A história do que poderia ter sido
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Uma visita às ruínas do cassino de Canela, construção interrompida há 70 anos, por conta do decreto presidencial que proibiu casas

de jogos de azar no Brasil

T

odos os dias, turistas do Brasil inteiro ingressam na zona urbana de Canela, percorrem alguns quarteirões pela avenida principal e se aglomeram diante da famosa Catedral de Pedra, onde estancam boquiabertos e dedicam-se à popular arte de produzir selfies para o Instagram e o Facebook.

A raros deles ocorre a ideia de contornar o templo e descobrir o que há do outro lado, lá para as traseiras da cidade. Caso o façam, percorrendo a pé o prolongamento da rua principal por mais uns 15 minutos, descobrirão um segredo conhecido quase que só pelos canelenses. E terão motivos ainda maiores para ficar de queixo caído.

A apenas um quilômetro de distância da catedral, encontrarão um colosso que não é citado nos guias e mapas turísticos, mas que tem lugar garantido na lista dos lugares mais impressionantes da serra gaúcha, ao lado da cascata do Caracol ou do Vale da Ferradura. A 800 metros de altitude, no ponto mais alto da cidade, cercado de mata cerrada, erguem-se 7 mil metros quadrados de paredes de tijolo ou pedra, de escadarias, de pilares, de túneis e de intermináveis lajes de concreto.

São as ruínas do cassino de Canela.

o projeto do Palace Hotel, que teria cassino, restaurante, lojas, cinema e salão de eventos. Na foto  acima, o espaço onde, ironicamente, haveria um jardim de inverno

Há, na cidade, um homem que se emociona e verte lágrimas ao percorrer os salões e patamares dessa gigantesca construção inacabada:

– Isso aqui são labirintos, túneis antigos,

parados há 70 anos. E... é a minha vida. Não é nem bom lembrar. Quando vejo isto aqui, sinto tristeza, sinto mágoa – desabafa o construtor Wilton Rinaldo Dieterich, conhecido em Canela como Nego Velho, 72 anos.

As ruínas são para ele como uma ferida aberta, a lembrar a história do que poderia ter sido. Representam uma vida que ele não teve e que só lhe resta imaginar. São o fóssil de um projeto que não apenas deu em nada, como ainda abalou seriamente os negócios da família.

Quem o concebeu foi o pai de Nego Velho, Willibaldi Rinaldo Dieterich, um empreendedor que começou derrubando árvores e chegou a ser dono de 8% do território de Canela, incluindo o atual Parque da Ferradura. Quando a Serra ainda não era o playground turístico dos dias de hoje, Willibaldi entendeu seu potencial e criou loteamentos, um deles de luxo, no qual acolhia os grandes industriais da época, políticos poderosos, banqueiros e até mesmo integrantes da nobreza europeia.

Em 1933, o empresário descortinou uma grande oportunidade. O presidente Getúlio Vargas decidira legalizar o jogo no Brasil, inaugurando uma era de ouro para os cassinos. Willibaldi obteve concessão para explorar a atividade e colocou em andamento um plano ambicioso, a construção de um hotel-cassino na Serra, que seria o primeiro a funcionar no Rio Grande do Sul, no centro de um loteamento de alto padrão.

Canela consistia então em um acanhado e remoto distrito de Taquara, mas os planos de Willibaldi eram grandiosos. Encontrou no médico Pedro Sander um sócio minoritário, arregimentou arquitetos e engenheiros alemães e delineou um complexo de 12 mil metros quadrados de área construída (dimensões da Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre), espalhados em pavimentos acima e abaixo da terra. O elemento mais marcante era uma laje de formato elíptico, com 112 metros de comprimento, onde ficariam os salões com as mesas de roleta e bacará.

Haveria ainda dois subsolos, com instalações de retaguarda, como cozinha e despensa. Também constavam dos planos restaurante, bares, lojas, cinema, salão de eventos e um jardim de inverno, com 330 metros quadrados. Para cima da laje, emergiria uma torre retangular – um hotel com quase 200 quartos. Uma escadaria majestosa levaria ao acesso principal, um hall ornamentado de arcos. A construção teve início por volta de 1939 e contou com aclamado Theo Wiederspahn como mestre de obras (consta que o arquiteto alemão, responsável por alguns dos prédios mais emblemáticos de Porto Alegre, transferiu-se para a Serra após o início da II Guerra Mundial, quando pessoas de origem germânica passaram a sofrer perseguições).

