O Projac da Colônia
{

luiz henrique Fitarelli passou mais de uma década montando um cenário para apresentar uma grande coleção de objetos originais da colonização italiana reunidos ao longo de uma vida. Perfeccionista, ele ainda não sabe quando sua grande obra estará pronta.

F

itarelli está se sentindo pressionado. Ultimamente tem ouvido da mulher que, “ora, 12 anos já é tempo demais”. Meses atrás, a filha mais velha resolveu endossar o coro: vai se casar ainda em 2017 e não, não tem outra opção, a festa será na cantina. É melhor que fique logo pronta. Até a prefeitura não vê a hora para, enfim, poder divulgar a mais nova atração turística de Garibaldi, na serra gaúcha.

Só que Fitarelli não tem pressa. Ele diz que tem algumas coisas prontas, e mais um monte delas por terminar. Reclama que precisaria de uma rede de energia elétrica em sistema trifásico, porque a atual, de uma fase só, não dá conta do recado. Avisa que está vendo o trabalho de mais de uma década chegar bem perto do fim. Só que o fim é exatamente o detalhe que lhe falta: descobrir uma forma de fazer com que a obra que construiu ganhe vida própria – em outras palavras, que se sustente daqui para frente.

– Acredito que, dentro de pouco tempo, vou achar um caminho. Aí pretendo abrir ao público em breve. Só não posso prometer o quão breve, porque promessa é dívida. Mas estou trabalhando para que isso aconteça logo – responde ele às pressões, com forte sotaque italiano, desconversando sobre prazos.

O que há tanto tempo está em desenvolvimento e ainda de portas fechadas é o Museu Etnográfico da Imigração Italiana, idealizado e em construção por Luiz Henrique Fitarelli, 57 anos. Não há exagero em afirmar: trata-se da maior coleção de objetos do tempo dos colonos italianos que povoarama Serra no fim do século 19 – são mais de 8 mil peças reunidas. Isso já seria um feito e tanto. Só que Fitarelli, todos sabem, é um cara caprichoso. Não colocaria em qualquer lugar o acervo que selecionou ao longo da vida, desde quando tinha 12 anos. Então, imaginou um cenário de novela, onde cada item seria colocado em seu devido lugar, como se ainda estivesse em uso. E assim fez: um cenário de novela, a céu aberto. Um verdadeiro “Projac da colônia”.

Achou uma área rural distante 20 quilômetros de Garibaldi, cercada por árvores, às margens de um córrego. Uma paisagem bucólica, com um certo desnível no relevo. Colocou propositalmente uns pares de ovelhas e teve sorte quando apareceram por conta uns casais de quero-quero, dando ainda mais vida ao local. Projetou e ali ergueu ferraria, capela, casa com armazém, tanoaria, marcenaria, estrebaria e uma cantina – tudo construído a partir de técnicas utilizadas pelos imigrantes italianos e com os mesmos materiais, pedra e madeira. O trabalho é resultado de anos dedicados a incursões pelo interior dos municípios serranos e horas de observações atentas a cada detalhe das casas em que pedia licença e entrava. Buscou antigas construções à venda, escolheu tábua por tábua, caibro por caibro. Estava junto para ajudar a carregar e também ordenar o corte, onde e com que angulação cada material deveria ser encaixado. Tem na ponta da língua: só na cantina, são mais de 3,5 mil pedras e 20 metros cúbicos de madeira. Haja força no braço – e dinheiro no bolso.

Espaço já foi usado para gravações de especiais de televisão, documentários e da novela das seis da Globo Além do Tempo

– Não tenho estimativa de quanto já gastei nisso tudo. Foi algo que nunca me interessou muito saber. Mas foi bastante. Claro que muitas vezes consegui fazer compras a preços interessantes, até porque o pessoal não dava valor. E também teve coisas que saíram caro. Mas o custo disso não tem essa importância. O valor do acervo que está dentro destas construções é muito maior, porque é histórico – afirma Fitarelli.

O gosto por colecionar surgiu ainda quando criança, talvez motivado por um hábito tipicamente “gringo”: o de guardar qualquer coisa que pudesse vir a ser útil. Em tempos de dinheiro curto e distâncias longas, não era assim fácil ir até a cidade e comprar tudo novo em folha – então, guardavam-se pregos tortos, pedaços de ferros, tocos de madeira, latas, o que fosse. O acervo começou com pequenas peças pertencentes aos nonos – o ferreiro Tercílio Accorsi e o tanoeiro e agricultor Pedro Fitarelli, que repassavam ao neto os relatos da colonização contados pelos bisavós italianos. E só cresceu.

