A oficina da arte
{

Nome de cineasta, paixão pela música. Em Giruá, na região das Missões, Chico Polanski transformou o espaço de trabalho do pai, chapeador morto em 2011, em um palácio de adoração aos instrumentos musicais. É lá que o luthier vive e trabalha, consertando todos os tipos de guitarras, baixos e violões

A reportagem de ZH chega à oficina de paredes caiadas, alguns tijolos à vista e piso irregular. Estamos na região das Missões, em Giruá, município de 17 mil habitantes onde os índios chegaram em meados do século 19 para estender as reduções jesuíticas e deixaram árvores e mais árvores de butiá – fruta que, no dialeto indígena, é J’erivá, ou, conforme a pronúncia dos colonos europeus que fundaram a cidade, simplesmente Giruá.

Da oficina, ouve-se o som de um blues, que é interrompido quando chegam os visitantes. Quem nos recebe veste jeans, blazer e botas de camurça. Tem cabelos nos ombros repartidos ao meio, mecha loira na parte de cima destoando do castanho original e as suíças longas, com os óculos de aros redondos. Parece Geddy Lee, da banda canadense Rush, não fosse estar empunhando uma guitarra em vez de um baixo. É Francisco Polanczyk, 38 anos, que adotou até nas redes sociais a grafia artística Polanski, de tanto que lhe perguntavam sobre um eventual parentesco – que não existe – com o diretor de filmes como O Bebê de Rosemary e O Pianista.

O galpão de 10 metros por 30 parece mesmo um cenário cinematográfico. Os óculos, seu dono explica, prestam tributo a outro grande nome das artes, John Lennon. Chico Polanski, já com o diagnóstico de hipermetropia, ficou dois anos sem usar óculos, procurando pacientemente aquela armação estilo Lennon. Mais do que útil, o adereço que aperfeiçoa sua visão é um símbolo da personalidade e, de certa forma, da própria atividade que decidiu seguir: a de luthier, o profissional que trabalha com a construção e a manutenção de instrumentos musicais.

O pai de Chico era chapeador. Trabalhava com carros. Não é figura de linguagem dizer que deu ao filho as ferramentas para que ele fizesse seu voo solo – um solo de guitarra. Por mais viajandona que pareça essa frase, ela é literal. O pai, Dionísio, o mesmo nome do Deus do vinho e das festas, compreendia o filho, mas não tanto. Era um homem afetuoso, que no entanto tinha dificuldade de dividir o trabalho e se caracterizava pela exigência e pela cobrança. A herança que deixou chegou a Chico de maneira direta e também transversa.

– O jeito do meu pai trabalhar, com a dificuldade que ele tinha de dividir o que fazia, me forçou a buscar meu rumo. Eu o entendo, sou assim também. O jeito centralizador dele acabou me ajudando, hoje sei disso. Aprendi muito com ele, mas segui minha própria vocação – conta Chico.

O pai de Chico morreu em 5 de setembro de 2011, vitimado por um derrame. Tinha 68 anos, boa parte deles aspirando o ar de tintas tóxicas – que levaram Chico, hoje, a usar máscara. O ambiente que antes recebia carros agora é mais lúdico. Em meio ao aroma de madeira misturado ao do vinho tinto que Chico costuma bebericar, há uma grande história de vida, afeto e transição geracional:

– Engraçado: ele era destro, eu sou canhoto. Talvez nós sempre tenhamos nos completado. O último trabalho dele foi a restauração de um Ford 29. Era arte. A exigência dele com o trabalho era tão intensa que, diversas vezes, ele refez todo um trabalho porque havia um detalhe de que não gostou.

O perfeccionismo e a dedicação artística de Chico são tão grandes que ele pede aos clientes que toquem um pouco antes de decidir como arrumar o instrumento. E o trabalho todo é feito de acordo com as idiossincrasias artísticas daquele que vai usar a guitarra, o violão ou o baixo.

O espaço de trabalho visto de fora: simplicidade do galpão contrasta com a riqueza do que o luthier produz

– O importante é que o cliente saia feliz – define.

São lições que o pai deixou. Ele enumera: o caráter, o capricho e a busca da perfeição:

– Meu pai me ensinou isto também: não adianta pôr o trabalho em anúncios na televisão e no rádio se este é ruim. Quem faz a verdadeira propaganda é o cliente. E isso ocorre nos festivais de música, por exemplo. Assim, meu trabalho se torna conhecido, na divulgação boca a boca.

A transição geracional não foi simples.