– Seria uma coisa grandiosa, a maior obra do Brasil. Meu pai enxergava longe, imaginava shows e eventos que agradassem a todos os gostos. Não seria simplesmente um cassino caça-níqueis, mas um hotel em que os hóspedes encontrariam atrações para todos os gostos. Se a esposa não gostasse de jogo, iria para o desfile de moda. Os filhos pequenos, para o circo. Os adolescentes, para a boate. Tudo dentro do conglomerado. Muitos anos depois, tive oportunidade de conhecer cassinos pelo mundo afora e fui encontrar hotéis que eram exatamente a ideia do meu pai. Acho que ele era um visionário. Ele acreditava que aquilo era o futuro de Canela – afirma Nego Velho.

Wilton Dieterich, o Nego Velho, no inacabado pórtico de entrada do Palace Hotel: “Quando vejo isto aqui, sinto tristeza, sinto mágoa”

Desse sonho grandioso, restaram as ruínas. A ampla escadaria ainda está lá, à beira da via, conduzindo a um patamar onde se erguem quatro grossos pilares, erguidos para suportar um teto que não existe. De ambos os lados dos degraus, projetam-se túneis que levam ao interior da construção, aos salões amplos, espalhados por diferentes andares, cada vez mais escuros e úmidos à medida que se desce. Em cima fica a laje principal, sobre as quais se assentam paredes repletas de aberturas para portas e janelas. Há pichações por todos os lados, e a vegetação tomou conta de muita coisa. Bem no coração do edifício, no quadrilátero projetado para ser o jardim de inverno, uma mata frondosa cresceu, com árvores de porte rasgando o prédio desde o subsolo até os andares superiores.

 

A REVIRAVOLTA QUE  CONDENOU A OBRA

 

Não espanta que tal local, por mais impressionante que seja, não apareça listado entre as atrações de Canela. Noivos, debutantes e aspirantes a modelo utilizam as ruínas como cenário para sessões de fotos, mas o espaço envolve variados perigos. Em 2005, o turista norte-americano Thomas Paul Schutter, de 57 anos, resolveu visitar os restos do cassino com sua família e, ao procurar a melhor posição para uma foto do grupo, despencou em um vão, bateu a cabeça em uma escada de concreto e morreu. Deixou a mulher, uma brasileira, três enteados e dois filhos.

Os profundos buracos, que serviriam de poço para elevadores, bem como as escadas sem corrimão, não são os únicos riscos.

– Os turistas vêm, mas se aconselha que não visitem sozinhos. Isto aqui fica atirado. Há bêbados, drogados, gente que se refugia aqui. Quer lugar mais próprio para assaltarem, estuprarem alguém? E os caras que estão aqui conhecem todas as tocas. Tu não sabes de que lado vão te atacar – alerta Nego Velho.

De que maneira aquilo que deveria ter se transformado em um glamoroso hotel-cassino, frequentado pela sociedade mais abastada, transformou-se nessa monumental e algo assustadora ruína? Olhando para o início de tudo, nada parecia anunciar este fim.

Para tirar o megaprojeto do papel, Willibaldi conseguiu um financiamento da Caixa Econômica Federal destinado a empreendimentos do gênero. Além disso, como já dispunha da concessão, abriu um cassino em caráter temporário no centro da cidade, de forma que as receitas da jogatina ajudassem a bancar os custos da obra. Na época, havia um único hotel na localidade, e o empresário ainda se deu ao luxo de construir um outro, um pavilhão de madeira com cerca de 40 unidades, para abrigar os mais graduados dos cerca de 80 funcionários envolvidos na construção do cassino (o Palace Hotel, que funcionaria até os anos 1960).

Aos poucos, o complexo foi ganhando forma no alto da colina. Durante cerca de seis anos, os operários construíram os subsolos, o pórtico, a escadaria, o jardim de inverno e as extensas lajes. Também ergueram as primeiras paredes do que deveria ser o hotel. A expectativa era de que, em mais dois ou três anos, por volta de 1948, estivesse tudo pronto para a inauguração.

Então ocorreu a reviravolta que explica a transição direta do cassino da condição de obra para a de ruína. Considerando “que a repressão aos jogos de azar é um imperativo da consciência universal”, “que a tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro é contrária à prática e à exploração de jogos de azar” e que “decorreram abusos nocivos à moral e aos bons costumes”, o presidente Eurico Gaspar Dutra baixou, em 30 de abril de 1946, o decreto-lei 9.215, que proibia os cassinos no Brasil.

Foi uma decisão repentina, atribuída à insistência da primeira-dama, Carmela Dutra, uma católica fervorosa que teria ficado escandalizada após a publicação, pelo jornal O Globo, de uma reportagem sobre “as fábricas do vício e do crime”, como eram descritos os estabelecimentos.