O jovem se formou em Veterinária e pôde, então, por conta própria, sustentar o “vício”, tornando o acervo cada vez mais sério. Viajava de camionete a trabalho, e voltava com a caçamba cheia de móveis e objetos. Parecia um frete andando pelas estradas de chão. Não demorou para que as peças começassem a se empilhar pelos cômodos da própria casa – e dos outros também.

Alguns móveis, aqueles que não tinham tanta relação com a imigração italiana, passaram a preencher um imóvel ao lado de onde Fitarelli mora – um sítio de gramado verde, flores e gatos correndo soltos, cravado bem próximo ao centro da cidade. Era o local onde o avô paterno vivia. Ali é a chamada Villa Fitarelli, que abriga um antiquário onde estão cristaleiras, enormes mesas de madeira maciça e uma infinidade de relíquias. Tudo à venda. Ao lado, foi criada uma oficina de restauro, onde os móveis danificados passam por reparos e outros novinhos são produzidos. À moda antiga, é evidente. O apreço pelo passado virou hobby. E também profissão – deixou a veterinária há quatros anos.

Para o museu, foram aqueles objetos de valor inestimável pela história que contam. Esses dias um especialista em acervos passou por lá e catalogou 1.170 peças relacionadas à produção de vinho. Entre elas, ferramentas utilizadas no processo da tanoaria e barris, que totalizam 300 unidades. Tudo foi pesado, medido, descrito e colocado organizadamente em uma prateleira. Há também os antigos materiais utilizados por marceneiros, como um banco de trabalho onde se posicionavam para cortar e trabalhar a madeira. Tem a coleção de plainas, de artigos de sapataria (profissão do pai), uma série de pilões e mais um punhado de coisas que os mais jovens não devem nem imaginar para que um dia serviram. Um destes objetos é um cortador de palha, vendida em formato quadrado, para a confecção manual de cigarrilhas.

É tanta coisa espalhada no interior das construções que ainda neste ano deve sair um longa-metragem sobre o trabalho de preservação feito por Fitarelli – os depoimentos e imagens foram gravados no museu e também na Itália, em lugares correlatos, como marcenarias, ferrarias e cantinas. A esta altura, pode-se dizer que rlr já está acostumado com as câmeras. Há algum tempo, abriu as portas do museu para a gravação de cenas da novela das seis Além do Tempo, da Rede Globo, exibida entre 2015 e 2016. Em 2015, o espaço serviu de palco para um comercial da Coca-Cola. Também se desenrolaram ali episódios da minissérie Decamerão: A Comédia do Sexo, criada por Jorge Furtado, e o documentário em curta-metragem Para Ficar na História, da RBS TV.

Com tanta demora para abrir o espaço ao público, parece que Fitarelli tenta manter a obra em sigilo. O problema é que criou um paraíso estético e histórico – e, bem, é difícil guardar lugares assim em segredo.

– Foram muitos anos de trabalho, mas tudo foi feito com prazer. Esta é a grande diferença.

A ideia não é ganhar dinheiro. Se eu quisesse ficar rico, eu não teria feito um museu. Se fiz, foi por satisfação. E faria mais uma vez. É gratificante receber o reconhecimento das pessoas pelo meu trabalho. Encontrar pessoas que admiram a preservação da história é o melhor pagamento que existe – afirma Fitarelli.

Mas não é o único. É por isso que, aos poucos, o colecionador conta estar recebendo alguns grupos de turistas. Ele mesmo guia as visitas na tentativa de criar uma metodologia para o passeio e também, claro, conferir como as coisas se comportam, como ele mesmo diz. Só depois de encontrar um formato e uma equipe para ajudá-lo é que irá abrir as portas do museu. Pretende, até lá, ter um restaurante no local e a cantina reformada, que será disponibilizada para a realização de eventos, como festas de casamento.

O comentário que corre em Garibaldi, no entanto, é que Fitarelli jamais abrirá o museu.

É ciumento demais, dizem, a boca pequena.

– É verdade. Mas como que eu não vou ser? É uma vida de trabalho. Eu busquei isso, sei a história de tudo o que tem aqui. Para onde eu olho, tem a minha mão. Eu que trouxe, que achei, que comprei, que transportei, que coloquei no lugar. Construí minha própria história contando e preservando esta belíssima história, que é a da saga da imigração italiana na esperança de melhorar a vida – ele explica.

Quando questionado pelos ansiosos, segue conjugando no futuro o aviso que há tempos está na página do museu na internet: “quando pronto para visitação comunicaremos via site”.

