Pérolas
dos porcos
{

O  veterinário Hiran Kunert mantém em Cachoeira do Sul o Museu do Suíno, composto por 30 mil itens, entre miniaturas, cartazes, bandeiras, filmes e outros objetos que evidenciam as 1.001 utilidades do animal. Tem até uma versão kama sutra

osso trazer minha coleção de porquinhos?”

A questão foi apresentada 15 anos atrás pelo veterinário Hiran Kunert, quando ele

se mudou para Cachoeira do Sul, para a casa da nova mulher, Sandra Pfüller.

– Claro que sim. Vai lá e busca – aquiesceu ela.

Dias depois, Sandra tomou um susto ao ver um caminhão estacionar diante da residência e descarregar caixas e mais caixas abarrotadas, que lotaram um salão de 50 metros quadrados. Descobriu que havia casado com o maior colecionador de porquinhos do mundo.

Essa coleção, hoje composta por 7,8 mil miniaturas originárias de mais de cem países, bem como outras 22 mil peças relacionadas às múltiplas facetas do universo porcino, forma o acervo de uma das mais peculiares instituições culturais do nosso Estado – e, por que não dizer, do próprio país: o Museu do Suíno.

Por exemplo: um dia, de passagem por Paraí, no nordeste gaúcho, Hiran reparou que o brasão na bandeira do município ostentava bem ao centro, com todo o destaque, um rechonchudo leitão branco, de rabinho encaracolado. Foi o que bastou para que se lançasse a um frenético levantamento suíno-iconográfico nas flâmulas rio-grandenses. Examinou uma por uma as bandeiras de todos os 497 municípios. E descobriu algo que até então havia passado despercebido por 11 milhões de gaúchos: a existência de nada menos do que

74 cidades que acharam por bem estampar um porco em seu lábaro  – o equivalente a 15% do total.

Ao custo de R$ 75 a unidade, Hiran encomendou um exemplar de cada bandeira. Hoje, elas podem ser devidamente apreciadas no museu que ele montou em Cachoeira do Sul.

–  A minha preferida é a de Cândido Godói. É a mais bonita. Tem o maior porco de todas – elogia o veterinário, que no momento faz levantamento similar nos estandartes de nossos vizinhos catarinenses.

Em espaço nobre entre as 30 mil peças espalhadas pelos 220 metros quadrados do museu, protegido por uma redoma de vidro, Hiran mantém o seu porquinho número 1 – o equivalente, para ele, à célebre primeira moedinha do Tio Patinhas.

A peça em questão, descrita pelo proprietário como “a coisa mais lindinha”, é um porco de porcelana, com livros debaixo do braço e a inscrição “Made in Uruguay” na base. Foi presente de uma tia que viajou a Montevidéu em 1975.

Na época, Hiran estava no segundo ano do curso de Veterinária da UFRGS e não tinha interesse pelo simpático mamífero da família dos suídeos. Pensava em trabalhar com gado de corte, inclusive. A reveladora luz desceu sobre ele na forma da disciplina de suinocultura, ministrada pelo professor Sérgio Nicolaiewsky – guru máximo, que hoje dá nome a uma das salas do museu. Naquele semestre, o jovem universitário caiu de amores pela gorducha espécie. Resolveu consagrar a vida a ela.

 

"P

Feito de porcelana, o porquinho número 1 foi um presente dado por uma tia, trazido de Montevidéu em 1975

Hoje com 63 anos, Hiran orgulha-se de ter atrás de si uma trajetória de quatro décadas dedicadas à suinocultura – e à garimpagem de todo e qualquer objeto relacionado com o assunto. Ele confessa, aliás, que quase tudo o que ganhou com uma atividade, gastou na outra. No dia a dia, costuma vasculhar o recôndito de sites como o Mercado Livre, arrematando peças curiosas e antiguidades. Também mantém “olheiros” no Brasil e no Exterior – incluindo um sujeito que atua no Extremo Oriente, peneirando os bazares da Tailândia e de Hong Kong –, encarregados de aproveitar em seu nome as melhores oportunidades de compra.

Além disso, nas viagens de trabalho e lazer mundo afora, Hiran sempre dedicou tempo a fuçar o comércio local. Chegou a desenvolver a habilidade ímpar e quase sobrenatural de, diante de uma vitrine com centenas de bugigangas e quinquilharias, identificar instantaneamente o porquinho meio escondido em um canto. Mas loucura mesmo ele vivia na World Pork Expo, a descomunal feira

de suínos realizada em Iowa (EUA), com mais de 500 expositores apenas no setor de artesanato.

