Entre a roça e o face
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Vanderlei Holz Lermen, 26 anos, nunca foi tão longe que não pudesse voltar a tempo de dormir em casa. Mas seus posts, suas fotos e seus vídeos sobre a vida no interior de Boa Vista do Buricá, no noroeste gaúcho, já lhe valeram amigos em quase todo o Brasil e até no Exterior.

V

anderlei já colocou no ar três sites e um aplicativo para vendas online. Transmite diariamente imagens ao vivo enquanto está no estúdio apresentando seu programa de rádio. Publicou um livro de história, tem em vista um e-book de poesias, é pesquisador, faz palestras, presta consultoria e mantém um canal no YouTube. Mas nada lhe dá mais orgulho do que repetir a sequência destas palavras:

– Sou agricultor, antes de qualquer outra coisa.

Vive de papo com gente de todo o país – só falta alguém do Acre, ressalta. Tem amigos na Alemanha, nas Filipinas, namorou uma paulista, uma cearense, uma pernambucana, uma boliviana. Recentemente, teve de criar uma página de “figura pública” no Facebook, já que seu perfil pessoal extrapolou o limite de 5 mil amigos. Cinco mil, aliás, é quase o número de habitantes de Boa Vista do Buricá, município no noroeste do Rio Grande do Sul, onde Vanderlei Holz Lermen nasceu, cresceu e passou todas as noites de seus 26 anos.

– Nunca fui tão longe que não pudesse voltar a tempo de dormir em casa – diz ele.

Os pais bem que o motivaram a ir para a cidade. Lá, ele poderia fazer algum curso, achar um emprego, levar uma vida melhor do que a deles, de pequenos produtores rurais da Linha Gaúcha. Não quis.

No país das vastas lavouras, em que boa parte

dos que nascem no campo decide migrar para a zona urbana, Vanderlei é da turma que decidiu ficar. Manteve-se com dois propósitos: mostrar para os moradores das cidades como é a vida no interior, muito além do “tirar leite e ir para a roça”, e servir de exemplo para a juventude rural de que é possível (além de rentável) profissionalizar-se como agricultor.

– Com a internet, o lugar onde a gente mora não nos impõe mais limites. Talvez em outros tempos, sem as possibilidades de conexão, eu não teria estudado, tido contato com tantas pessoas e informações. Mas, hoje, posso dizer que a internet foi a ponte que me tirou da condição de um produtor convencional e me permitiu interagir com o mundo todo, sem que precisasse sair do lugar onde eu quis ficar – afirma.

O que os seguidores de Vanderlei acompanham diariamente nas redes sociais é uma rotina cada vez mais singular entre as novas gerações: a de um jovem que não arreda o pé do meio do mato, mas que lida bem com as gírias e manhas típicas da internet. Tem fotos dos produtos orgânicos; vídeos com dicas de como cuidar da horta “aí na sua casa”; retratos com a fauna do sítio, feitos com o “pau de selfie da roça” (um pedaço de madeira com um celular atado em uma das pontas); dados de sua pesquisa sobre a permanência dos jovens no campo; atrações turísticas do Noroeste (seu mais novo projeto), além de poesias próprias e músicas alemãs, temática do seu programa diário na Rádio Boa Nova FM, em Boa Vista do Buricá.

Jovem alimenta a internet com posts sobre seu trabalho, como o cultivo de orgânicos e a produção de leite - sem desgrudar  do celular.

– Toda a minha vida está ali. Só que acho que o que mais chama atenção das pessoas é o fato de ser alguém do interior postando coisas na internet, não como forma de chacota, mas para mostrar como é a vida no campo. De vez em quando alguém me escreve assim: “Vanderlei, como é legal poder acompanhar a sua rotina”, ou então, “Me dá saudade do meu tempo de criança, era bem assim”. Às vezes, quem vive na cidade não tem ideia de como é a vida do lado de cá – reflete o agricultor.

Quem o vê assim, na internet, nem desconfia que Vanderlei é tímido. E provavelmente também não pode imaginar como foi a trajetória do filho único de Celio, 59 anos, e Noeli, 61, rejeitando as facilidades da cidade e criando condições para permanecer no campo – um caminho trilhado com o talento para o empreendedorismo desde o primeiro passo, há cerca de 10 anos. Foi em 2006 que Vanderlei ganhou a primeira renda da agricultura. Sempre ajudou a família na lavoura, mas aos 16 anos resolveu cuidar sozinho de um cantinho da terra dos pais, plantando milho. Apesar da área pequena, a safra foi boa. Celio vendeu a produção e, em troca, o filho pediu uma novilha. Vanderlei esperou que o animal crescesse, fez com que procriasse e vendeu o bezerrinho. Com parte do dinheiro, comprou um celular, como os que tinham os colegas da área urbana, onde frequentava o Ensino Médio. Logo vieram três anos de seca.