Da noite para o dia, cassinos famosos como o da Urca, o de Araxá e o Quitandinha tiveram suas portas lacradas. Em Canela, o estabelecimento precário que Willibaldi mantinha no centro da cidade também foi forçado a fechar.

Mas, dadas as circunstâncias, esse era um problema secundário. O verdadeiro drama dizia respeito à construção que sorvia investimentos pesados havia anos, e que agora perdia seu propósito. Willibaldi decidiu-se pela interrupção das obras.

Nascido em março de 1945, Nego Velho era um bebê de um ano no momento em que o jogo foi proibido no Brasil. Quando ganhou consciência de si, o cassino de Canela já era apenas um esqueleto abandonado bem em frente à casa da família. Mesmo assim, estão em carne viva as memórias do que significou o fim do sonho de Willibaldi.

–  Foi sem aviso prévio, foi uma surpresa, um caos para a família. A derrocada do meu pai começou com o cassino. Imagina um empresário que tinha tudo, fazendas, loteamentos. E dali a pouco cortam as pernas dele. O agente financiador não perdoa, quer o dinheiro, e meu pai teve de entregar oito quarteirões, cada um com 20, 30 lotes, para quitar o débito que tinha com a Caixa. E depois vieram as ações trabalhistas, de uns 80 empregados, que meu pai não tinha como indenizar. Ele teve de aguentar processos, advogados, brigas. Foi tachado de campeão das ações trabalhistas. Ficou completamente abalado – relata o filho.

A carcaça do sonho, no entanto, persistiu nas mãos da família. Nego Velho cresceu ao pé das ruínas, e muitas das suas melhores lembranças de infância remetem para lá, para os corredores sem fim, para as salas secretas, para os esconderijos. Era na construção inacabada que ele brincava com os amigos, imaginando as aventuras mais loucas, organizando guerras de funda, apostando corridas de bicicleta ao redor da laje.

Em uma tarde de dezembro, em 1950, o menino testemunhou algo espantoso. Um avião Douglas, da companhia aérea Real, que partira de Porto Alegre para o Rio de Janeiro, teve problemas depois da decolagem e necessitou fazer um pouso de emergência quando sobrevoava a região da Serra. A alternativa mais viável era a pista de pouso precária que Willibaldi havia aberto no seu complexo, já que alguns dos abonados condôminos do loteamento vinham a Canela em avionetas particulares. Nego Velho viu a aeronave pousar de barriga na faixa de terra. Graças à pista construída pelo pai, 22 vidas foram salvas.

– Quando aconteceu a pane, disseram: “Olha, em Canela o senhor Willibaldi tem um campo de pouso, mas é para aviões de pequeno porte”. Acontece que eles não tinham outro recurso. Nós estávamos jogando bola quando passou aquele monstro já rasante, porque a pista tinha menos de mil metros. Desceu sem o trem de pouso, porque com o trem ia passar da pista e explodir. Foi uma perfeição. Ninguém se machucou – relata Nego Velho.

Espaço degradado oferece riscos de acidente a visitantes, mas um grupo trabalha para sua revitalização

UM PROJETO DE TRANSFORMAÇÃO

 

Até morrer, em 1988, aos 84 anos, Willibaldi manteve esperanças de reviver o projeto abandonado. Na década de 1960, ele chegou a vender 51% da empresa, acreditando que os sócios retomariam a obra, convertendo as ruínas em um hotel cinco estrelas, mas os anos se passaram sem que nada acontecesse. Desgostoso, acabou por desfazer o negócio.

Depois que o pai morreu, foi Nego Velho quem acalentou expectativas de recuperar o sonho. Em 1993, ele se engajou ativamente em uma campanha para tornar o jogo novamente legal no Brasil, apoiando um projeto de lei nesse sentido. Percorreu o país acompanhado de prefeitos de cidades turísticas, levantou recursos com empresários interessados, trouxe ao Brasil magnatas dos cassinos de

Las Vegas, participou de caravanas a Brasília e chegou a encontrar-se com o presidente Fernando Collor de Mello na Casa da Dinda. No encerramento da campanha, políticos e empresários de peso reuniram-se para uma foto diante das ruínas de Canela. No fim, o esforço resultou em nada.

Nego Velho e os irmãos decidiram se desfazer das ruínas no ano 2000. Para saldar dívidas acumuladas, entregaram à prefeitura o cassino e a área de 4,5 hectares ao redor.

– Aquilo tinha se tornado um elefante branco para nós. Passei à prefeitura para poder tocar nossa vida em frente – justifica.