Em uma dessas ocasiões na feira norte-americana, despendeu no evento cerca de

US$ 1,5 mil em miniaturas. Só parou a gastança quando o limite do cartão de crédito estourou:

– Eu era compulsivo. Sempre procurando, procurando. Estava na Alemanha, nos Estados Unidos, em qualquer lugar, sempre pensando em porquinho. Gastava muito. Agora estou mais controlado. As pessoas perguntam quanto gastei no museu, mas não me atrevo a dizer. Não quero nem pensar. Tem bastante dinheiro aqui. Afinal, são 40 anos. Não bebi, não fumei, nunca fiz nada de errado fora do casamento. A família veio sempre em primeiro lugar, mas quando sobrava um pila, eu botava aqui.

Só na reforma do imóvel que abriga o museu – um prédio doado pelo sogro, nos fundos da propriedade da família –, o veterinário investiu R$ 100 mil. Dotou as salas de potentes aparelhos de ar-condicionado, constantemente em operação, para assegurar as condições de umidade e temperatura perfeitas para a conservação do tesouro. Grande parte do acervo permanece no interior de armários envidraçados, ao abrigo do pó. Antes de ocupar seu nicho, cada peça foi limpa laboriosamente, madrugadas adentro, pelas mãos de Sandra, num processo que se estendeu por meses. No museu, não há espaço para porquice.

No princípio, Sandra costumava reclamar dos exagerados gastos museológicos do marido, mas as longas noites de limpeza e cadastro do acervo serviram para que também se apaixonasse pelo mimoso animal dotado de saborosos lombos. Tornou-se uma estimuladora de novas aquisições.

E aprendeu tanto sobre o bicho que, por vezes, serve como guia para os visitantes.

– A gente vai tendo histórias com os porquinhos, vai se apegando – justifica ela.

As visitas precisam ser agendadas, porque Hiran faz questão de se preparar e de estar disponível para explicar até o menor dos pormenores. Dependendo do interesse da pessoa, a incursão pelas cinco salas pode se estender por três, quatro horas.

O guia começa o périplo pela ala das miniaturas, pejada de porcos feitos de pelúcia, metal, vidro soprado, resina, sementes exóticas, pedras preciosas, palha de milho, porcelana, vime, tricô, cerâmica, argila, chifre de búfalo tailandês, pano, cristal Swarovsky, cristal de Murano, madeiras raras, madrepérola, giz de cera, ouro e até bombril. Há por ali cofrinhos, artigos de cozinha, cinzeiros, relógios, licoreiras, brincos, pingentes, instrumentos musicais, apetrechos para banheiro, chaveiros, brinquedos, material escolar, caixinhas de música, ímãs de geladeira e assim por diante. Nesse setor, a estante que faz mais sucesso é aquela dedicada ao que Hiran define como o “kama sutra suíno”. Trata-se de uma espetacular e fornida coleção de porcos e porcas em miniatura dedicados a levar a cabo grossa ribaldaria, em posições das mais sugestivas.

– Vieram uma velhinhas visitar o museu e enlouqueceram. Elas diziam: “Que saudade! Há quanto tempo não faço isso!” – relata Hiran.

A escala seguinte é a sala sobre origem, evolução e domesticação da espécie. Ali, em lugar de honra, pende da parede uma foto margeada por passe-partout e emoldurada em negro, retratando um homem todo de branco, agachado junto a um porco. O indivíduo segura um prolongado bastão, de 30 ou 40 centímetros de comprimento, cuja extremidade oposta perde-se entre as pernas traseiras do animal.

Um olhar mais atento revela que o homem é o próprio Hiran. E, sim, o que ele tem em mãos é nada mais, nada menos, do que o impávido colosso do bem-dotado suíno. A imagem, de 1980, é uma reminiscência dos longos anos dedicados pelo veterinário à inseminação artificial, técnica da qual foi um dos pioneiros no Brasil. Ela documenta o momento em que ele pratica a nem sempre devidamente valorizada arte da coleta de sêmen.

Posicionado diante da foto, Hiran explica, com indisfarçável admiração, que os machos suínos são do tipo que perde estribeiras diante de uma fêmea jeitosa e que sabem aproveitar o momento.