Era preciso mudar de plano, o plantio de milho tradicional não daria nem para o sustento da família. Inspirado em uma visita a uma propriedade modelo em outra localidade interiorana de Boa Vista do Buricá, Vanderlei ajudou os pais a substituir o milho e a soja pela produção de leite – o trabalho era menos pesado do que o da lavoura, ganhava-se um pouco mais também. Foi assim que o adolescente juntou, aos poucos, dinheiro para dar início ao seu plantel de vacas. Elas reproduziam, ele vendia algumas crias e tinha dinheiro para investir em terra e nos estudos, que sempre estiveram em primeiro plano.

Já tinha um programa de rádio aos domingos (em que praticamente só se falava e se ouvia o dialeto alemão, sua primeira língua), quando se graduou à distância em Processos Gerenciais. Emendou em seguida um curso técnico em Agropecuária pela Sociedade Educacional Três de Maio (Setrem). Ficou os dois anos seguintes sem estudar e arrepende-se por isso. Agora está dedicado ao curso superior em Desenvolvimento Rural, oferecido à distância pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O objetivo é expandir o conhecimento para a questão social da vida no interior, para que possa realizar projetos, implementar cooperativas e ajudar associações rurais. Quando acabar, pretende dar início a um mestrado, porque os planos não param.

– Consegui comprar o primeiro hectare há uns cinco anos (localizado logo em frente à terra dos pais), mais ou menos quando comecei os estudos. Hoje são três, mas continua sendo somente um de área útil, onde planto as hortaliças, que é do que eu vivo. Alugo mais uma terra onde deixo os terneiros e a estrebaria do vizinho que foi para cidade, onde cuido das novilhas. Também arrendo um hectare para o plantio de milho para silagem. Tem gente que tem 15 hectares de terra e reclama que não consegue fazer nada. Aqui eu me viro com pouco, quero mostrar que isso é possível – diz Vanderlei.

– Nós somos pobres, não temos muita coisa. Quando precisamos de alguma máquina para o plantio de milho, por exemplo, temos de alugar dos outros. Não é fácil. Mas ele (Vanderlei) não desiste. Tem jovens filhos de agricultores que têm tudo: terras, animais e máquinas. E ainda assim se mudam para a cidade, deixando os velhos sozinhos – complementa o pai, que hoje já entende melhor a motivação do filho em seguir no campo.

Na infância de Vanderlei, eram cerca de 30 as famílias que viviam na Linha Gaúcha. Quase 20 crianças se reuniam nas festas da comunidade, correndo de um lado para o outro. Hoje, pouco mais de 20 casas estão ocupadas na vizinhança. Onde antes moravam cinco pessoas, agora estão duas – parte delas já aposentada. E é visível a quantidade de propriedades abandonadas, colocadas à venda. Os que têm capital vão somando hectares de terra, almejando chegar aos seus primeiros alqueires. A Vanderlei, cabe lamentar o vazio que percorre as estradas de chão, o que faz em forma de poesia:

 

“Teias de aranha na porta

Mais uma casa morta

Um lar outrora movimentado

Hoje se encontra abandonado

A família do interior saiu

A estrada da cidade seguiu

Os filhos lá já estavam

Pois do campo se afastaram

Hoje tantas casas estão assim

E o interior de encantos sem fim

Está ficando agora para trás

E mais uma casa aqui jaz!”