No entorno, segue como legado dos Dieterich o loteamento Palace Hotel, onde uma das casas pertence, desde 1956, à família do fotógrafo Fernando Bueno. Em menino, também ele cresceu junto às ruínas e lá costumava brincar. Acredita que aquele espaço de aventuras e mistério foi fundamental para que desenvolvesse o imaginário criativo, o interesse pela preservação da memória e a curiosidade.

Durante os últimos 15 anos, Bueno envolveu-se na organização do Canela Foto Workshops, um dos eventos de fotografia mais antigos do país. Em 2011, inspirado nas lembranças de infância, levou uma das atividades para dentro das ruínas. Quando o resultado foi exibido, o prefeito da cidade, Constantino Orsolin, compareceu.

– Então nós colocamos que o cassino, por fazer parte da história de Canela, merecia um projeto condizente com a área – relembra Bueno.

O prefeito desafiou o grupo a apresentar uma proposta para reaproveitamento do local, o que redundou na sugestão de criar um centro de referência em fotografia. Diante do sinal verde da administração, os fotógrafos convidaram o escritório de Ismael Solé para desenvolver o projeto arquitetônico. A proposta resultante prevê preservar integralmente o que já está construído, encaixando partes modernas à estrutura, o que elevaria a área total edificada a 10 mil metros quadrados. Recuperado e ampliado, o cassino funcionaria como sede do Instituto de Fotografia e Artes Visuais de Canela, uma instituição dotada de cursos técnicos, biblioteca especializada, acervos de imagem, salas de exposição, estúdios, laboratórios, auditório e restaurante.

– Como fotógrafo, me mandaram para vários lugares do mundo, e vi muitas áreas degradadas serem recuperadas para a cultura. E todo mundo que vem ao cassino, pira com o lugar. É um espaço incrível, com uma floresta secundária em volta. A ideia é instalar ali uma escola que, além de ensinar fotografia nos processos digital e analógico, ensinaria também um pensamento crítico. O cerne é a coisa técnica, formando profissionais habilitados à preservação da memória, o que é importante porque o Brasil é um país especialista em perder a memória – observa Bueno.

Para concretizar esse plano, o primeiro passo consiste na aprovação de um projeto de lei que autorize a cedência da área do cassino ao instituto. As engrenagens para que isso acontecesse chegaram a se mover, mas Orsolin deixou a prefeitura no final de 2012 e, na gestão seguinte, os trâmites não andaram muito. Nas eleições de 2016, ele voltou a ser eleito, renovando as esperanças dos responsáveis pelo instituto. Em nota enviada a Zero Hora, a nova administração informou que

“o processo voltou a tramitar neste ano na prefeitura de Canela, através da  Secretaria de Administração, e assim que estiver finalizado será encaminhado para a Câmara de Vereadores para passar pela apreciação dos parlamentares”.

A ideia é ceder as ruínas ao instituto por um período de 30 anos, prorrogável por mais 30 anos.

À eventual cessão do espaço, deverá seguir-se uma fase desafiadora, a captação de recursos para realizar a obra, que não é nada modesta. O comando da operação ficará a cargo do irmão de Fernando Bueno, o jornalista e escritor Eduardo Bueno, eleito presidente do instituto devido à sua identificação com a noção de resgate histórico e à sua capacidade de trânsito em diferentes áreas. Fernando reconhece que vai ser necessário obter ajuda de muita gente, mas está confiante:

– Durante esse tempo todo, não ficamos parados. O projeto foi apresentado na França, nos Estados Unidos, na Rússia, na China, no Japão, em Portugal. É considerado um dos projetos mais importantes em fotografia no mundo. Existe um grande interesse, que é maior fora do que dentro do Brasil.

Enquanto nada disso sai do papel, Nego Velho terá de se conformar em conviver com a presença das ruínas, um fantasma cotidiano a lembrá-lo de tudo o que não aconteceu e a alimentar uma mágoa de décadas:

– Eu sinto essa mágoa porque, com o cassino, Canela não seria o que é hoje, teria se desenvolvido e seria um portento. Nós também não seríamos o que somos. Eu não seria o mesmo. Estaríamos em condições muito diferentes. Não teríamos vendido tudo o que vendemos. Hoje não tenho mais nada. Trabalho aos 72 anos por quê? Por que eu quero? Por que é bonito? Não, porque eu preciso.

Quando penso nisto, sinto tristeza. Minha revolta é muito grande.