– O suíno fica em orgasmo durante cinco minutos, o que é o sonho de todo homem. Em média, ejacula de 400 a 500ml. É um copo cheio – sublinha.

Na sequência, depois de exibir um crânio importado da Alemanha por R$ 1,8 mil e de apresentar uma variedade de objetos de antanho garimpados em granjas Brasil afora (mossadores para marcar orelhas, canivetes de castração, desbastadores de dentes, alicates para corte da cauda), o veterinário dá continuidade à odisseia suinófila adentrando um recanto reservado ao tema do abate e da industrialização da carne. Pois o amor incondicional de Hiran pelo porco não exclui um amor também incondicional pelos quitutes culinários que ele é pródigo em proporcionar.

– Criamos o porco, mas o objetivo é abater. Gerar comida – diz o homem, sem rodeios.

Essa parte do museu enfoca não só o abate industrial, mas também as tradicionais e barulhentas matanças coloniais, o que dá azo à exposição de uma pletora de objetos capazes de despertar a nostalgia em muitos gaúchos criados, como se costuma dizer, para fora. Há vetustas embutidoras manuais para fazer linguiça, centenárias prensas de madeira para separar o torresmo da banha, ferramentas para matar, cortar carne e quebrar ossos, bem como lanhadas mesas ancestrais onde incalculáveis porcos foram esquartejados a fim

de virar salame, pernil e costeletas.

Um canto especial, quase um santuário, é voltado ao ouro branco – em outras palavras, à banha. Porque uma coisa que se aprende no museu é que a história porcina pode ser dividida em duas: a era em que a banha valia ouro e a era em que a banha valia nada. Nos velhos tempos, as varas eram criadas para gerar o máximo possível de gordura, usada como óleo de fritura e principalmente como um meio de preservação de alimentos, insubstituível em uma época pré-geladeira e na qual a única coisa parecida com tomadas elétricas era mesmo o focinho do porco. Nesses anos heroicos, um naco de carne frita submerso em banha durava meses, fornecendo proteína para variadas refeições. Esse era o tempo em que se socava goela abaixo dos porcos todo tipo de – com o perdão da palavra – porcaria, para que eles ultrapassassem os 400 quilos, 50% dos quais formados de banha. Dessa era, Hiran exibe barricas para acondicionar o valioso produto e incrementadas latas e embalagens de madeira onde ele era vendido.

– A banha era conhecida como ouro branco, porque quem tinha banha tinha dinheiro. Banha representava riqueza e prosperidade – ensina.

Vieram os anos 1960 e, com eles, o estrelato dos Beatles, dos Rolling Stones e do óleo de soja. Como aconteceu com velhos boleros, a banha passou a ser encarada com desprezo e suspeição. Começou a valer menos do que as embalagens em que era vendida. Foi quando a indústria viu-se forçada a reposicionar sua marca. Em lugar do porco-banha, começou a falar em suíno – uma espécie de porco-fitness. A carne tornou-se o foco.

É por causa disso que os espécimes criados hoje são esguios, são giseles-bundchens, se comparados com seus pais e avós. Eles vão para o abate com cem, 110 quilos, e nem 5% disso é gordura. Hiran vê essa mudança com algum azedume. Ele entende que a banha, além de proporcionar sabores mais apetecíveis, é melhor para a saúde do que os óleos vegetais:

– Fizeram tanto esse discurso de que a gordura faz mal, que acabaram tirando a gordura do animal. O lombo hoje é uma carne seca, sem sabor!

E então, mudando o tom de voz e assumindo um ar de confidência, fornece a dica de connoisseur:

– O melhor corte de carne suína hoje em dia é a nuca, que também chamam de sobrepaleta no supermercado. Não peguem o lombo! Peguem a nuca!  Ela é a continuação do lombo, aquela parte que o italiano usa para

fazer a copa. Uma carne bonita, com gordura entremeada. É dos deuses!

Com a migração de interesse da banha para a carne, o panorama nas granjas comerciais sofreu uma revolução. Hiran mandou fazer a maquete de uma delas, para mostrar que se trata de estabelecimentos impecáveis e esterilizados – os bácoros são tão asseados, que é aos humanos que cabe tomar uma chuveirada na entrada, para não contaminar os animais. Apesar disso, para certa indignação do veterinário, os porcos continuam a ter sua imagem associada à imundície e a originar apenas substantivos, adjetivos, advérbios e verbos de sentido francamente pejorativo.

