Professor Pardal

de Dois Lajeados

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João Paulo Denardi é uma usina de ideias. Desde criança, está sempre inventando alguma coisa no pequeno município do nordeste gaúcho. No parque turístico que ele montou, uma das atrações é fazer, a bordo do Toro, carro projetado e construído por ele, um safári virtual –  os elefantes, leões, pandas e outros animais são réplicas em 3d

N

a infância, lá pelos oito anos de idade, João Paulo Denardi inconformou-se com a trabalheira que a mãe tinha para limpar feijões, separando das impurezas um grão por vez. Matutou no assunto e concebeu um dispositivo com duas peneiras sobrepostas. A de cima dispunha de orifícios largos, que deixavam passar os feijões, mas retinham o que fosse maior do que eles. Na peneira inferior, a rede era mais apertada, de forma a segurar as sementes – e só as sementes. As sujeiras menores caíam pelos furos. A separação podia ser realizada em segundos.

Por causa de engenhocas como essa, aos 14 anos Denardi já granjeara uma respeitável fama de inventor em Dois Lajeados, o pequenino município do nordeste gaúcho onde nasceu, cresceu e viveu todos os seus 38 anos, sempre na propriedade rural dos pais. Foi então que uma empresa da região resolveu fazer-lhe uma proposta: a criação de uma máquina descascadora de nozes. Queria um equipamento que separasse com rapidez a parte comestível.

O adolescente assumiu a missão com entusiasmo – talvez até com entusiasmo demais. Passou quatro anos enfurnado na oficina, se debatendo com o projeto.

– Enquanto os outros da minha idade saíam para se divertir, eu ficava trancado até a meia-noite. Eu devia ter uns 30 parafusos a menos na época – contou Denardi à reportagem, semanas atrás.

Em uma primeira fase, ele se dedicou a estudar a própria arquitetura da noz, para entender a forma mais eficaz de quebrá-la sem afetar a integridade do fruto. Descobriu que o melhor jeito era ter um dispositivo que a segurasse pelas duas pontas. Uma pancada fazia então a casca explodir, deixando o miolo intacto. Começou a construir a máquina em torno dessa ideia.

O resultado pode ser visto no centro de um salão onde Denardi conserva seus inventos. É um mecanismo quase do tamanho de um automóvel, formado por centenas de barras metálicas, engrenagens, cilindros, polias e parafusos. Passados 20 anos, está enferrujado e sem motor, mas o inventor faz uma demonstração manual.

Ele solta o fruto em um receptáculo e, empurrando braços mecânicos, fazendo os ferros rangerem pela falta de lubrificação, demonstra o funcionamento da geringonça. A noz percorre um complicado caminho até chegar ao dispositivo que originou tudo, uma espécie de pinça que segura a casca pelas bordas.

– O problema aqui era como fazer que a noz ficasse em pé e viesse um leitor para ver o tamanho dela e depois dar a pancada que faz a casca explodir. Depois, para levar a noz até aqui, tive de criar um robô que vai lá no fundo para buscar. Mas para levar a noz até esse robô, tinha de criar um outro robô, sabe? A máquina começou a crescer e crescer.

Feita a explicação, Denardi imprime uma pressão sobre a pinça, e a casca esfarela-se. Orgulhoso, exibe a parte de dentro, perfeitamente íntegra.

“A ideia da piscina é uma gaivota olhando para a praia”, diz o inventor sobre uma das áreas do Parque Denardi

Antes mesmo de o equipamento estar finalizado, o inventor já fazia sucesso em feiras municipais pelo Interior, exibindo uma parte dele. Mas, naquela versão, Denardi tinha de introduzir um fruto de cada vez, o que não o satisfazia. Em busca de um modelo que pudesse ser alimentado com grandes quantidades, concebeu todo um novo mecanismo. A descascadora cresceu ainda mais. Dobrou de tamanho.

Ainda não era suficiente. Ele ansiava que a máquina fosse inteligente, capaz de avaliar o andamento do processo, ajustar velocidade e suprimento, corrigir automaticamente as falhas. Para chegar lá, começou a projetar uma espécie de computador mecânico. Um dia, já flertando com a insanidade, resolveu desistir.