Dionísio insistia para que Chico fosse chapeador. O trabalho paralelo do filho começou nos fundos do galpão, ao lado de onde ele vive hoje com a mãe. O pai não entendia muito bem o que se passava na cabeça fervilhante do guri.

Hoje, Dionísio se orgulharia do filho – os amigos de Chico acreditam nisso. Martin Konrat, 34 anos, que é médico e integrante de uma banda com a qual se diverte tocando muito afinadamente do blues ao rock mais tradicional, comenta:

– Chico é sobretudo uma pessoa autêntica.

É um gênio, na verdade. Vive da música, o que é algo raro. Enquanto nós levamos isso como um hobby, ele respira a música, fabricando instrumentos, consertando e tocando.

Os números confirmam o que os amigos percebem. Chico vive bem da música. Não é só Giruá e região que lhe dão clientes. Vem gente até de Santa Catarina e do Paraná para consertar instrumentos. Faz cerca de sete anos que Chico não fabrica guitarras, baixos e violões. Por questões pragmáticas, ele se dedica apenas aos consertos. Pequenos e rápidos reparos custam, em média, R$ 100. Regulagem, R$ 230. Pinturas, R$ 350.

– A gente vê, às vezes, três pessoas por dia na oficina – diz Konrat.

A reportagem pergunta:

– Ok sobre os consertos com “s”, Chico. Mas e os concertos com “c”?

– Ah, os concertos com “c” a gente faz por diversão. Os com “s” são o sustento.

Madeiras diferenciadas
e osso do quadril do boi

 

A história de luthier de Chico, nascido em 2 de junho de 1979, “10 anos depois do Woodstock”, ele sublinha, começou quando estava atirado numa poltrona vendo o filme Crossroads: Amigas para Sempre na TV, em 2002. Na trama, o estudante de guitarra interpretado por Ralph Macchio excursiona pelo sul dos EUA com um veterano músico do blues em busca de canção perdida escrita por Robert Johnson, pioneiro no gênero.

Ao lado de Chico, assistindo à TV, estava o amigo Guilherme Baisch, hoje um cervejeiro artesanal de 33 anos que toca guitarra com o luthier.

– Vou fazer uma guitarra – comentou laconicamente Chico.

Guilherme riu, achando que era brincadeira:

– Tá bom, tá bom.

Passaram-se algumas semanas, e Chico apareceu com uma guitarra amarela reluzente – que hoje é guardada como relíquia pelo amigo.

– Ele falou que pintaria e deixaria perfeita a “guitarrinha barata” que eu tinha – recorda Guilherme. – Duvidei, titubeei, mas deixei com ele. E ela voltou novinha!

De lá para cá, os amigos só se orgulham do que é feito no antigo galpão de chapeação automotiva. Martin, que estudou Medicina na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), apresentou os instrumentos a conhecidos músicos. E os surpreendeu.

– Todos se espantam. Dizem: “Parece que é importado”. O trabalho do Chico é de muita qualidade – afirma Martin.

Chico se orgulha especialmente da guitarra que fez inspirada no instrumento que John Lennon usou no momento antológico em que ele e os demais integrantes dos Beatles foram ao terraço da Apple Records e tocaram Get Back.

No início, ele pescava informações nas revistas Guitar Player e Cover Guitarra. Ambas as publicações traziam seções de duas páginas, com ilustrações, dando breves dicas sobre manutenção de instrumentos.

– Fiz minha primeira guitarra sem as ferramentas adequadas. Foi com um formão e serra tico-tico – lembra o luthier.

Quando ainda fabricava as guitarras, o processo sempre foi artesanal. Chico se orgulha disso.

– Com a internet, as informações chegam mais facilmente. Mas acho que foi bom eu ter aprendido tudo “na pedreira”. Com mais acesso à informação, depois aperfeiçoei algumas coisas e corrigi outras. A verdade é que a pessoa aprende um ofício ao fazer o trabalho repetidas vezes – diz, falando e bebericando calmamente o vinho que está na mesa de madeira da oficina desde a noite anterior, quando ele adentrou a madrugada trabalhando.

Hoje, impressiona o cuidado que Chico tem com seus instrumentos e, sobretudo, com os alheios.

Ao consertar cada guitarra, ele escolhe um tipo de madeira para cada parte do instrumento. O braço é feito com mogno ou marfim. O corpo é de cedro. Na pestana, nada de plástico: ele usa osso do quadril do boi, que compra em um açougue junto à carne dos assados que faz para a turma em churrasqueira e fogo à lenha.

O luthier de Giruá se diz basicamente um vintage. Em sua casa, há de tudo. Seu lema é “tudo se transforma”. Entre diversos objetos transformados por ele no ambiente decorado com capas de vinis e fotos de artistas como Robert Johnson, Jim Morrison, Carlitos e AC/DC, está uma geladeira que virou defumador de alimentos.