 

De acordo com a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Rio Grande do Sul (Fetraf-RS), 40% das propriedades de pequenos agricultores no Estado enfrentam a falta de um sucessor. Questionar este êxodo rural é justamente a bandeira de Vanderlei. A debandada para a cidade preocupa tanto que, há dois anos, ele deu início ao projeto que hoje leva o nome Perspectivas da Juventude Rural. Busca saber quais são as motivações por trás de ficar no campo ou sair, qual o papel dos pais nesta decisão e o que sabem os possíveis sucessores sobre as propriedades da família. Já foram realizadas entrevistas com mais de 400 jovens, moradores do interior de Boa Vista do Buricá e de municípios vizinhos – todos os gastos são cobertos com o dinheiro próprio, porque, até o momento, ninguém se interessou em incentivá-lo com patrocínio. A pesquisa segue, mas já aponta alguns resultados:

– Aqui na região, apenas um terço dos jovens quer ficar no interior. As mulheres que pretendem seguir no campo são só 16%, e os homens, 46%. A falta de interesse deles é reflexo da falta de incentivo dos pais. Muitos filhos nem sabem o que os pais têm na propriedades. Algumas famílias têm mais de 50 vacas, trator, instalação completa. É só seguir com o trabalho. Mas a maioria prefere ir para a cidade para trabalhar em fábricas, ganhando um salário mínimo. O que eu quero saber é por quê – explica.

Parte da resposta está na própria rotina de Vanderlei: de domingo a domingo, sem feriados e sem férias, sai da cama antes das 7h. Ordenha as vacas, leva os animais para pastar, passa para os cuidados com as hortaliças, colhe as que estão maduras. Sempre com o celular em mãos, ou no máximo no bolso, preparado para uma foto, um vídeo ou a confirmação de um pedido de um cliente. Toma um banho rápido, almoça correndo, dá partida na Saveiro (adquirida há três anos) e se desloca até o estúdio da rádio, onde logo terá início um repertório que inclui bandinhas clássicas dos bailes de interior e marchinhas alemãs. Após as 14h, circula pela região fazendo as entregas de morangos, pés de alface e rúcula, berinjelas, batatas e demais vegetais encomendados pelo site do Sítio Lermen, Facebook ou via WhatsApp. Mais tarde, confere se os bichos estão na sombra, envolve-se em mais uma série de tarefas ao ar livre, até que é hora de fazer a segunda ordenha das vacas.

– Foi assim que, aos 26 anos, conquistei muito mais do que provavelmente teria feito se tivesse me mudado para a cidade. Tenho de estar ali todos os dias, não existe fim de semana. Só que há uma vantagem: a liberdade de trabalhar do meu jeito. Tem momentos do dia em que eu posso fazer o que eu quiser. O que vale mais? Ter um ou dois dias de folga na semana ou várias horas de folga ao longo do dia? – questiona.

Nestes intervalos diários, ele viaja pelas cidades próximas, fotografa pontos turísticos e abastece sua página Turismo Noroeste Gaúcho, no Facebook. Quando prefere ficar no sítio, passa as horas de folga na companhia dos cachorros e do amigo Vudi, o porco de estimação que lhe rende dezenas de curtidas nas redes sociais. Pudera: são 150 quilos de simpatia. E de personalidade própria: não é todo dia que Vudi está obediente, pronto para uma sessão de selfies com Vanderlei. Mas, quando está, só dá Vudi com touca de Papai Noel, Vudi tomando banho de açude, a barriga de Vudi servindo de travesseiro para o jovem repousar a cabeça...

Há alguns dias, Vanderlei mostrou uma técnica para “desenrolar o rabo do porco”. Vudi serviu de modelo, e a dupla recebeu alguns “kkkkkkkkkkk” nos comentários deixados por seguidores. O companheirismo é tanto entre os dois que o agricultor dedicou uma música para Vudi, com letra em alemão – ou melhor, no Riograndenser Hunsrückisch, o dialeto germânico falado no sul do Brasil. Nas imagens publicadas, aparece o porquinho ouvindo a “serenata” do dono, grunhindo em agradecimento. A postagem teve quase 8 mil visualizações.

Vanderlei com os pais, Celio e Noeli.

VIRAL NO WHATSAPP E CONVITES PARA PALESTRAS

Mas se o assunto é sucesso na internet, nada supera o vídeo que gravou na metade do ano passado, comentando a febre do jogo Pokemón Go. No dialeto alemão, Vanderlei fala de quais costumavam ser suas brincadeiras de criança, contrariado que agora a gurizada vive grudada nos celulares. Lá pelas tantas, entra em cena um cachorro e, num improviso, Vanderlei fala que o bichinho está carente, porque ninguém mais brinca com ele, “todos só querem saber de caçar Pokemón”. Mais de 70 mil pessoas assistiram ao vídeo publicado no Facebook, que viralizou no WhatsApp.