Hiran abriu as portas do museu justamente para lavar a honra desse vilipendiado animal. E como tem havido vilipêndio! O veterinário lembra de um primeiro dia de aula, no tempo em que lecionava suinocultura numa universidade catarinense. Diante da turma, perguntou se havia alguém que não apreciasse suínos. Lá no fundo da sala, um jovem levantou o dedo:

– Eu não gosto.

– Por quê? – questionou o professor.

– Porque é um bicho inútil, que não serve para nada – sentenciou.

versão kama sutra

Aquilo doeu em Hiran. Ele vê no episódio uma espécie de embrião do museu. A partir dali, decidiu mergulhar em pesquisas para demonstrar que o suíno merece todo o respeito e percebeu que sua coleção de porquinhos, mantida por hobby, precisava ser disponibilizada como uma oferenda à ilustração e à edificação da humanidade. Hoje, uma das salas do estabelecimento leva o nome do estudante que não gostava de porcos, homenagem a tão profunda fecundação. Ela é dedicada a revelar as mil e uma utilidades suínas de que nem suspeitamos.

– Todo mundo conhece salame, pernil, mortadela, mas não imagina que no dia a dia usa talvez 10 ou 12 produtos que vêm do suíno. Se tu escovas os dentes, na pasta tem gelatina de origem suína. Se acende um cigarro, o filtro é feito de células hemácias do porco. Se calçar um sapato ou usar uma bolsa, provavelmente o couro será de porco. Se pintar a casa, as cerdas do pincel serão feitas do pelo do animal. Um objetivo do museu, talvez o principal, é acabar com esse mito de que o suíno é um animal sujo, que não serve pra nada, que só transmite doenças – professa Hiran.

Nessa cruzada, ele reuniu um potente arsenal de itens, representativos das 187 utilidades que uma pesquisadora dinamarquesa elencou (“Eu adoro essa mulher”, derrama-se). A gelatina, por exemplo, é amplamente usada pela indústria como espessante e estabilizante. Está nos produtos lácteos, nos achocolatados, nas barrinhas  de cereal, nos sorvetes, nas cápsulas de remédio, em toda a linha de cosméticos, na cabeça dos palitos de fósforo e no sabão em pó. Também é usada nos processo de fabrico da cerveja, do vinho e de sucos.

O acervo do museu conta ainda com uma série de medicamentos que são produzidos a partir dos animais, a começar pela insulina, passando por um anticoagulante feito da mucosa do estômago do porco e de uma droga obtida do óleo do pulmão suíno, responsável por aumentar a chance de sobrevivência de bebês muito prematuros. Há também uma válvula cardíaca suína, para lembrar que existem humanos vivendo há décadas com uma delas implantada no peito. É o porco salvando vidas.

– Eu amo esses animaizinhos. Entro no museu e sinto uma energia tão boa, tão gostosa. Se tu olhares para os porquinhos, vais ver que eles estão sempre rindo, sempre alegres, brincando. O museu é a forma que encontrei de elevar esse animal. É um animal que produz tanto para o ser humano, e que é tão injustiçado! Se as pessoas soubessem metade do que o suíno produz, não continuariam a falar mal dele. Fariam uma estátua do porco em praça pública – perora Hiran.

O veterinário almeja que o Museu do Suíno seja conhecido, visitado, comentado. Que mude a cabeça das pessoas. Sequer se importa que os R$ 5 requisitados a título de ingresso não cubram os gastos de manutenção. Ele está obtendo certo sucesso na empreitada. Apenas no ano passado, foram mais de 1,5 mil os visitantes.

Mas Hiran também sente uma angústia. Tem sido assaltado por dúvidas e inquietudes. Ele acredita que ainda vai viver 15, 20 anos. Mas é aí que a porca torce o rabo. Depois que ele se for, quem vai dar continuidade ao seu projeto de vida? Quem vai manter o museu? Quem vai propagar o evangelho suíno? E se tudo for para a banha?

Sua esperança é um dos filhos, também veterinário. Já o sondou algumas vezes a respeito do assunto, mas ele desconversou.

Está mais interessado em galinhas.

 

ONDE FICA

O Museu do Suíno está localizado na Rua Miguel Loreto Sobrinho, 420, no Distrito Industrial de Cachoeira do Sul. As visitas devem ser agendadas. Outras informações em museudosuino.org.