– Fazer essa máquina era loucura. Eu sabia que não terminaria nunca, que quanto mais eu ia fazendo, mais ideias iam surgindo para deixá-la mais complicada. Eu me trancava na oficina, um pouco por mágoa comigo mesmo, por são ser comunicativo. Eu sentia que era diferente das pessoas, que fazendo uma grande máquina, uma coisa louca, eu teria reconhecimento. Por causa dessa descascadora, fui a vários psicólogos, psiquiatras. Uns eu deixei loucos – relatou.

Apesar dessa avaliação retrospectiva algo amarga, o Professor Pardal de Dois Lajeados define a descascadora – e os quatro anos febris a ela dedicados – como a sua “faculdade”. Por isso, ela até hoje tem um lugar de destaque entre os inumeráveis inventos que pululam pelo Parque Denardi, uma área de 12 hectares subtraída à fazenda da família e transformada em um peculiaríssimo centro de visitação turística, que serve de sustento para o inventor.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Pouca coisa lá é convencional, porque Denardi não se conforma em fazer como outros já fizeram. As piscinas, por exemplo. Ele poderia tê-las construído no formato retangular, o que custaria menos, mas preferiu um desenho todo curvo. Na beirada, ergueu uma área coberta em forma de gaivota. Para tanto, projetou um complicado telhado em vários níveis, que copia as asas da ave, e instalou na ponta uma estrutura metálica no formato de um bico. Fica inconformado que muitos dos que pagam ingresso para usufruir de banhos e mergulhos não se deem conta da simbologia.

– A ideia da piscina é a de uma gaivota olhando para a praia. Eu não queria só fazer uma piscina para ganhar dinheiro, queria que me desse alegria. E a alegria vem de fazer diferente – defende.

Até nas coisas mais simples Denardi busca a originalidade. Num dia de chuva, sem nada para fazer, resolveu levantar uma lareira junto ao restaurante que abriu no parque. O resultado é uma construção de tijolos em que a parte superior é uma espiral, como se a chaminé tivesse sido retorcida. Para a cozinha, bolou um porta-copos de parede feito não de pinos, como os usuais, mas de prateleiras inclinadas e calhas que favorecem o escoamento da água. Por ser mais higiênico e permitir acomodar mais copos em menos espaço, Denardi acreditou que o invento cairia no agrado de donos de bares e restaurantes e o faria rico. Por isso, investiu fundos para obter uma patente. Mas nunca conseguiu comercializá-lo. Ficou no prejuízo.

O Parque Denardi tem lago com pedalinho, trilhas na mata, áreas para esportes, sala de convenções. Misturado a tudo isso estão as ideias e invenções do seu proprietário. Na sala que conserva o descascador de nozes, por exemplo, pende do teto, atado por um fio, um chumbinho de pesca que, de acordo com os cálculo de Denardi, é exatamente 700 milhões vezes menor do que a lua. Dependurada a 56 centímetros de distância, há uma bola de gude com 1,8 centímetro de diâmetro. Representa a Terra, na mesma proporção.

– Agora eu pergunto: se depois da divisão por 700 milhões a Terra e a lua ficam desse tamanho e a esta distância, onde é que está o sol?

Denardi faz uma pausa dramática, enquanto os presentes vasculham a sala com os olhos, à procura. Ele então abre a janela. Lá ao fundo, do outro lado do lago, vê-se uma pequena esfera amarela. O inventor informa que ela tem na verdade 1,8 metro de diâmetro e está a 215 metros de distância. É o sol.

– Acho que esse é o único sistema solar em escala do Brasil – orgulha-se.

A primeira das engenhocas de Denardi foi um descascador de nozes gigante – feito sob encomenda quando era adolescente

Na sala, ele expõe várias outras criações do gênero, com fins pedagógicos, voltadas à finalidade de tornar a ciência mais palpável para os leigos. Também mantém ao alcance, nos arredores, algumas das máquinas que projetou e construiu, pensando nas indústrias de joias da região: uma que fresa e usina o metal, preparando para a incrustação com pedras preciosas, e outras que cortam e dobram chapinhas, transformando-as em anéis. Desta última, vendeu uma dúzia para indústrias, que antes faziam o processo manualmente. De vez em quando, ainda recebe encomendas, mas já não as constrói, porque quer se dedicar ao parque, um empreendimento bem sucedido, onde serve refeições para cerca de 300 pessoas a cada fim de semana.