Prefeitura de Canela tem projeto de revitalização da área, preservando as ruínas da edificação original e erguendo, no terreno, um prédio que deve sediar o Instituto de Fotografia e Artes Visuais do município

TEXTO

Itamar Melo

itamar.melo@zerohora.com.br

IMAGENS

André Avila

andre.avila@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Ticiano Osório

ticiano.osorio@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

 

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

A história do que poderia ter sido
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A história do que poderia ter sido

Todos os dias, turistas do Brasil inteiro ingressam na zona urbana de Canela, percorrem alguns quarteirões pela avenida principal e se aglomeram diante da famosa Catedral de Pedra, onde estancam boquiabertos e dedicam-se à popular arte de produzir selfies para o Instagram e o Facebook.

A raros deles ocorre a ideia de contornar o templo e descobrir o que há do outro lado, lá para as traseiras da cidade. Caso o façam, percorrendo a pé o prolongamento da rua principal por mais uns 15 minutos, descobrirão um segredo conhecido quase que só pelos canelenses. E terão motivos ainda maiores para ficar de queixo caído.

A apenas um quilômetro de distância da catedral, encontrarão um colosso que não é citado nos guias e mapas turísticos, mas que tem lugar garantido na lista dos lugares mais impressionantes da serra gaúcha, ao lado da cascata do Caracol ou do Vale da Ferradura. A 800 metros de altitude, no ponto mais alto da cidade, cercado de mata cerrada, erguem-se 7 mil metros quadrados de paredes de tijolo ou pedra, de escadarias, de pilares, de túneis e de intermináveis lajes de concreto.

São as ruínas do cassino de Canela.

o projeto do Palace Hotel, que teria cassino, restaurante, lojas, cinema e salão de eventos. Na foto  acima, o espaço onde, ironicamente, haveria um jardim de inverno

Há, na cidade, um homem que se emociona e verte lágrimas ao percorrer os salões e patamares dessa gigantesca construção inacabada:

– Isso aqui são labirintos, túneis antigos,

parados há 70 anos. E... é a minha vida. Não é nem bom lembrar. Quando vejo isto aqui, sinto tristeza, sinto mágoa – desabafa o construtor Wilton Rinaldo Dieterich, conhecido em Canela como Nego Velho, 72 anos.

As ruínas são para ele como uma ferida aberta, a lembrar a história do que poderia ter sido. Representam uma vida que ele não teve e que só lhe resta imaginar. São o fóssil de um projeto que não apenas deu em nada, como ainda abalou seriamente os negócios da família.

Quem o concebeu foi o pai de Nego Velho, Willibaldi Rinaldo Dieterich, um empreendedor que começou derrubando árvores e chegou a ser dono de 8% do território de Canela, incluindo o atual Parque da Ferradura. Quando a Serra ainda não era o playground turístico dos dias de hoje, Willibaldi entendeu seu potencial e criou loteamentos, um deles de luxo, no qual acolhia os grandes industriais da época, políticos poderosos, banqueiros e até mesmo integrantes da nobreza europeia.

Em 1933, o empresário descortinou uma grande oportunidade. O presidente Getúlio Vargas decidira legalizar o jogo no Brasil, inaugurando uma era de ouro para os cassinos. Willibaldi obteve concessão para explorar a atividade e colocou em andamento um plano ambicioso, a construção de um hotel-cassino na Serra, que seria o primeiro a funcionar no Rio Grande do Sul, no centro de um loteamento de alto padrão.

Canela consistia então em um acanhado e remoto distrito de Taquara, mas os planos de Willibaldi eram grandiosos. Encontrou no médico Pedro Sander um sócio minoritário, arregimentou arquitetos e engenheiros alemães e delineou um complexo de 12 mil metros quadrados de área construída (dimensões da Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre), espalhados em pavimentos acima e abaixo da terra. O elemento mais marcante era uma laje de formato elíptico, com 112 metros de comprimento, onde ficariam os salões com as mesas de roleta e bacará.

Haveria ainda dois subsolos, com instalações de retaguarda, como cozinha e despensa. Também constavam dos planos restaurante, bares, lojas, cinema, salão de eventos e um jardim de inverno, com 330 metros quadrados. Para cima da laje, emergiria uma torre retangular – um hotel com quase 200 quartos. Uma escadaria majestosa levaria ao acesso principal, um hall ornamentado de arcos. A construção teve início por volta de 1939 e contou com aclamado Theo Wiederspahn como mestre de obras (consta que o arquiteto alemão, responsável por alguns dos prédios mais emblemáticos de Porto Alegre, transferiu-se para a Serra após o início da II Guerra Mundial, quando pessoas de origem germânica passaram a sofrer perseguições).

