguém conseguia ajudá-la.

– Como os sintomas eram de virose, achavam que ela tinha comido algo que não fez bem. Mas era sempre, não parava. A gente imaginava mil coisas, vivia desesperada. Tentávamos várias dietas. Alguém falava: “Não dá casca da maçã”. E nós cortávamos a casca de maçã. Outro dizia: “Só dá água fervida”. Até os médicos pediam para não comer ovo, não comer carne, para ver se era disso. E assim foi indo – relata a mãe, Patrícia Carvalho, 36 anos.

Só em 2007 Lorena conseguiu um diagnóstico. A conclusão foi que ela era vítima da Doença de Crohn, enfermidade na qual o sistema imunológico ataca o aparelho digestivo, provocando inflamações, principalmente no intestino. É uma doença pouco frequente, e ainda menos em crianças.

Algum tempo depois, o Hospital da Unifesp, em São Paulo, começou a utilizar uma medicação recém-aprovada para pacientes infantis. Lorena foi encaminhada para lá. Faz sete anos que viaja com regularidade para a capital paulista. Em geral, passa 10 dias por mês na cidade por causa do acompanhamento médico. Para viabilizar essa rotina, os pais alugam com outras famílias de crianças doentes uma casa na favela de Heliópolis, a uma hora e meia de ônibus do hospital.

Descobertas

“A minha geração se apaixona pela alma, pela essência, sem se preocupar com o gênero”,
diz Lorena

Efeitos da medicação

O tratamento com drogas e injeções iniciado em São Paulo ajudou, mas não resolveu. O intestino grosso seguiu inflamado, machucado, com muito sangramento. Vieram as cirurgias, e o órgão foi removido. Nessa fase, Lorena era uma garota com dificuldade para comer, muito tímida, que mal comparecia à escola e que combatia as inflamações com um forte corticoide que a deixava com a aparência inchada – até hoje ela depende da medicação. Os remédios também prejudicavam seu desenvolvimento. Apesar de adolescente no calendário, parecia uma criança. Atualmente, às vésperas da idade adulta, mede apenas 1m40cm.

Diante desse cenário sombrio e doloroso, Lorena vivia períodos de acentuado desânimo. Foi então que os pais começaram a insistir para que fizesse vídeos e os postasse na internet. Sabiam que a filha acompanhava com fascinação o universo dos youtubers e gostava de filmar com o celular. Mas ela resistia à ideia. Tinha medo de passar vergonha.

– Filha, faz um vídeo, tu sabes tanto, tu treinas tanto. Quem sabe agora, que estás de férias? Teus colegas não vão ver. E, se eles virem, tu não vais ter contato com eles – incentivava Patrícia.

Em fevereiro de 2015, Lorena tomou coragem. Criou um canal no YouTube, fez vários filmes até ficar satisfeita com um deles e transformou-o na sua primeira postagem. Sentada na cama, com a parede de tijolos brancos ao fundo, exibiu-se com o rosto rechonchudo, inchado pelos medicamentos, aparentando ter muito menos do que os 15 anos que estava prestes a completar.

– Tudo bem? Hello? Oi? Tudo bem? Provavelmente você não me conhece. Na verdade, é claro que você não me conhece. Este é meu primeiro vídeo no meu canal. Vou deixar de ser anônima. Decidi criar um canal para mim mesma. Vou falar sobre música, maquiagem, moda, tudo de que gosto.

Com o mote “Me conhecendo melhor”, essa publicação inaugural estende-se por sete minutos e meio, durante os quais Lorena conta quem é, do que gosta, o que já fez e que planos tem. Não inclui nenhuma menção a problemas de saúde. Ela encerra com um pedido:

– Continuem acessando meu canal. Vou prometer que vou tentar postar bastante vídeos, porque quero que dê supercerto isso para mim, porque vai me ajudar muito na minha vida. Vai mudar totalmente a minha vida.

Mudou mesmo. O primeiro vídeo, que já teve 30 mil visualizações e 360 comentários, animou Lorena e estimulou-a a gravar outros, muitos outros, em ritmo acelerado – atualmente são dois por semana. Virou uma celebridade na escola, angariou fãs, fermentou a confiança e a autoestima, alegrou-se, transformou-se.

– A gente achava que os vídeos seriam uma forma de ela se expressar, de ter outro foco. E deu certo. Começou a levar a sério, como um trabalho, porque tinha retorno das pessoas que queriam conversar, desabafar. Os vídeos fizeram ela perceber que tem importância. Afastou do pensamento a coisa da incapacidade, do medo de não conseguir fazer nada na vida – comemora a mãe.

Lorena concorda:

– Antes eu era outra pessoa. Era muito tímida, não conversava com ninguém, não tinha tantos amigos. Isso mudou.

Na condição de youtuber, a adolescente achava que ninguém precisava saber sobre seus problemas de saúde. O canal significava para ela uma espécie de refúgio da doença, um espaço para compartilhar as coisas de que gostava e que sabia fazer. Mas, com o passar do tempo, teve de rever esse princípio, até porque enfrentava períodos prolongados de internação e lamentava interromper as postagens. Além do mais, quando isso acontecia, seus seguidores estranhavam o sumiço e pediam explicações.

– Daí eu tive de falar. E, depois que falei, foi bem melhor. Eu me senti mais à vontade. As pessoas começaram a me entender mais, e recebi muitas mensagens de apoio – conta ela.