– Às vezes vou para outra cidade e me perguntam se eu não sou o cara do vídeo do Pokemón. Essas coisas me assustam um pouco, mas abrem caminhos. O pessoal vê o vídeo na minha página e aproveita para olhar as outras coisas que faço, os meus projetos e posts sobre a agricultura, por exemplo – afirma.

A internet, Vanderlei já disse, é como uma ponte que o comunica com o mundo. E foi preciso de muito esforço para que pudesse tê-la. A casa de madeira dos pais, onde mora até hoje, fica logo atrás de um morro. O sinal não chegava de jeito nenhum. Em 2011, então, dedicou-se a percorrer a pé as terras da região em busca de um ponto onde pudesse ser instalada uma torre, que ele mesmo comprou por R$ 1,5 mil – era a única forma de iniciar a graduação à distância.

Precisou de tempo para pagá-la, mas não tem dúvidas: foi um belo de um investimento. Hoje, é cuidando das redes sociais, alimentando os sites com fotos, analisando dados e divulgando resultados de suas pesquisas pelo interior dos município do Noroeste que Vanderlei passa as noites. Invariavelmente, na frente do computador. Antes de dormir, também aproveita o tempo para assistir a vídeos online e ouvir e-books sobre liderança e empreendedorismo, como os da palestrante Bel Pesce, em quem se inspira.

Da mesma forma, tudo o que aprende ele tenta levar adiante.

– Toda vez que recebo um convite para palestra, fico pulando de alegria. É o reconhecimento por fazer algo que pouca gente faz. Esses dias fui convidado para conversar com alunos de uma escola rural de Três de Maio, onde a gurizada tinha vergonha de dizer que vivia no interior. Mostrei fotos da minha vida e como eles poderiam fazer muitas coisas morando no campo. Semanas depois, a professora me ligou para contar que alguns alunos estavam plantando alface em casa, cuidando dos jardins das propriedades, interessando-se pelo lugar em que vivem. A melhor coisa que posso querer, por enquanto, é influenciar as pessoas que vivem como eu, perto de mim. No futuro, aí sim, quem sabe, poderei viajar mais longe, levando minhas experiências e conhecendo outras – conta.

Não há dúvidas de que está realizado com a vida que escolheu. Só tem um probleminha. Como Vanderlei não é de “frequentar bailes”, acontece que quase todos os namoros que teve, até então, foram pela internet.

– Parece que se a menina é daqui, não dá certo.

O pessoal sempre diz: “Mas também, as gurias daqui olham teu Facebook e só tem vaca e porco”. Mas vou fazer o que se é do que eu gosto? Ninguém precisa gostar disso, só quero ter alguém que me apoie naquilo que eu faço – argumenta.

Pois bem, recentemente, a distância atrapalhou mais um vez. Foi o sexto namoro que começou e teve fim na internet. Em tom de brincadeira, Vanderlei fala que já está quase desistindo: aos 26 anos, não há mais muito tempo para encontrar alguém. Sabe, na verdade, que não é bem assim. Reconhece que seu tempo é diferente. Quem passa os dias acompanhando as plantas e os animais crescerem sabe que de nada adianta querer acelerar os processos da vida. Quando o lado amoroso tiver de se estabelecer, diz ele, acontecerá. De preferência, da próxima vez, sem depender tanto da internet.

– Quem sabe depois desta reportagem

não apareça uma moça do interior, parecida comigo. Não é?

TEXTO

Bruna Scirea

bruna.scirea@zerohora.com.br

IMAGENS

Carlos Macedo

carlos.macedo@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Ticiano Osório

ticiano.osorio@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

Entre a roça e o face
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Entre a roça e o face

Vanderlei já colocou no ar três sites e um aplicativo para vendas online. Transmite diariamente imagens ao vivo enquanto está no estúdio apresentando seu programa de rádio. Publicou um livro de história, tem em vista um e-book de poesias, é pesquisador, faz palestras, presta consultoria e mantém um canal no YouTube. Mas nada lhe dá mais orgulho do que repetir a sequência destas palavras:

– Sou agricultor, antes de qualquer outra coisa.

Vive de papo com gente de todo o país – só falta alguém do Acre, ressalta. Tem amigos na Alemanha, nas Filipinas, namorou uma paulista, uma cearense, uma pernambucana, uma boliviana. Recentemente, teve de criar uma página de “figura pública” no Facebook, já que seu perfil pessoal extrapolou o limite de 5 mil amigos. Cinco mil, aliás, é quase o número de habitantes de Boa Vista do Buricá, município no noroeste do Rio Grande do Sul, onde Vanderlei Holz Lermen nasceu, cresceu e passou todas as noites de seus 26 anos.