– Seria uma coisa grandiosa, a maior obra do Brasil. Meu pai enxergava longe, imaginava shows e eventos que agradassem a todos os gostos. Não seria simplesmente um cassino caça-níqueis, mas um hotel em que os hóspedes encontrariam atrações para todos os gostos. Se a esposa não gostasse de jogo, iria para o desfile de moda. Os filhos pequenos, para o circo. Os adolescentes, para a boate. Tudo dentro do conglomerado. Muitos anos depois, tive oportunidade de conhecer cassinos pelo mundo afora e fui encontrar hotéis que eram exatamente a ideia do meu pai. Acho que ele era um visionário. Ele acreditava que aquilo era o futuro de Canela – afirma Nego Velho.

Wilton Dieterich, o Nego Velho, no inacabado pórtico de entrada do Palace Hotel: “Quando vejo isto aqui, sinto tristeza, sinto mágoa”

Desse sonho grandioso, restaram as ruínas. A ampla escadaria ainda está lá, à beira da via, conduzindo a um patamar onde se erguem quatro grossos pilares, erguidos para suportar um teto que não existe. De ambos os lados dos degraus, projetam-se túneis que levam ao interior da construção, aos salões amplos, espalhados por diferentes andares, cada vez mais escuros e úmidos à medida que se desce. Em cima fica a laje principal, sobre as quais se assentam paredes repletas de aberturas para portas e janelas. Há pichações por todos os lados, e a vegetação tomou conta de muita coisa. Bem no coração do edifício, no quadrilátero projetado para ser o jardim de inverno, uma mata frondosa cresceu, com árvores de porte rasgando o prédio desde o subsolo até os andares superiores.

 

A REVIRAVOLTA QUE

CONDENOU A OBRA

 

Não espanta que tal local, por mais impressionante que seja, não apareça listado entre as atrações de Canela. Noivos, debutantes e aspirantes a modelo utilizam as ruínas como cenário para sessões de fotos, mas o espaço envolve variados perigos. Em 2005, o turista norte-americano Thomas Paul Schutter, de 57 anos, resolveu visitar os restos do cassino com sua família e, ao procurar a melhor posição para uma foto do grupo, despencou em um vão, bateu a cabeça em uma escada de concreto e morreu. Deixou a mulher, uma brasileira, três enteados e dois filhos.

Os profundos buracos, que serviriam de poço para elevadores, bem como as escadas sem corrimão, não são os únicos riscos.

– Os turistas vêm, mas se aconselha que não visitem sozinhos. Isto aqui fica atirado. Há bêbados, drogados, gente que se refugia aqui. Quer lugar mais próprio para assaltarem, estuprarem alguém? E os caras que estão aqui conhecem todas as tocas. Tu não sabes de que lado vão te atacar – alerta Nego Velho.

De que maneira aquilo que deveria ter se transformado em um glamoroso hotel-cassino, frequentado pela sociedade mais abastada, transformou-se nessa monumental e algo assustadora ruína? Olhando para o início de tudo, nada parecia anunciar este fim.

Para tirar o megaprojeto do papel, Willibaldi conseguiu um financiamento da Caixa Econômica Federal destinado a empreendimentos do gênero. Além disso, como já dispunha da concessão, abriu um cassino em caráter temporário no centro da cidade, de forma que as receitas da jogatina ajudassem a bancar os custos da obra. Na época, havia um único hotel na localidade, e o empresário ainda se deu ao luxo de construir um outro, um pavilhão de madeira com cerca de 40 unidades, para abrigar os mais graduados dos cerca de 80 funcionários envolvidos na construção do cassino (o Palace Hotel, que funcionaria até os anos 1960).

Aos poucos, o complexo foi ganhando forma no alto da colina. Durante cerca de seis anos, os operários construíram os subsolos, o pórtico, a escadaria, o jardim de inverno e as extensas lajes. Também ergueram as primeiras paredes do que deveria ser o hotel. A expectativa era de que, em mais dois ou três anos, por volta de 1948, estivesse tudo pronto para a inauguração.

Então ocorreu a reviravolta que explica a transição direta do cassino da condição de obra para a de ruína. Considerando “que a repressão aos jogos de azar é um imperativo da consciência universal”, “que a tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro é contrária à prática e à exploração de jogos de azar” e que “decorreram abusos nocivos à moral e aos bons costumes”, o presidente Eurico Gaspar Dutra baixou, em 30 de abril de 1946, o decreto-lei 9.215, que proibia os cassinos no Brasil.

Foi uma decisão repentina, atribuída à insistência da primeira-dama, Carmela Dutra, uma católica fervorosa que teria ficado escandalizada após a publicação, pelo jornal O Globo, de uma reportagem sobre “as fábricas do vício e do crime”, como eram descritos os estabelecimentos.