TEXTO

Bruna Scirea

bruna.scirea@zerohora.com.br

IMAGENS

Carlos Macedo

carlos.macedo@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Carlos André Moreira

carlos.moreira@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

O Projac da Colônia
{

CAPA DO ESPECIAL

O Projac da Colônia

luiz henrique Fitarelli passou mais de uma década montando um cenário para apresentar uma grande coleção de objetos originais da colonização italiana reunidos ao longo de uma vida. Perfeccionista, ele ainda não sabe quando sua grande obra estará pronta.

Fitarelli está se sentindo pressionado. Ultimamente tem ouvido da mulher que, “ora, 12 anos já é tempo demais”. Meses atrás, a filha mais velha resolveu endossar o coro: vai se casar ainda em 2017 e não, não tem outra opção, a festa será na cantina. É melhor que fique logo pronta. Até a prefeitura não vê a hora para, enfim, poder divulgar a mais nova atração turística de Garibaldi, na serra gaúcha.

Só que Fitarelli não tem pressa. Ele diz que tem algumas coisas prontas, e mais um monte delas por terminar. Reclama que precisaria de uma rede de energia elétrica em sistema trifásico, porque a atual, de uma fase só, não dá conta do recado. Avisa que está vendo o trabalho de mais de uma década chegar bem perto do fim. Só que o fim é exatamente o detalhe que lhe falta: descobrir uma forma de fazer com que a obra que construiu ganhe vida própria – em outras palavras, que se sustente daqui para frente.

– Acredito que, dentro de pouco tempo, vou achar um caminho. Aí pretendo abrir ao público em breve. Só não posso prometer o quão breve, porque promessa é dívida. Mas estou trabalhando para que isso aconteça logo – responde ele às pressões, com forte sotaque italiano, desconversando sobre prazos.

O que há tanto tempo está em desenvolvimento e ainda de portas fechadas é o Museu Etnográfico da Imigração Italiana, idealizado e em construção por Luiz Henrique Fitarelli, 57 anos. Não há exagero em afirmar: trata-se da maior coleção de objetos do tempo dos colonos italianos que povoarama Serra no fim do século 19 – são mais de 8 mil peças reunidas. Isso já seria um feito e tanto. Só que Fitarelli, todos sabem, é um cara caprichoso. Não colocaria em qualquer lugar o acervo que selecionou ao longo da vida, desde quando tinha 12 anos. Então, imaginou um cenário de novela, onde cada item seria colocado em seu devido lugar, como se ainda estivesse em uso. E assim fez: um cenário de novela, a céu aberto. Um verdadeiro “Projac da colônia”.

Achou uma área rural distante 20 quilômetros de Garibaldi, cercada por árvores, às margens de um córrego. Uma paisagem bucólica, com um certo desnível no relevo. Colocou propositalmente uns pares de ovelhas e teve sorte quando apareceram por conta uns casais de quero-quero, dando ainda mais vida ao local. Projetou e ali ergueu ferraria, capela, casa com armazém, tanoaria, marcenaria, estrebaria e uma cantina – tudo construído a partir de técnicas utilizadas pelos imigrantes italianos e com os mesmos materiais, pedra e madeira. O trabalho é resultado de anos dedicados a incursões pelo interior dos municípios serranos e horas de observações atentas a cada detalhe das casas em que pedia licença e entrava. Buscou antigas construções à venda, escolheu tábua por tábua, caibro por caibro. Estava junto para ajudar a carregar e também ordenar o corte, onde e com que angulação cada material deveria ser encaixado. Tem na ponta da língua: só na cantina, são mais de 3,5 mil pedras e 20 metros cúbicos de madeira. Haja força no braço – e dinheiro no bolso.

Acervo que começou com ferramentas de família já reúne cerca de 10 mil peças compradas ou obtidas uma a uma pela região

– Não tenho estimativa de quanto já gastei nisso tudo. Foi algo que nunca me interessou muito saber. Mas foi bastante. Claro que muitas vezes consegui fazer compras a preços interessantes, até porque o pessoal não dava valor. E também teve coisas que saíram caro. Mas o custo disso não tem essa importância. O valor do acervo que está dentro destas construções é muito maior, porque é histórico – afirma Fitarelli.

O gosto por colecionar surgiu ainda quando criança, talvez motivado por um hábito tipicamente “gringo”: o de guardar qualquer coisa que pudesse vir a ser útil. Em tempos de dinheiro curto e distâncias longas, não era assim fácil ir até a cidade e comprar tudo novo em folha – então, guardavam-se pregos tortos, pedaços de ferros, tocos de madeira, latas, o que fosse. O acervo começou com pequenas peças pertencentes aos nonos – o ferreiro Tercílio Accorsi e o tanoeiro e agricultor Pedro Fitarelli, que repassavam ao neto os relatos da colonização contados pelos bisavós italianos. E só cresceu.