TEXTO

Itamar Melo

itamar.melo@zerohora.com.br

IMAGENS

Carlos Macedo

carlos.macedo@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Ticiano Osório

ticiano.osorio@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

 

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

Pérolas
dos porcos
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Pérolas
dos porcos

“Posso trazer minha coleção de porquinhos?”

A questão foi apresentada 15 anos atrás pelo veterinário Hiran Kunert, quando ele

se mudou para Cachoeira do Sul, para a casa da nova mulher, Sandra Pfüller.

– Claro que sim. Vai lá e busca – aquiesceu ela.

Dias depois, Sandra tomou um susto ao ver um caminhão estacionar diante da residência e descarregar caixas e mais caixas abarrotadas, que lotaram um salão de 50 metros quadrados. Descobriu que havia casado com o maior colecionador de porquinhos do mundo.

Essa coleção, hoje composta por 7,8 mil miniaturas originárias de mais de cem países, bem como outras 22 mil peças relacionadas às múltiplas facetas do universo porcino, forma o acervo de uma das mais peculiares instituições culturais do nosso Estado – e, por que não dizer, do próprio país: o Museu do Suíno.

Por exemplo: um dia, de passagem por Paraí, no nordeste gaúcho, Hiran reparou que o brasão na bandeira do município ostentava bem ao centro, com todo o destaque, um rechonchudo leitão branco, de rabinho encaracolado. Foi o que bastou para que se lançasse a um frenético levantamento suíno-iconográfico nas flâmulas rio-grandenses. Examinou uma por uma as bandeiras de todos os 497 municípios. E descobriu algo que até então havia passado despercebido por 11 milhões de gaúchos: a existência de nada menos do que

74 cidades que acharam por bem estampar um porco em seu lábaro  – o equivalente a 15% do total.

Ao custo de R$ 75 a unidade, Hiran encomendou um exemplar de cada bandeira. Hoje, elas podem ser devidamente apreciadas no museu que ele montou em Cachoeira do Sul.

–  A minha preferida é a de Cândido Godói. É a mais bonita. Tem o maior porco de todas – elogia o veterinário, que no momento faz levantamento similar nos estandartes de nossos vizinhos catarinenses.

Em espaço nobre entre as 30 mil peças espalhadas pelos 220 metros quadrados do museu, protegido por uma redoma de vidro, Hiran mantém o seu porquinho número 1 – o equivalente, para ele, à célebre primeira moedinha do Tio Patinhas.

A peça em questão, descrita pelo proprietário como “a coisa mais lindinha”, é um porco de porcelana, com livros debaixo do braço e a inscrição “Made in Uruguay” na base. Foi presente de uma tia que viajou a Montevidéu em 1975.

Na época, Hiran estava no segundo ano do curso de Veterinária da UFRGS e não tinha interesse pelo simpático mamífero da família dos suídeos. Pensava em trabalhar com gado de corte, inclusive. A reveladora luz desceu sobre ele na forma da disciplina de suinocultura, ministrada pelo professor Sérgio Nicolaiewsky – guru máximo, que hoje dá nome a uma das salas do museu. Naquele semestre, o jovem universitário caiu de amores pela gorducha espécie. Resolveu consagrar a vida a ela.

Feito de porcelana, o porquinho número 1 foi um presente dado por uma tia, trazido de Montevidéu em 1975

Hoje com 63 anos, Hiran orgulha-se de ter atrás de si uma trajetória de quatro décadas dedicadas à suinocultura – e à garimpagem de todo e qualquer objeto relacionado com o assunto. Ele confessa, aliás, que quase tudo o que ganhou com uma atividade, gastou na outra. No dia a dia, costuma vasculhar o recôndito de sites como o Mercado Livre, arrematando peças curiosas e antiguidades. Também mantém “olheiros” no Brasil e no Exterior – incluindo um sujeito que atua no Extremo Oriente, peneirando os bazares da Tailândia e de Hong Kong –, encarregados de aproveitar em seu nome as melhores oportunidades de compra.

Além disso, nas viagens de trabalho e lazer mundo afora, Hiran sempre dedicou tempo a fuçar o comércio local. Chegou a desenvolver a habilidade ímpar e quase sobrenatural de, diante de uma vitrine com centenas de bugigangas e quinquilharias, identificar instantaneamente o porquinho meio escondido em um canto. Mas loucura mesmo ele vivia na World Pork Expo, a descomunal feira

de suínos realizada em Iowa (EUA), com mais de 500 expositores apenas no setor de artesanato.