– Nunca fui tão longe que não pudesse voltar a tempo de dormir em casa – diz ele.

Os pais bem que o motivaram a ir para a cidade. Lá, ele poderia fazer algum curso, achar um emprego, levar uma vida melhor do que a deles, de pequenos produtores rurais da Linha Gaúcha. Não quis.

No país das vastas lavouras, em que boa parte

dos que nascem no campo decide migrar para a zona urbana, Vanderlei é da turma que decidiu ficar. Manteve-se com dois propósitos: mostrar para os moradores das cidades como é a vida no interior, muito além do “tirar leite e ir para a roça”, e servir de exemplo para a juventude rural de que é possível (além de rentável) profissionalizar-se como agricultor.

– Com a internet, o lugar onde a gente mora não nos impõe mais limites. Talvez em outros tempos, sem as possibilidades de conexão, eu não teria estudado, tido contato com tantas pessoas e informações. Mas, hoje, posso dizer que a internet foi a ponte que me tirou da condição de um produtor convencional e me permitiu interagir com o mundo todo, sem que precisasse sair do lugar onde eu quis ficar – afirma.

O que os seguidores de Vanderlei acompanham diariamente nas redes sociais é uma rotina cada vez mais singular entre as novas gerações: a de um jovem que não arreda o pé do meio do mato, mas que lida bem com as gírias e manhas típicas da internet. Tem fotos dos produtos orgânicos; vídeos com dicas de como cuidar da horta “aí na sua casa”; retratos com a fauna do sítio, feitos com o “pau de selfie da roça” (um pedaço de madeira com um celular atado em uma das pontas); dados de sua pesquisa sobre a permanência dos jovens no campo; atrações turísticas do Noroeste (seu mais novo projeto), além de poesias próprias e músicas alemãs, temática do seu programa diário na Rádio Boa Nova FM, em Boa Vista do Buricá.

– Toda a minha vida está ali. Só que acho que o que mais chama atenção das pessoas é o fato de ser alguém do interior postando coisas na internet, não como forma de chacota, mas para mostrar como é a vida no campo. De vez em quando alguém me escreve assim: “Vanderlei, como é legal poder acompanhar a sua rotina”, ou então, “Me dá saudade do meu tempo de criança, era bem assim”. Às vezes, quem vive na cidade não tem ideia de como é a vida do lado de cá – reflete o agricultor.

 

Quem o vê assim, na internet, nem desconfia que Vanderlei é tímido. E provavelmente também não pode imaginar como foi a trajetória do filho único de Celio, 59 anos, e Noeli, 61, rejeitando as facilidades da cidade e criando condições para permanecer no campo – um caminho trilhado com o talento para o empreendedorismo desde o primeiro passo, há cerca de 10 anos. Foi em 2006 que Vanderlei ganhou a primeira renda da agricultura. Sempre ajudou a família na lavoura, mas aos 16 anos resolveu cuidar sozinho de um cantinho da terra dos pais, plantando milho.

 

Apesar da área pequena, a safra foi boa. Celio vendeu a produção e, em troca, o filho pediu uma novilha. Vanderlei esperou que o animal crescesse, fez com que procriasse e vendeu o bezerrinho. Com parte do dinheiro, comprou um celular, como os que tinham os colegas da área urbana, onde frequentava o Ensino Médio. Logo vieram três anos de seca.

 

Era preciso mudar de plano, o plantio de milho tradicional não daria nem para o sustento da família. Inspirado em uma visita a uma propriedade modelo em outra localidade interiorana de Boa Vista do Buricá, Vanderlei ajudou os pais a substituir o milho e a soja pela produção de leite – o trabalho era menos pesado do que o da lavoura, ganhava-se um pouco mais também. Foi assim que o adolescente juntou, aos poucos, dinheiro para dar início ao seu plantel de vacas. Elas reproduziam, ele vendia algumas crias e tinha dinheiro para investir em terra e nos estudos, que sempre estiveram em primeiro plano.

 

Já tinha um programa de rádio aos domingos (em que praticamente só se falava e se ouvia o dialeto alemão, sua primeira língua), quando se graduou à distância em Processos Gerenciais. Emendou em seguida um curso técnico em Agropecuária pela Sociedade Educacional Três de Maio (Setrem). Ficou os dois anos seguintes sem estudar e arrepende-se por isso. Agora está dedicado ao curso superior em Desenvolvimento Rural, oferecido à distância pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O objetivo é expandir o conhecimento para a questão social da vida no interior, para que possa realizar projetos, implementar cooperativas e ajudar associações rurais. Quando acabar, pretende dar início a um mestrado, porque os planos não param.