Da noite para o dia, cassinos famosos como o da Urca, o de Araxá e o Quitandinha tiveram suas portas lacradas. Em Canela, o estabelecimento precário que Willibaldi mantinha no centro da cidade também foi forçado a fechar.

Mas, dadas as circunstâncias, esse era um problema secundário. O verdadeiro drama dizia respeito à construção que sorvia investimentos pesados havia anos, e que agora perdia seu propósito. Willibaldi decidiu-se pela interrupção das obras.

Nascido em março de 1945, Nego Velho era um bebê de um ano no momento em que o jogo foi proibido no Brasil. Quando ganhou consciência de si, o cassino de Canela já era apenas um esqueleto abandonado bem em frente à casa da família. Mesmo assim, estão em carne viva as memórias do que significou o fim do sonho de Willibaldi.

–  Foi sem aviso prévio, foi uma surpresa, um caos para a família. A derrocada do meu pai começou com o cassino. Imagina um empresário que tinha tudo, fazendas, loteamentos. E dali a pouco cortam as pernas dele. O agente financiador não perdoa, quer o dinheiro, e meu pai teve de entregar oito quarteirões, cada um com 20, 30 lotes, para quitar o débito que tinha com a Caixa. E depois vieram as ações trabalhistas, de uns 80 empregados, que meu pai não tinha como indenizar. Ele teve de aguentar processos, advogados, brigas. Foi tachado de campeão das ações trabalhistas. Ficou completamente abalado – relata o filho.

A carcaça do sonho, no entanto, persistiu nas mãos da família. Nego Velho cresceu ao pé das ruínas, e muitas das suas melhores lembranças de infância remetem para lá, para os corredores sem fim, para as salas secretas, para os esconderijos. Era na construção inacabada que ele brincava com os amigos, imaginando as aventuras mais loucas, organizando guerras de funda, apostando corridas de bicicleta ao redor da laje.

Em uma tarde de dezembro, em 1950, o menino testemunhou algo espantoso. Um avião Douglas, da companhia aérea Real, que partira de Porto Alegre para o Rio de Janeiro, teve problemas depois da decolagem e necessitou fazer um pouso de emergência quando sobrevoava a região da Serra. A alternativa mais viável era a pista de pouso precária que Willibaldi havia aberto no seu complexo, já que alguns dos abonados condôminos do loteamento vinham a Canela em avionetas particulares. Nego Velho viu a aeronave pousar de barriga na faixa de terra. Graças à pista construída pelo pai, 22 vidas foram salvas.

– Quando aconteceu a pane, disseram: “Olha, em Canela o senhor Willibaldi tem um campo de pouso, mas é para aviões de pequeno porte”. Acontece que eles não tinham outro recurso. Nós estávamos jogando bola quando passou aquele monstro já rasante, porque a pista tinha menos de mil metros. Desceu sem o trem de pouso, porque com o trem ia passar da pista e explodir. Foi uma perfeição. Ninguém se machucou – relata Nego Velho.

Espaço degradado oferece riscos de acidente a visitantes, mas um grupo trabalha para sua revitalização

UM PROJETO DE

TRANSFORMAÇÃO

 

Até morrer, em 1988, aos 84 anos, Willibaldi manteve esperanças de reviver o projeto abandonado. Na década de 1960, ele chegou a vender 51% da empresa, acreditando que os sócios retomariam a obra, convertendo as ruínas em um hotel cinco estrelas, mas os anos se passaram sem que nada acontecesse. Desgostoso, acabou por desfazer o negócio.

Depois que o pai morreu, foi Nego Velho quem acalentou expectativas de recuperar o sonho. Em 1993, ele se engajou ativamente em uma campanha para tornar o jogo novamente legal no Brasil, apoiando um projeto de lei nesse sentido. Percorreu o país acompanhado de prefeitos de cidades turísticas, levantou recursos com empresários interessados, trouxe ao Brasil magnatas dos cassinos de

Las Vegas, participou de caravanas a Brasília e chegou a encontrar-se com o presidente Fernando Collor de Mello na Casa da Dinda. No encerramento da campanha, políticos e empresários de peso reuniram-se para uma foto diante das ruínas de Canela. No fim, o esforço resultou em nada.

Nego Velho e os irmãos decidiram se desfazer das ruínas no ano 2000. Para saldar dívidas acumuladas, entregaram à prefeitura o cassino e a área de 4,5 hectares ao redor.

– Aquilo tinha se tornado um elefante branco para nós. Passei à prefeitura para poder tocar nossa vida em frente – justifica.