Em uma dessas ocasiões na feira norte-americana, despendeu no evento cerca de

US$ 1,5 mil em miniaturas. Só parou a gastança quando o limite do cartão de crédito estourou:

– Eu era compulsivo. Sempre procurando, procurando. Estava na Alemanha, nos Estados Unidos, em qualquer lugar, sempre pensando em porquinho. Gastava muito. Agora estou mais controlado. As pessoas perguntam quanto gastei no museu, mas não me atrevo a dizer. Não quero nem pensar. Tem bastante dinheiro aqui. Afinal, são 40 anos. Não bebi, não fumei, nunca fiz nada de errado fora do casamento. A família veio sempre em primeiro lugar, mas quando sobrava um pila, eu botava aqui.

Só na reforma do imóvel que abriga o museu – um prédio doado pelo sogro, nos fundos da propriedade da família –, o veterinário investiu R$ 100 mil. Dotou as salas de potentes aparelhos de ar-condicionado, constantemente em operação, para assegurar as condições de umidade e temperatura perfeitas para a conservação do tesouro. Grande parte do acervo permanece no interior de armários envidraçados, ao abrigo do pó. Antes de ocupar seu nicho, cada peça foi limpa laboriosamente, madrugadas adentro, pelas mãos de Sandra, num processo que se estendeu por meses. No museu, não há espaço para porquice.

No princípio, Sandra costumava reclamar dos exagerados gastos museológicos do marido, mas as longas noites de limpeza e cadastro do acervo serviram para que também se apaixonasse pelo mimoso animal dotado de saborosos lombos. Tornou-se uma estimuladora de novas aquisições.

E aprendeu tanto sobre o bicho que, por vezes, serve como guia para os visitantes.

– A gente vai tendo histórias com os porquinhos, vai se apegando – justifica ela.

As visitas precisam ser agendadas, porque Hiran faz questão de se preparar e de estar disponível para explicar até o menor dos pormenores. Dependendo do interesse da pessoa, a incursão pelas cinco salas pode se estender por três, quatro horas.

 

O guia começa o périplo pela ala das miniaturas, pejada de porcos feitos de pelúcia, metal, vidro soprado, resina, sementes exóticas, pedras preciosas, palha de milho, porcelana, vime, tricô, cerâmica, argila, chifre de búfalo tailandês, pano, cristal Swarovsky, cristal de Murano, madeiras raras, madrepérola, giz de cera, ouro e até bombril. Há por ali cofrinhos, artigos de cozinha, cinzeiros, relógios, licoreiras, brincos, pingentes, instrumentos musicais, apetrechos para banheiro, chaveiros, brinquedos, material escolar, caixinhas de música, ímãs de geladeira e assim por diante. Nesse setor, a estante que faz mais sucesso é aquela dedicada ao que Hiran define como o “kama sutra suíno”. Trata-se de uma espetacular e fornida coleção de porcos e porcas em miniatura dedicados a levar a cabo grossa ribaldaria, em posições das mais sugestivas.

– Vieram uma velhinhas visitar o museu e enlouqueceram. Elas diziam: “Que saudade! Há quanto tempo não faço isso!” – relata Hiran.

A escala seguinte é a sala sobre origem, evolução e domesticação da espécie. Ali, em lugar de honra, pende da parede uma foto margeada por passe-partout e emoldurada em negro, retratando um homem todo de branco, agachado junto a um porco. O indivíduo segura um prolongado bastão, de 30 ou 40 centímetros de comprimento, cuja extremidade oposta perde-se entre as pernas traseiras do animal.

Um olhar mais atento revela que o homem é o próprio Hiran. E, sim, o que ele tem em mãos é nada mais, nada menos, do que o impávido colosso do bem-dotado suíno. A imagem, de 1980, é uma reminiscência dos longos anos dedicados pelo veterinário à inseminação artificial, técnica da qual foi um dos pioneiros no Brasil. Ela documenta o momento em que ele pratica a nem sempre devidamente valorizada arte da coleta de sêmen.

Posicionado diante da foto, Hiran explica, com indisfarçável admiração, que os machos suínos são do tipo que perde estribeiras diante de uma fêmea jeitosa e que sabem aproveitar o momento.