Na propriedade ele levantou, por exemplo, um amplo castelo de inspiração medieval, em cujo interior montou um labirinto com infindáveis corredores de compensado. Há uma porta de entrada e três de saída. Denardi cobra R$ 8 pelo ingresso. Se o visitante desembocar na saída número 1, perde o dinheiro. Se sair na número 2, recebe metade do que pagou. Se conseguir sair na terceira, reavê o valor integral.

 A maioria acaba perdendo a aposta – o inventor desenhou um labirinto que joga com a psicologia dos participantes, induzindo-os a sair quase sempre pela mesma primeira porta.

Seria possível continuar listando durante muito tempo as criações de Denardi. De fato, mais adiante ainda se vai falar de uma ou duas delas, especialmente daquela que mais o orgulha. Mas antes deve-se chamar a atenção para aquilo que mais espanta no inventor de Dois Lajeados: o fato de que ele adquiriu conhecimentos de mecânica e criou máquinas complicadas sem ter recebido qualquer tipo de formação específica. O grande guia para suas experimentações tem sido, desde a adolescência, a coleção Guia Prático de Ciências, um singelo conjunto de livros que busca explicar, para estudantes, alguns fundamentos sobre o funcionamento da Terra, do universo, da natureza, dos organismos vivos. Denardi adquiriu a coleção de um vendedor de livros que apareceu um dia na escola e ainda a utiliza como fonte de consulta frequente.

Com tal alma de engenheiro e tamanha vocação para inventar, porque nunca foi para uma universidade?, perguntam-lhe o tempo todo.

A resposta que ele fornece permite vislumbrar uma personalidade peculiar:

– Acho que foi pelo fato de eu não gostar muito de ficar no meio das pessoas, eu lembro que eu era arrastado para festas sociais mas sempre ansiava voltar pra casa pro meu espaço. E só de pensar que teria que me socializar o todo tempo, dormir em outro lugar, almoçar com as pessoas isso já me causava pânico. As pessoas veem minhas invenções e dizem que eu poderia ter me dado superbem se tivesse feito uma faculdade, mas a questão é: o que é se dar superbem? Talvez o que tu pensas que é sucesso para mim não é.

Um complicador é que nem sempre Denardi vê no dom da invenção algo plenamente louvável e saudável. Ele conta que em uma época estudou a vida de grandes gênios criativos e assustou-se ao concluir que todos eram também algo doidos. E reconhece que, para ele próprio, a oficina e as engenhocas foram uma forma de fuga, das outras pessoas e do mundo.

 Era uma forma de se manter ocupado e de fugir de pensamentos inquietantes. Ao mesmo tempo, representavam um anseio de glória: ele gostava de exibir suas máquinas a feiras, fazia anúncios em rádios oferecendo dinheiro para quem desvendasse os enigmas que concebia, ambicionava espaços nos meios de comunicação. Buscava a fama.

Essa é uma versão de si mesmo que Denardi, com alívio, diz ter superado. Desde que criou o parque, garante, vive um outro momento.

–  Tem uma fase da minha vida que eu queria esquecer. Fui aprendendo comigo mesmo e hoje sou uma pessoa diferente, pois nesses últimos tempos meu maior projeto foi um projeto de vida, e de todos esses anos pensando, me lamento de só agora perceber que eu simplesmente era uma pessoa introvertida, e que não tinha nenhum problema comigo, gosto de me socializar, mas  em pequenas quantidades, prefiro a oficina ao sair pra uma festa, diferentemente dos extrovertidos que precisam de muitos estímulos externos para se sentirem energizados eu percebo que recarrego minhas baterias quando estou em ambientes calmos. Para mim sempre foi um desafio viver numa cultura onde parece que o ideal é ser extrovertido, estar no centro das atenções, sempre foi desconfortável eu tentar fingir uma coisa que eu não era. É uma pena que poucos compreendem essa peculiaridade desse tipo de personalidade. Mas ainda sinto pensamentos inquietantes dentro de mim. Às vezes fico deprimido por causa disso, fico desgastado, ou então me jogo nas invenções.