– Reaproveitar as coisas é muito massa.

As pessoas jogam fora objetos que podem ser reutilizados. Até as minhas roupas eu compro em brechó – afirma, acrescentando que com frequência faz visitas a um ferro-velho. O gosto musical segue a mesma lógica:

– Comecei a escutar música quando estávamos na transição do vinil para o CD. Prefiro ouvir vinis.

Questionado sobre onde tudo começou, Chico dá o sorriso típico das boas lembranças. Comenta que foi o show do Aerosmith no Hollywood Rock de 1994 que despertou seu amor pela música. Não que seja a sua banda preferida. Foi a atmosfera do show, transmitido ao vivo pela televisão, com muito rock e blues e as participações do Sepultura e do vocalista Robert Plant, do Led Zeppelin.

Depois do show inspirador, o hoje luthier poliu dois carros para o pai e, com o dinheiro que recebeu, comprou um contrabaixo. O instrumento, segundo ele, custou 40 URVs – a Unidade Real de Valor, que antecedeu o Real.

A partir de então, Chico fazia de tudo para acompanhar os shows exibidos na TV. Certa vez, gravou em uma fita cassete a performance dos Rolling Stones exibida pela Globo. Não com o áudio do aparelho de televisão: para obter um som mais límpido, sintonizou a emissora em um dial do rádio FM, que foi captado junto às imagens.

– Ouço música sempre, a todo instante. Vivo a música, seja tocando ou cozinhando – ele conta.

Mas as reminiscências vão ainda mais longe.

– Na verdade, acho que tudo começou com a minha vontade de trabalhar a madeira. Essa vontade vem da infância – recorda. – Houve um desfile de 7 de Setembro, aqui em Giruá, em que fui fantasiado de marceneiro, porque quis ir assim. Guardo ainda, neste galpão, as ferramentinhas de brinquedo que usei naquela fantasia – emociona-se, apontando os brinquedos.

E confessa, com uma imagem que lembra Marcel Proust tomando seu chá com madeleine:

– O cheiro de madeira me traz recordações maravilhosas.

o elogio da cidade pequena

 

O olhar de Chico fica perdido por alguns instantes. Até que ele é questionado: alguém com esse talento não teria um futuro mais inspirador trocando os 17 mil habitantes de Giruá pelos 3 milhões da Região Metropolitana da Capital?

– Nada disso – responde o luthier. – Em Porto Alegre, eu teria de viver numa tribo. Estou muito bem como estou. Vivo aqui, do meu jeito. Sou feliz e não atrapalho ninguém. E não rolaria um bom custo-benefício. Na cidade grande, a pessoa vive tensa, e isso certamente prejudica quem vive da criação. Vivo da minha arte, com o coração, e é isso que me traz felicidade.

Chico é um sujeito bem resolvido. Comenta que a mãe pode até não entendê-lo. Mas encara a situação com tranquilidade. Um exemplo de sua calma: acomodado numa prateleira à esquerda de quem entra no seu inspirador galpão, está o braço longo de um contrabaixo acústico. A forma já está ali, na madeira crua, mas ainda falta todo o acabamento. Faz sete anos que o objeto está à espera de que ele termine o que começou.

– Ah, qualquer hora me dá vontade e eu finalizo – diz, dando de ombros.

A tranquilidade só é interrompida em episódios como o de duas semanas antes do encontro com a reportagem de ZH. Naquele dia, Chico estava lixando uma madeira assentada sobre a mesa quando avistou, do outro lado da rua, um cãozinho vira-latas preso entre as grades do portão de uma casa. O bichinho latia angustiado em meio às grades estreitas. O luthier, então, interrompeu o trabalho e foi até lá. Só que, ao empurrar o cão para a liberdade, acabou mordido na mão direita.

O incidente provocou uma cicatriz, com momentânea redução dos movimentos.

Só não foi pior porque o luthier de Giruá é canhoto – como Paul McCartney.

– Mas pode escrever aí: se esse cãozinho mal-agradecido aparecer ali e ficar entre as grades, eu vou até lá e, em vez de salvá-lo, vou morder a pata dele como ele mordeu a minha mão – diz, gargalhando.

Os amigos riem junto. Adoram o humor de Chico Polanski.

TEXTO

Léo Gerchmann

itamar.melo@zerohora.com.br

IMAGENS

Jefferson Botega

carlos.macedo@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Ticiano Osório

ticiano.osorio@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

 

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

A oficina da arte
{
A oficina da arte