 

– Consegui comprar o primeiro hectare há uns cinco anos (localizado logo em frente à terra dos pais), mais ou menos quando comecei os estudos. Hoje são três, mas continua sendo somente um de área útil, onde planto as hortaliças, que é do que eu vivo. Alugo mais uma terra onde deixo os terneiros e a estrebaria do vizinho que foi para cidade, onde cuido das novilhas. Também arrendo um hectare para o plantio de milho para silagem. Tem gente que tem 15 hectares de terra e reclama que não consegue fazer nada. Aqui eu me viro com pouco, quero mostrar que isso é possível – diz Vanderlei.

 

– Nós somos pobres, não temos muita coisa. Quando precisamos de alguma máquina para o plantio de milho, por exemplo, temos de alugar dos outros. Não é fácil. Mas ele (Vanderlei) não desiste. Tem jovens filhos de agricultores que têm tudo: terras, animais e máquinas. E ainda assim se mudam para a cidade, deixando os velhos sozinhos – complementa o pai, que hoje já entende melhor a motivação do filho em seguir no campo.

 

Na infância de Vanderlei, eram cerca de 30 as famílias que viviam na Linha Gaúcha. Quase 20 crianças se reuniam nas festas da comunidade, correndo de um lado para o outro. Hoje, pouco mais de 20 casas estão ocupadas na vizinhança. Onde antes moravam cinco pessoas, agora estão duas – parte delas já aposentada. E é visível a quantidade de propriedades abandonadas, colocadas à venda. Os que têm capital vão somando hectares de terra, almejando chegar aos seus primeiros alqueires. A Vanderlei, cabe lamentar o vazio que percorre as estradas de chão, o que faz em forma de poesia:

 

“Teias de aranha na porta

Mais uma casa morta

Um lar outrora movimentado

Hoje se encontra abandonado

A família do interior saiu

A estrada da cidade seguiu

Os filhos lá já estavam

Pois do campo se afastaram

Hoje tantas casas estão assim

E o interior de encantos sem fim

Está ficando agora para trás

E mais uma casa aqui jaz!”

 

De acordo com a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Rio Grande do Sul (Fetraf-RS), 40% das propriedades de pequenos agricultores no Estado enfrentam a falta de um sucessor. Questionar este êxodo rural é justamente a bandeira de Vanderlei. A debandada para a cidade preocupa tanto que, há dois anos, ele deu início ao projeto que hoje leva o nome Perspectivas da Juventude Rural. Busca saber quais são as motivações por trás de ficar no campo ou sair, qual o papel dos pais nesta decisão e o que sabem os possíveis sucessores sobre as propriedades da família. Já foram realizadas entrevistas com mais de 400 jovens, moradores do interior de Boa Vista do Buricá e de municípios vizinhos – todos os gastos são cobertos com o dinheiro próprio, porque, até o momento, ninguém se interessou em incentivá-lo com patrocínio. A pesquisa segue, mas já aponta alguns resultados:

 

– Aqui na região, apenas um terço dos jovens quer ficar no interior. As mulheres que pretendem seguir no campo são só 16%, e os homens, 46%. A falta de interesse deles é reflexo da falta de incentivo dos pais. Muitos filhos nem sabem o que os pais têm na propriedades. Algumas famílias têm mais de 50 vacas, trator, instalação completa. É só seguir com o trabalho. Mas a maioria prefere ir para a cidade para trabalhar em fábricas, ganhando um salário mínimo. O que eu quero saber é por quê – explica.

 

Parte da resposta está na própria rotina de Vanderlei: de domingo a domingo, sem feriados e sem férias, sai da cama antes das 7h. Ordenha as vacas, leva os animais para pastar, passa para os cuidados com as hortaliças, colhe as que estão maduras. Sempre com o celular em mãos, ou no máximo no bolso, preparado para uma foto, um vídeo ou a confirmação de um pedido de um cliente. Toma um banho rápido, almoça correndo, dá partida na Saveiro (adquirida há três anos) e se desloca até o estúdio da rádio, onde logo terá início um repertório que inclui bandinhas clássicas dos bailes de interior e marchinhas alemãs. Após as 14h, circula pela região fazendo as entregas de morangos, pés de alface e rúcula, berinjelas, batatas e demais vegetais encomendados pelo site do Sítio Lermen, Facebook ou via WhatsApp. Mais tarde, confere se os bichos estão na sombra, envolve-se em mais uma série de tarefas ao ar livre, até que é hora de fazer a segunda ordenha das vacas.