Nesses momentos, ele se fecha no escritório e tentar fazer algo que saber ser impossível: criar o moto-perpétuo, a máquina utópica que funcionaria para sempre, movida pela energia gerada por seu próprio movimento. Esse homem questionador e desassossegado não é, contudo, o Denardi que as centenas de pessoas que visitam o parque a cada fim de semana encontram. Hoje em dia, a faceta de inventor inquieto é menos conhecida do que a de bem-sucedido empreendedor do ramo turístico. O Denardi que recebe os visitantes é um sujeito falante e bem-humorado, que conduz os clientes morro acima e morro abaixo, por entres às matas, ao volante do Toro.

Dentro do castelo de inspiração medieval, há um labirinto que desafia os visitantes – são centenas todos os fins de semana

O Toro, esclareça-se, é o mais novo e flamante exemplar da coleção de trunfos do inventor – um veículo com tração nas quatro rodas e capacidade para transportar 16 passageiros, projetado e construído por ele. O veículo tem, no entanto, uma história antiga. Em 2006, Denardi decidiu que precisava de um carro especial para transportar os visitantes do parque. Arranjou o chassi de uma Rural, comprou tubos e chapas metálicos, cortou aqui, dobrou ali, soldou acolá. Para definir o design, experimentou com recortes de papelão, montados sobre o chassi.

Foi construindo no “chutômetro”. No fim, tinha em mãos um carro aberto, com 12 lugares.

O veículo serviu aos propósitos durante 10 anos, mas começou a quebrar com frequência. No ano passado, Denardi percebeu que era hora de pôr em operação um novo Toro. A primeira ideia consistiu em comprar um veículo militar disponível no mercado. Ele chegou a visitar a fábrica para vê-lo, mas se assustou com o preço: R$ 200 mil. Mais uma vez, decidiu construir o carro. Durante um mês, trabalhou no projeto, agora feito em 3D, no computador, desenhando peça por peça. Os dois meses seguintes foram dedicados à execução, com ajuda de um mecânico. Denardi juntou o chassi de um caminhão do Exército adquirido em leilão, um motor Mercedes-Benz, pneus de retroescavadeira e fez toda a carroceria. Para a parte frontal, concebeu um desenho que evoca as feições de um touro – sobrancelhas, olhos, boca, dentes, focinho – e uma argola no focinho. Ao todo, gastou R$ 80 mil.

– O primeiro Toro foi no olho. Este fui desenhando, mudando o ângulo, mudando a sobrancelha, até ficar do jeito que eu queria. Não é para me gabar, mas está muito bonito.

Xodó de Denardi, o Toro é hoje a grande atração do parque, um veículo imponente e robusto, capaz de subir trilhas íngremes pelos piores terrenos. Com ele, o inventor promove uma série de passeios, incluindo um safári dentro do parque. Os animais – leões, elefantes, pandas – são fotos em tamanho natural, afixadas a painéis entre as árvores, uma vez que réplicas em 3D estavam além do orçamento.

Antes de fazer uma demonstração com o veículo, no insólito safári, Denardi sentou-se à mesa de um restaurante para almoçar. As perguntas direcionadas a ele buscavam delinear de onde, afinal, vinham seus conhecimentos, e com base em que ele concebia suas engenhocas. O inventor parecia não compreender o motivo das questões. Para ele, inventar era fácil, quase natural. Com a insistência das perguntas, desafiou:

– O que vocês querem que eu invente agora?

Após alguns segundos de silêncio, ele olhou para o prato já esvaziado a sua frente, com um garfo e uma faca sobre ele, e acrescentou:

– Vamos inventar então uma máquina de separar pratos dos talheres. O que eu poderia fazer? A primeira coisa que pensei agora é uma esteira. Uma esteira andando e levando os pratos para lá. Olha, já estou criando agora. Já que o prato é mais pesado, ele vai ficar na esteira... Passa numa esteira simples, tem um rolo com uma escova que vai tocando para lá os talheres. Está vendo? Os pratos vão lá para o fundo, os talheres ficam aqui. Pronto, já inventei.