O jovem se formou em Veterinária e pôde, então, por conta própria, sustentar o “vício”, tornando o acervo cada vez mais sério. Viajava de camionete a trabalho, e voltava com a caçamba cheia de móveis e objetos. Parecia um frete andando pelas estradas de chão. Não demorou para que as peças começassem a se empilhar pelos cômodos da própria casa – e dos outros também.

Alguns móveis, aqueles que não tinham tanta relação com a imigração italiana, passaram a preencher um imóvel ao lado de onde Fitarelli mora – um sítio de gramado verde, flores e gatos correndo soltos, cravado bem próximo ao centro da cidade. Era o local onde o avô paterno vivia. Ali é a chamada Villa Fitarelli, que abriga um antiquário onde estão cristaleiras, enormes mesas de madeira maciça e uma infinidade de relíquias. Tudo à venda. Ao lado, foi criada uma oficina de restauro, onde os móveis danificados passam por reparos e outros novinhos são produzidos. À moda antiga, é evidente. O apreço pelo passado virou hobby. E também profissão – deixou a veterinária há quatros anos.

Para o museu, foram aqueles objetos de valor inestimável pela história que contam. Esses dias um especialista em acervos passou por lá e catalogou 1.170 peças relacionadas à produção de vinho. Entre elas, ferramentas utilizadas no processo da tanoaria e barris, que totalizam 300 unidades. Tudo foi pesado, medido, descrito e colocado organizadamente em uma prateleira. Há também os antigos materiais utilizados por marceneiros, como um banco de trabalho onde se posicionavam para cortar e trabalhar a madeira. Tem a coleção de plainas, de artigos de sapataria (profissão do pai), uma série de pilões e mais um punhado de coisas que os mais jovens não devem nem imaginar para que um dia serviram. Um destes objetos é um cortador de palha, vendida em formato quadrado, para a confecção manual de cigarrilhas.

É tanta coisa espalhada no interior das construções que ainda neste ano deve sair um longa-metragem sobre o trabalho de preservação feito por Fitarelli – os depoimentos e imagens foram gravados no museu e também na Itália, em lugares correlatos, como marcenarias, ferrarias e cantinas. A esta altura, pode-se dizer que rlr já está acostumado com as câmeras. Há algum tempo, abriu as portas do museu para a gravação de cenas da novela das seis Além do Tempo, da Rede Globo, exibida entre 2015 e 2016. Em 2015, o espaço serviu de palco para um comercial da Coca-Cola. Também se desenrolaram ali episódios da minissérie Decamerão: A Comédia do Sexo, criada por Jorge Furtado, e o documentário em curta-metragem Para Ficar na História, da RBS TV.

Com tanta demora para abrir o espaço ao público, parece que Fitarelli tenta manter a obra em sigilo. O problema é que criou um paraíso estético e histórico – e, bem, é difícil guardar lugares assim em segredo.

– Foram muitos anos de trabalho, mas tudo foi feito com prazer. Esta é a grande diferença.

A ideia não é ganhar dinheiro. Se eu quisesse ficar rico, eu não teria feito um museu. Se fiz, foi por satisfação. E faria mais uma vez. É gratificante receber o reconhecimento das pessoas pelo meu trabalho. Encontrar pessoas que admiram a preservação da história é o melhor pagamento que existe – afirma Fitarelli.

Mas não é o único. É por isso que, aos poucos, o colecionador conta estar recebendo alguns grupos de turistas. Ele mesmo guia as visitas na tentativa de criar uma metodologia para o passeio e também, claro, conferir como as coisas se comportam, como ele mesmo diz. Só depois de encontrar um formato e uma equipe para ajudá-lo é que irá abrir as portas do museu. Pretende, até lá, ter um restaurante no local e a cantina reformada, que será disponibilizada para a realização de eventos, como festas de casamento.

O comentário que corre em Garibaldi, no entanto, é que Fitarelli jamais abrirá o museu.

É ciumento demais, dizem, a boca pequena.

– É verdade. Mas como que eu não vou ser? É uma vida de trabalho. Eu busquei isso, sei a história de tudo o que tem aqui. Para onde eu olho, tem a minha mão. Eu que trouxe, que achei, que comprei, que transportei, que coloquei no lugar. Construí minha própria história contando e preservando esta belíssima história, que é a da saga da imigração italiana na esperança de melhorar a vida – ele explica.

Quando questionado pelos ansiosos, segue conjugando no futuro o aviso que há tempos está na página do museu na internet: “quando pronto para visitação comunicaremos via site”.