– O suíno fica em orgasmo durante cinco minutos, o que é o sonho de todo homem. Em média, ejacula de 400 a 500ml. É um copo cheio – sublinha.

Na sequência, depois de exibir um crânio importado da Alemanha por R$ 1,8 mil e de apresentar uma variedade de objetos de antanho garimpados em granjas Brasil afora (mossadores para marcar orelhas, canivetes de castração, desbastadores de dentes, alicates para corte da cauda), o veterinário dá continuidade à odisseia suinófila adentrando um recanto reservado ao tema do abate e da industrialização da carne. Pois o amor incondicional de Hiran pelo porco não exclui um amor também incondicional pelos quitutes culinários que ele é pródigo em proporcionar.

– Criamos o porco, mas o objetivo é abater. Gerar comida – diz o homem, sem rodeios.

Essa parte do museu enfoca não só o abate industrial, mas também as tradicionais e barulhentas matanças coloniais, o que dá azo à exposição de uma pletora de objetos capazes de despertar a nostalgia em muitos gaúchos criados, como se costuma dizer, para fora. Há vetustas embutidoras manuais para fazer linguiça, centenárias prensas de madeira para separar o torresmo da banha, ferramentas para matar, cortar carne e quebrar ossos, bem como lanhadas mesas ancestrais onde incalculáveis porcos foram esquartejados a fim de virar salame, pernil e costeletas.

Um canto especial, quase um santuário, é voltado ao ouro branco – em outras palavras, à banha. Porque uma coisa que se aprende no museu é que a história porcina pode ser dividida em duas: a era em que a banha valia ouro e a era em que a banha valia nada. Nos velhos tempos, as varas eram criadas para gerar o máximo possível de gordura, usada como óleo de fritura e principalmente como um meio de preservação de alimentos, insubstituível em uma época pré-geladeira e na qual a única coisa parecida com tomadas elétricas era mesmo o focinho do porco. Nesses anos heroicos, um naco de carne frita submerso em banha durava meses, fornecendo proteína para variadas refeições. Esse era o tempo em que se socava goela abaixo dos porcos todo tipo de – com o perdão da palavra – porcaria, para que eles ultrapassassem os 400 quilos, 50% dos quais formados de banha. Dessa era, Hiran exibe barricas para acondicionar o valioso produto e incrementadas latas e embalagens de madeira onde ele era vendido.

– A banha era conhecida como ouro branco, porque quem tinha banha tinha dinheiro. Banha representava riqueza e prosperidade – ensina.

Vieram os anos 1960 e, com eles, o estrelato dos Beatles, dos Rolling Stones e do óleo de soja. Como aconteceu com velhos boleros, a banha passou a ser encarada com desprezo e suspeição. Começou a valer menos do que as embalagens em que era vendida. Foi quando a indústria viu-se forçada a reposicionar sua marca. Em lugar do porco-banha, começou a falar em suíno – uma espécie de porco-fitness. A carne tornou-se o foco.

É por causa disso que os espécimes criados hoje são esguios, são giseles-bundchens, se comparados com seus pais e avós. Eles vão para o abate com cem, 110 quilos, e nem 5% disso é gordura. Hiran vê essa mudança com algum azedume. Ele entende que a banha, além de proporcionar sabores mais apetecíveis, é melhor para a saúde do que os óleos vegetais:

– Fizeram tanto esse discurso de que a gordura faz mal, que acabaram tirando a gordura do animal. O lombo hoje é uma carne seca, sem sabor!

E então, mudando o tom de voz e assumindo um ar de confidência, fornece a dica de connoisseur:

– O melhor corte de carne suína hoje em dia é a nuca, que também chamam de sobrepaleta no supermercado. Não peguem o lombo! Peguem a nuca!  Ela é a continuação do lombo, aquela parte que o italiano usa para

fazer a copa. Uma carne bonita, com gordura entremeada. É dos deuses!

Com a migração de interesse da banha para a carne, o panorama nas granjas comerciais sofreu uma revolução. Hiran mandou fazer a maquete de uma delas, para mostrar que se trata de estabelecimentos impecáveis e esterilizados – os bácoros são tão asseados, que é aos humanos que cabe tomar uma chuveirada na entrada, para não contaminar os animais. Apesar disso, para certa indignação do veterinário, os porcos continuam a ter sua imagem associada à imundície e a originar apenas substantivos, adjetivos, advérbios e verbos de sentido francamente pejorativo.