 

Como chegar

O Parque Denardi fica em Dois Lajeados, na Rua Epitácio Pessoa, sem número. Essa rua sai da RS-129, nas proximidades do centro do município. Há uma placa indicando a entrada. O parque está a cerca de um quilômetro da rodovia. Outras informações podem ser obtidas no site parquedenardi.com.br

TEXTO

Itamar Melo

itamar.melo@zerohora.com.br

IMAGENS

Carlos Macedo

carlos.macedo@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Ticiano Osório

ticiano.osorio@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

 

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

Professor Pardal de Dois Lajeados

Na infância, lá pelos oito anos de idade, João Paulo Denardi inconformou-se com a trabalheira que a mãe tinha para limpar feijões, separando das impurezas um grão por vez. Matutou no assunto e concebeu um dispositivo com duas peneiras sobrepostas. A de cima dispunha de orifícios largos, que deixavam passar os feijões, mas retinham o que fosse maior do que eles. Na peneira inferior, a rede era mais apertada, de forma a segurar as sementes – e só as sementes. As sujeiras menores caíam pelos furos. A separação podia ser realizada em segundos.

Por causa de engenhocas como essa, aos 14 anos Denardi já granjeara uma respeitável fama de inventor em Dois Lajeados, o pequenino município do nordeste gaúcho onde nasceu, cresceu e viveu todos os seus 38 anos, sempre na propriedade rural dos pais. Foi então que uma empresa da região resolveu fazer-lhe uma proposta: a criação de uma máquina descascadora de nozes. Queria um equipamento que separasse com rapidez a parte comestível.

O adolescente assumiu a missão com entusiasmo – talvez até com entusiasmo demais. Passou quatro anos enfurnado na oficina, se debatendo com o projeto.

– Enquanto os outros da minha idade saíam para se divertir, eu ficava trancado até a meia-noite. Eu devia ter uns 30 parafusos a menos na época – contou Denardi à reportagem, semanas atrás.

Em uma primeira fase, ele se dedicou a estudar a própria arquitetura da noz, para entender a forma mais eficaz de quebrá-la sem afetar a integridade do fruto. Descobriu que o melhor jeito era ter um dispositivo que a segurasse pelas duas pontas. Uma pancada fazia então a casca explodir, deixando o miolo intacto. Começou a construir a máquina em torno dessa ideia.

O resultado pode ser visto no centro de um salão onde Denardi conserva seus inventos. É um mecanismo quase do tamanho de um automóvel, formado por centenas de barras metálicas, engrenagens, cilindros, polias e parafusos. Passados 20 anos, está enferrujado e sem motor, mas o inventor faz uma demonstração manual.

Ele solta o fruto em um receptáculo e, empurrando braços mecânicos, fazendo os ferros rangerem pela falta de lubrificação, demonstra o funcionamento da geringonça. A noz percorre um complicado caminho até chegar ao dispositivo que originou tudo, uma espécie de pinça que segura a casca pelas bordas.

– O problema aqui era como fazer que a noz ficasse em pé e viesse um leitor para ver o tamanho dela e depois dar a pancada que faz a casca explodir. Depois, para levar a noz até aqui, tive de criar um robô que vai lá no fundo para buscar. Mas para levar a noz até esse robô, tinha de criar um outro robô, sabe? A máquina começou a crescer e crescer.

Feita a explicação, Denardi imprime uma pressão sobre a pinça, e a casca esfarela-se. Orgulhoso, exibe a parte de dentro, perfeitamente íntegra.

“A ideia da piscina é uma gaivota olhando para a praia”, diz o inventor sobre uma das áreas do Parque Denardi

Antes mesmo de o equipamento estar finalizado, o inventor já fazia sucesso em feiras municipais pelo Interior, exibindo uma parte dele. Mas, naquela versão, Denardi tinha de introduzir um fruto de cada vez, o que não o satisfazia. Em busca de um modelo que pudesse ser alimentado com grandes quantidades, concebeu todo um novo mecanismo. A descascadora cresceu ainda mais. Dobrou de tamanho.

Ainda não era suficiente. Ele ansiava que a máquina fosse inteligente, capaz de avaliar o andamento do processo, ajustar velocidade e suprimento, corrigir automaticamente as falhas. Para chegar lá, começou a projetar uma espécie de computador mecânico. Um dia, já flertando com a insanidade, resolveu desistir.