No entorno, segue como legado dos Dieterich o loteamento Palace Hotel, onde uma das casas pertence, desde 1956, à família do fotógrafo Fernando Bueno. Em menino, também ele cresceu junto às ruínas e lá costumava brincar. Acredita que aquele espaço de aventuras e mistério foi fundamental para que desenvolvesse o imaginário criativo, o interesse pela preservação da memória e a curiosidade.

Durante os últimos 15 anos, Bueno envolveu-se na organização do Canela Foto Workshops, um dos eventos de fotografia mais antigos do país. Em 2011, inspirado nas lembranças de infância, levou uma das atividades para dentro das ruínas. Quando o resultado foi exibido, o prefeito da cidade, Constantino Orsolin, compareceu.

– Então nós colocamos que o cassino, por fazer parte da história de Canela, merecia um projeto condizente com a área – relembra Bueno.

O prefeito desafiou o grupo a apresentar uma proposta para reaproveitamento do local, o que redundou na sugestão de criar um centro de referência em fotografia. Diante do sinal verde da administração, os fotógrafos convidaram o escritório de Ismael Solé para desenvolver o projeto arquitetônico. A proposta resultante prevê preservar integralmente o que já está construído, encaixando partes modernas à estrutura, o que elevaria a área total edificada a 10 mil metros quadrados. Recuperado e ampliado, o cassino funcionaria como sede do Instituto de Fotografia e Artes Visuais de Canela, uma instituição dotada de cursos técnicos, biblioteca especializada, acervos de imagem, salas de exposição, estúdios, laboratórios, auditório e restaurante.

– Como fotógrafo, me mandaram para vários lugares do mundo, e vi muitas áreas degradadas serem recuperadas para a cultura. E todo mundo que vem ao cassino, pira com o lugar. É um espaço incrível, com uma floresta secundária em volta. A ideia é instalar ali uma escola que, além de ensinar fotografia nos processos digital e analógico, ensinaria também um pensamento crítico. O cerne é a coisa técnica, formando profissionais habilitados à preservação da memória, o que é importante porque o Brasil é um país especialista em perder a memória – observa Bueno.

Para concretizar esse plano, o primeiro passo consiste na aprovação de um projeto de lei que autorize a cedência da área do cassino ao instituto. As engrenagens para que isso acontecesse chegaram a se mover, mas Orsolin deixou a prefeitura no final de 2012 e, na gestão seguinte, os trâmites não andaram muito. Nas eleições de 2016, ele voltou a ser eleito, renovando as esperanças dos responsáveis pelo instituto. Em nota enviada a Zero Hora, a nova administração informou que  “o processo voltou a tramitar neste ano na prefeitura de Canela, através da  Secretaria de Administração, e assim que estiver finalizado será encaminhado para a Câmara de Vereadores para passar pela apreciação dos parlamentares”.

A ideia é ceder as ruínas ao instituto por um período de 30 anos, prorrogável por mais 30 anos.

À eventual cessão do espaço, deverá seguir-se uma fase desafiadora, a captação de recursos para realizar a obra, que não é nada modesta. O comando da operação ficará a cargo do irmão de Fernando Bueno, o jornalista e escritor Eduardo Bueno, eleito presidente do instituto devido à sua identificação com a noção de resgate histórico e à sua capacidade de trânsito em diferentes áreas. Fernando reconhece que vai ser necessário obter ajuda de muita gente, mas está confiante:

– Durante esse tempo todo, não ficamos parados. O projeto foi apresentado na França, nos Estados Unidos, na Rússia, na China, no Japão, em Portugal. É considerado um dos projetos mais importantes em fotografia no mundo. Existe um grande interesse, que é maior fora do que dentro do Brasil.

Enquanto nada disso sai do papel, Nego Velho terá de se conformar em conviver com a presença das ruínas, um fantasma cotidiano a lembrá-lo de tudo o que não aconteceu e a alimentar uma mágoa de décadas:

– Eu sinto essa mágoa porque, com o cassino, Canela não seria o que é hoje, teria se desenvolvido e seria um portento. Nós também não seríamos o que somos. Eu não seria o mesmo. Estaríamos em condições muito diferentes. Não teríamos vendido tudo o que vendemos. Hoje não tenho mais nada. Trabalho aos 72 anos por quê? Por que eu quero? Por que é bonito? Não, porque eu preciso.

Quando penso nisto, sinto tristeza. Minha revolta é muito grande.

Prefeitura de Canela tem projeto de revitalização da área, preservando as ruínas da edificação original e erguendo, no terreno, um prédio que deve sediar o Instituto de Fotografia e Artes Visuais do município