No ano passado, Lorena enfrentou um período de seis meses de internação no interior de São Paulo e dedicou-se à produção dos filmes dentro do próprio hospital, incentivada pelos médicos. À época, estava na iminência de operar também o intestino delgado, o que queria evitar a todo custo. Na sua experiência de paciente, cirurgias significavam pontos inflamados, que não fechavam nunca. Surgiu então uma alternativa: viajar a São José do Rio Preto (SP) e submeter-se a uma técnica que vinha sendo testada com bons resultados, o autotransplante de medula.

O procedimento incluía o uso agressivo de quimioterápicos, para zerar as defesas imunológicas, e os médicos deixaram claro que o risco era considerável. Patrícia assinou uma pilha de termos de responsabilidade. E, de fato, a vida de Lorena esteve por um fio.

– Ela sofreu uma reação gravíssima na quimioterapia. Foi a quarta vez que quase morreu. Teve também dois infartos por causa da medicação – conta Patrícia.

O semestre em São José do Rio Preto foi documentado em uma série de vídeos, um deles mostrando o momento em que Patrícia raspa completamente o cabelo de Lorena, que já vinha caindo por causa da quimio.  A adolescente não chora. Ela sorri enquanto a máquina vai removendo tufos da sua cabeça.

– Eu estava tranquila, bem preparada. Sabia que aquilo era necessário. Ficar sem cabelo foi muito bom. Percebi que não fazia diferença tu estares ali com o cabelo superbonito ou sem cabelo. Não fez nenhuma diferença. Depende de ti aceitar aquilo como uma coisa boa ou uma coisa ruim – diz.

Quem reproduz todos os vídeos em ordem cronológica testemunha uma personagem em rápida e constante metamorfose. A Lorena de 2015 era uma garotinha rechonchuda, de traços infantis e longos cabelos castanhos. Com o passar do tempo, ganhou ares mais adolescentes, afinou as bochechas, esmerou-se no vestuário e na maquiagem. O cabelo ficou bem curto e atravessou cores variadas: amarelo, azul, rosa, ruivo, roxo.

– Como eu passava muito tempo no hospital, tinha de achar alguma coisa para me distrair, então aprendi na internet a me maquiar e a pintar o cabelo. Gosto de ser do jeito que eu quiser. Se  gosto de rosa, por que não pintar o meu cabelo de rosa? E eu coloco glitter no rosto, porque acho bonito, e fica brilhando. A aparência pode mudar tudo.

A cara dela

O pequeno quarto de onde a garota ganhou o mundo tem lâmpadas coloridas e um mural com inscrições diversas – em português e em inglês

13 metas de Lorena

A passagem do tempo também sedimentou planos, opiniões e posicionamentos. Apesar de ainda não ter namorado, a adolescente passou a definir-se como sem gênero, uma orientação que considera muito arraigada entre os da sua geração. Nos vídeos, pode declarar-se igualmente encantada por meninos ou por meninas.

– A minha geração está se apaixonando mais pela pessoa, está preocupada em achar alguém que ame de verdade, que esteja ao lado de verdade, sem se preocupar com gênero, sem olhar o sexo. A gente se apaixona pela alma, pela essência. Para mim, o gênero não interessa. Então eu não sei se, quando for namorar e casar, realmente não sei se vou me apaixonar por um homem ou por uma mulher. Vejo isso nos meus amigos também. Não é todo mundo, mas é a maioria. E quem não fala que é sem gênero respeita essa visão. Antes, as coisas eram muito rígidas. Tinha de ser tudo certinho, as pessoas ficavam preocupadas com a imagem que podiam passar para os outros, com o que os vizinhos iam pensar. Na minha geração, tem menos preconceito, as pessoas conseguem ser elas mesmas, se expressar do jeito que quiserem, mostrar novas coisas que podem ser certas também e, consequentemente, ser mais felizes.

Enquanto Lorena explana essa visão, a mãe a observa sem qualquer sobressalto. Patrícia é apenas 19 anos mais velha do que a filha e acredita que teria sofrido muito preconceito se, na sua adolescência não muito distante, tivesse externado os mesmos pontos de vista. Mas apoia o que entende como uma liberdade de expressão e uma facilidade de romper padrões tradicionais típica dos jovens de hoje.

– Eu vejo “de boas”. De certa forma, sempre pensei assim como a Lorena, mas não sabia que era assim que eu pensava – comenta.

Após o transplante do ano passado, Lorena apresentou melhora como nunca havia experimentado antes. Conseguiu deixar medicações de lado e não precisou mais se internar. Passados cinco ou seis meses, contudo, os sintomas voltaram. A suspeita agora é que o mal dela não seja Crohn, mas outra doença ainda mais rara, relacionada à deficiência de uma enzima. A confirmação depende de exames que teriam de ser feitos na Alemanha. O tratamento, nesse caso, talvez seja um novo transplante.

Enquanto lida com essas dúvidas e dificuldades, Lorena estuda para o Enem (pretende cursar Gastronomia), continua a alimentar os fãs com novos vídeos e não desanima do futuro. Na parede do quarto de onde ganhou o mundo, ela mantém uma folha de ofício enfeitada com ramos e corações, na qual escreveu 13 verbos, sob o título “Metas”:

 

Estudar

Sorrir

Amar

Acreditar

Sonhar

Viajar

Ganhar

Doar

Aprender

Receber

Batalhar

Lutar

Rezar

TEXTO

Itamar Melo

itamar.melo@zerohora.com.br

IMAGENS

Mateus Bruxel

mateus.bruxel@diariogaucho.com.br

EDIÇÃO

Daniel Feix

daniel.feix@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

 

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

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