– Fazer essa máquina era loucura. Eu sabia que não terminaria nunca, que quanto mais eu ia fazendo, mais ideias iam surgindo para deixá-la mais complicada. Eu me trancava na oficina, um pouco por mágoa comigo mesmo, por são ser comunicativo. Eu sentia que era diferente das pessoas, que fazendo uma grande máquina, uma coisa louca, eu teria reconhecimento. Por causa dessa descascadora, fui a vários psicólogos, psiquiatras. Uns eu deixei loucos – relatou.

Apesar dessa avaliação retrospectiva algo amarga, o Professor Pardal de Dois Lajeados define a descascadora – e os quatro anos febris a ela dedicados – como a sua “faculdade”. Por isso, ela até hoje tem um lugar de destaque entre os inumeráveis inventos que pululam pelo Parque Denardi, uma área de 12 hectares subtraída à fazenda da família e transformada em um peculiaríssimo centro de visitação turística, que serve de sustento para o inventor.

Pouca coisa lá é convencional, porque Denardi não se conforma em fazer como outros já fizeram. As piscinas, por exemplo. Ele poderia tê-las construído no formato retangular, o que custaria menos, mas preferiu um desenho todo curvo. Na beirada, ergueu uma área coberta em forma de gaivota. Para tanto, projetou um complicado telhado em vários níveis, que copia as asas da ave, e instalou na ponta uma estrutura metálica no formato de um bico. Fica inconformado que muitos dos que pagam ingresso para usufruir de banhos e mergulhos não se deem conta da simbologia.

– A ideia da piscina é a de uma gaivota olhando para a praia. Eu não queria só fazer uma piscina para ganhar dinheiro, queria que me desse alegria. E a alegria vem de fazer diferente – defende.

Até nas coisas mais simples Denardi busca a originalidade. Num dia de chuva, sem nada para fazer, resolveu levantar uma lareira junto ao restaurante que abriu no parque. O resultado é uma construção de tijolos em que a parte superior é uma espiral, como se a chaminé tivesse sido retorcida. Para a cozinha, bolou um porta-copos de parede feito não de pinos, como os usuais, mas de prateleiras inclinadas e calhas que favorecem o escoamento da água. Por ser mais higiênico e permitir acomodar mais copos em menos espaço, Denardi acreditou que o invento cairia no agrado de donos de bares e restaurantes e o faria rico. Por isso, investiu fundos para obter uma patente. Mas nunca conseguiu comercializá-lo. Ficou no prejuízo.

O Parque Denardi tem lago com pedalinho, trilhas na mata, áreas para esportes, sala de convenções. Misturado a tudo isso estão as ideias e invenções do seu proprietário. Na sala que conserva o descascador de nozes, por exemplo, pende do teto, atado por um fio, um chumbinho de pesca que, de acordo com os cálculo de Denardi, é exatamente 700 milhões vezes menor do que a lua. Dependurada a 56 centímetros de distância, há uma bola de gude com 1,8 centímetro de diâmetro. Representa a Terra, na mesma proporção.

– Agora eu pergunto: se depois da divisão por 700 milhões a Terra e a lua ficam desse tamanho e a esta distância, onde é que está o sol?

Denardi faz uma pausa dramática, enquanto os presentes vasculham a sala com os olhos, à procura. Ele então abre a janela. Lá ao fundo, do outro lado do lago, vê-se uma pequena esfera amarela. O inventor informa que ela tem na verdade 1,8 metro de diâmetro e está a 215 metros de distância. É o sol.

– Acho que esse é o único sistema solar em escala do Brasil – orgulha-se.

A primeira das engenhocas de Denardi foi um descascador de nozes gigante – feito sob encomenda quando era adolescente

Na sala, ele expõe várias outras criações do gênero, com fins pedagógicos, voltadas à finalidade de tornar a ciência mais palpável para os leigos. Também mantém ao alcance, nos arredores, algumas das máquinas que projetou e construiu, pensando nas indústrias de joias da região: uma que fresa e usina o metal, preparando para a incrustação com pedras preciosas, e outras que cortam e dobram chapinhas, transformando-as em anéis. Desta última, vendeu uma dúzia para indústrias, que antes faziam o processo manualmente. De vez em quando, ainda recebe encomendas, mas já não as constrói, porque quer se dedicar ao parque, um empreendimento bem sucedido, onde serve refeições para cerca de 300 pessoas a cada fim de semana.