Hiran abriu as portas do museu justamente para lavar a honra desse vilipendiado animal. E como tem havido vilipêndio! O veterinário lembra de um primeiro dia de aula, no tempo em que lecionava suinocultura numa universidade catarinense. Diante da turma, perguntou se havia alguém que não apreciasse suínos. Lá no fundo da sala, um jovem levantou o dedo:

– Eu não gosto.

– Por quê? – questionou o professor.

– Porque é um bicho inútil, que não serve para nada – sentenciou.

versão kama sutra

Aquilo doeu em Hiran. Ele vê no episódio uma espécie de embrião do museu. A partir dali, decidiu mergulhar em pesquisas para demonstrar que o suíno merece todo o respeito e percebeu que sua coleção de porquinhos, mantida por hobby, precisava ser disponibilizada como uma oferenda à ilustração e à edificação da humanidade. Hoje, uma das salas do estabelecimento leva o nome do estudante que não gostava de porcos, homenagem a tão profunda fecundação. Ela é dedicada a revelar as mil e uma utilidades suínas de que nem suspeitamos.

– Todo mundo conhece salame, pernil, mortadela, mas não imagina que no dia a dia usa talvez 10 ou 12 produtos que vêm do suíno. Se tu escovas os dentes, na pasta tem gelatina de origem suína. Se acende um cigarro, o filtro é feito de células hemácias do porco. Se calçar um sapato ou usar uma bolsa, provavelmente o couro será de porco. Se pintar a casa, as cerdas do pincel serão feitas do pelo do animal. Um objetivo do museu, talvez o principal, é acabar com esse mito de que o suíno é um animal sujo, que não serve pra nada, que só transmite doenças – professa Hiran.

Nessa cruzada, ele reuniu um potente arsenal de itens, representativos das 187 utilidades que uma pesquisadora dinamarquesa elencou (“Eu adoro essa mulher”, derrama-se). A gelatina, por exemplo, é amplamente usada pela indústria como espessante e estabilizante. Está nos produtos lácteos, nos achocolatados, nas barrinhas  de cereal, nos sorvetes, nas cápsulas de remédio, em toda a linha de cosméticos, na cabeça dos palitos de fósforo e no sabão em pó. Também é usada nos processo de fabrico da cerveja, do vinho e de sucos.

O acervo do museu conta ainda com uma série de medicamentos que são produzidos a partir dos animais, a começar pela insulina, passando por um anticoagulante feito da mucosa do estômago do porco e de uma droga obtida do óleo do pulmão suíno, responsável por aumentar a chance de sobrevivência de bebês muito prematuros. Há também uma válvula cardíaca suína, para lembrar que existem humanos vivendo há décadas com uma delas implantada

no peito. É o porco salvando vidas.

– Eu amo esses animaizinhos. Entro no museu e sinto uma energia tão boa, tão gostosa. Se tu olhares para os porquinhos, vais ver que eles estão sempre rindo, sempre alegres, brincando. O museu é a forma que encontrei de elevar esse animal. É um animal que produz tanto para o ser humano, e que é tão injustiçado! Se as pessoas soubessem metade do que o suíno produz, não continuariam a falar mal dele. Fariam uma estátua do porco em praça pública – perora Hiran.

O veterinário almeja que o Museu do Suíno seja conhecido, visitado, comentado. Que mude a cabeça das pessoas. Sequer se importa que os R$ 5 requisitados a título de ingresso não cubram os gastos de manutenção. Ele está obtendo certo sucesso na empreitada. Apenas no ano passado, foram mais de 1,5 mil os visitantes.

Mas Hiran também sente uma angústia. Tem sido assaltado por dúvidas e inquietudes. Ele acredita que ainda vai viver 15, 20 anos. Mas é aí que a porca torce o rabo. Depois que ele se for, quem vai dar continuidade ao seu projeto de vida? Quem vai manter o museu? Quem vai propagar o evangelho suíno? E se tudo for para a banha?

Sua esperança é um dos filhos, também veterinário. Já o sondou algumas vezes a respeito do assunto, mas ele desconversou.

Está mais interessado em galinhas.

 

ONDE FICA

O Museu do Suíno está localizado na Rua Miguel Loreto Sobrinho, 420, no Distrito Industrial de Cachoeira do Sul. As visitas devem ser agendadas. Outras informações em museudosuino.org.