Na propriedade ele levantou, por exemplo, um amplo castelo de inspiração medieval, em cujo interior montou um labirinto com infindáveis corredores de compensado. Há uma porta de entrada e três de saída. Denardi cobra R$ 8 pelo ingresso. Se o visitante desembocar na saída número 1, perde o dinheiro. Se sair na número 2, recebe metade do que pagou. Se conseguir sair na terceira, reavê o valor integral.

 A maioria acaba perdendo a aposta – o inventor desenhou um labirinto que joga com a psicologia dos participantes, induzindo-os a sair quase sempre pela mesma primeira porta.

Seria possível continuar listando durante muito tempo as criações de Denardi. De fato, mais adiante ainda se vai falar de uma ou duas delas, especialmente daquela que mais o orgulha. Mas antes deve-se chamar a atenção para aquilo que mais espanta no inventor de Dois Lajeados: o fato de que ele adquiriu conhecimentos de mecânica e criou máquinas complicadas sem ter recebido qualquer tipo de formação específica. O grande guia para suas experimentações tem sido, desde a adolescência, a coleção Guia Prático de Ciências, um singelo conjunto de livros que busca explicar, para estudantes, alguns fundamentos sobre o funcionamento da Terra, do universo, da natureza, dos organismos vivos. Denardi adquiriu a coleção de um vendedor de livros que apareceu um dia na escola e ainda a utiliza como fonte de consulta frequente.

Com tal alma de engenheiro e tamanha vocação para inventar, porque nunca foi para uma universidade?, perguntam-lhe o tempo todo.

A resposta que ele fornece permite vislumbrar uma personalidade peculiar:

– Acho que foi pelo fato de eu não gostar muito de me comunicar com as pessoas. Para fazer faculdade, tu tens de sair de casa, dormir em outro lugar. Não queria sair daqui, talvez por timidez. Sempre tive pânico na parte da comunicação, de interagir com pessoas. As pessoas veem minhas invenções e dizem que eu poderia ter me dado superbem se tivesse feito uma faculdade, mas a questão é: o que é se dar superbem? Talvez o que tu pensas que é sucesso para mim não é.

Um complicador é que nem sempre Denardi vê no dom da invenção algo plenamente louvável e saudável. Ele conta que em uma época estudou a vida de grandes gênios criativos e assustou-se ao concluir que todos eram também algo doidos. E reconhece que, para ele próprio, a oficina e as engenhocas foram uma forma de fuga, das outras pessoas e do mundo.

 Era uma forma de se manter ocupado e de fugir de pensamentos inquietantes. Ao mesmo tempo, representavam um anseio de glória: ele gostava de exibir suas máquinas a feiras, fazia anúncios em rádios oferecendo dinheiro para quem desvendasse os enigmas que concebia, ambicionava espaços nos meios de comunicação. Buscava a fama.

Essa é uma versão de si mesmo que Denardi, com alívio, diz ter superado. Desde que criou o parque, garante, vive um outro momento.

–  Tem uma fase da minha vida que eu queria esquecer. Fui aprendendo comigo mesmo e hoje sou uma pessoa diferente. Mas ainda sinto pensamentos inquietantes dentro de mim. Vivo um dilema gigantesco, que me faz sofrer: se eu tivesse nascido menos pensador, será que seria mais feliz ou não? Tem muita gente por aí que vive normalmente, que casa, trabalha, tem filhos, é alegre, vai viajar... Mas, vamos dizer assim, são uns bobinhos, não se preocupam com nada. E eu, que me preocupo, que penso demais, às vezes não consigo sentir aquela alegria que os mais simples conseguem. Às vezes fico deprimido por causa disso, fico desgastado, ou então me jogo nas invenções.

Nesses momentos, ele se fecha no escritório e tentar fazer algo que saber ser impossível: criar o moto-perpétuo, a máquina utópica que funcionaria para sempre, movida pela energia gerada por seu próprio movimento. Esse homem questionador e desassossegado não é, contudo, o Denardi que as centenas de pessoas que visitam o parque a cada fim de semana encontram. Hoje em dia, a faceta de inventor inquieto é menos conhecida do que a de bem-sucedido empreendedor do ramo turístico. O Denardi que recebe os visitantes é um sujeito falante e bem-humorado, que conduz os clientes morro acima e morro abaixo, por entres às matas, ao volante do Toro.

Dentro do castelo de inspiração medieval, há um labirinto que desafia os visitantes – são centenas todos os fins de semana

O Toro, esclareça-se, é o mais novo e flamante exemplar da coleção de trunfos do inventor – um veículo com tração nas quatro rodas e capacidade para transportar 16 passageiros, projetado e construído por ele. O veículo tem, no entanto, uma história antiga. Em 2006, Denardi decidiu que precisava de um carro especial para transportar os visitantes do parque. Arranjou o chassi de uma Rural, comprou tubos e chapas metálicos, cortou aqui, dobrou ali, soldou acolá. Para definir o design, experimentou com recortes de papelão, montados sobre o chassi.

Foi construindo no “chutômetro”. No fim, tinha em mãos um carro aberto, com 12 lugares.

O veículo serviu aos propósitos durante 10 anos, mas começou a quebrar com frequência. No ano passado, Denardi percebeu que era hora de pôr em operação um novo Toro. A primeira ideia consistiu em comprar um veículo militar disponível no mercado. Ele chegou a visitar a fábrica para vê-lo, mas se assustou com o preço: R$ 200 mil. Mais uma vez, decidiu construir o carro. Durante um mês, trabalhou no projeto, agora feito em 3D, no computador, desenhando peça por peça. Os dois meses seguintes foram dedicados à execução, com ajuda de um mecânico. Denardi juntou o chassi de um caminhão do Exército adquirido em leilão, um motor Mercedes-Benz, pneus de retroescavadeira e fez toda a carroceria. Para a parte frontal, concebeu um desenho que evoca as feições de um touro – sobrancelhas, olhos, boca, dentes, focinho – e uma argola no focinho. Ao todo, gastou R$ 80 mil.

– O primeiro Toro foi no olho. Este fui desenhando, mudando o ângulo, mudando a sobrancelha, até ficar do jeito que eu queria. Não é para me gabar, mas está muito bonito.

Xodó de Denardi, o Toro é hoje a grande atração do parque, um veículo imponente e robusto, capaz de subir trilhas íngremes pelos piores terrenos. Com ele, o inventor promove uma série de passeios, incluindo um safári dentro do parque. Os animais – leões, elefantes, pandas – são fotos em tamanho natural, afixadas a painéis entre as árvores, uma vez que réplicas em 3D estavam além do orçamento.

Antes de fazer uma demonstração com o veículo, no insólito safári, Denardi sentou-se à mesa de um restaurante para almoçar. As perguntas direcionadas a ele buscavam delinear de onde, afinal, vinham seus conhecimentos, e com base em que ele concebia suas engenhocas. O inventor parecia não compreender o motivo das questões. Para ele, inventar era fácil, quase natural. Com a insistência das perguntas, desafiou:

– O que vocês querem que eu invente agora?

Após alguns segundos de silêncio, ele olhou para o prato já esvaziado a sua frente, com um garfo e uma faca sobre ele, e acrescentou:

– Vamos inventar então uma máquina de separar pratos dos talheres. O que eu poderia fazer? A primeira coisa que pensei agora é uma esteira. Uma esteira andando e levando os pratos para lá. Olha, já estou criando agora. Já que o prato é mais pesado, ele vai ficar na esteira... Passa numa esteira simples, tem um rolo com uma escova que vai tocando para lá os talheres. Está vendo? Os pratos vão lá para o fundo, os talheres ficam aqui. Pronto, já inventei.

 

Como chegar

O Parque Denardi fica em Dois Lajeados, na Rua Epitácio Pessoa, sem número. Essa rua sai da RS-129, nas proximidades do centro do município. Há uma placa indicando a entrada. O parque está a cerca de um quilômetro da rodovia. Outras informações podem ser obtidas no site parquedenardi.com.br