 

– Foi assim que, aos 26 anos, conquistei muito mais do que provavelmente teria feito se tivesse me mudado para a cidade. Tenho de estar ali todos os dias, não existe fim de semana. Só que há uma vantagem: a liberdade de trabalhar do meu jeito. Tem momentos do dia em que eu posso fazer o que eu quiser. O que vale mais? Ter um ou dois dias de folga na semana ou várias horas de folga ao longo do dia? – questiona.

 

Nestes intervalos diários, ele viaja pelas cidades próximas, fotografa pontos turísticos e abastece sua página Turismo Noroeste Gaúcho, no Facebook. Quando prefere ficar no sítio, passa as horas de folga na companhia dos cachorros e do amigo Vudi, o porco de estimação que lhe rende dezenas de curtidas nas redes sociais. Pudera: são 150 quilos de simpatia. E de personalidade própria: não é todo dia que Vudi está obediente, pronto para uma sessão de selfies com Vanderlei. Mas, quando está, só dá Vudi com touca de Papai Noel, Vudi tomando banho de açude, a barriga de Vudi servindo de travesseiro para o jovem repousar a cabeça...

 

Há alguns dias, Vanderlei mostrou uma técnica para “desenrolar o rabo do porco”. Vudi serviu de modelo, e a dupla recebeu alguns “kkkkkkkkkkk” nos comentários deixados por seguidores. O companheirismo é tanto entre os dois que o agricultor dedicou uma música para Vudi, com letra em alemão – ou melhor, no Riograndenser Hunsrückisch, o dialeto germânico falado no sul do Brasil. Nas imagens publicadas, aparece o porquinho ouvindo a “serenata” do dono, grunhindo em agradecimento. A postagem teve quase 8 mil visualizações.

 

VIRAL NO WHATSAPP E

CONVITES PARA PALESTRAS

 

Mas se o assunto é sucesso na internet, nada supera o vídeo que gravou na metade do ano passado, comentando a febre do jogo Pokemón Go. No dialeto alemão, Vanderlei fala de quais costumavam ser suas brincadeiras de criança, contrariado que agora a gurizada vive grudada nos celulares. Lá pelas tantas, entra em cena um cachorro e, num improviso, Vanderlei fala que o bichinho está carente, porque ninguém mais brinca com ele, “todos só querem saber de caçar Pokemón”. Mais de 70 mil pessoas assistiram ao vídeo publicado no Facebook, que viralizou no WhatsApp.

 

– Às vezes vou para outra cidade e me perguntam se eu não sou o cara do vídeo do Pokemón. Essas coisas me assustam um pouco, mas abrem caminhos. O pessoal vê o vídeo na minha página e aproveita para olhar as outras coisas que faço, os meus projetos e posts sobre a agricultura, por exemplo – afirma.

 

A internet, Vanderlei já disse, é como uma ponte que o comunica com o mundo. E foi preciso de muito esforço para que pudesse tê-la. A casa de madeira dos pais, onde mora até hoje, fica logo atrás de um morro. O sinal não chegava de jeito nenhum. Em 2011, então, dedicou-se a percorrer a pé as terras da região em busca de um ponto onde pudesse ser instalada uma torre, que ele mesmo comprou por R$ 1,5 mil – era a única forma de iniciar a graduação à distância.

 

Precisou de tempo para pagá-la, mas não tem dúvidas: foi um belo de um investimento. Hoje, é cuidando das redes sociais, alimentando os sites com fotos, analisando dados e divulgando resultados de suas pesquisas pelo interior dos município do Noroeste que Vanderlei passa as noites. Invariavelmente, na frente do computador. Antes de dormir, também aproveita o tempo para assistir a vídeos online e ouvir e-books sobre liderança e empreendedorismo, como os da palestrante Bel Pesce, em quem se inspira.

 

Da mesma forma, tudo o que aprende ele tenta levar adiante.

 

– Toda vez que recebo um convite para palestra, fico pulando de alegria. É o reconhecimento por fazer algo que pouca gente faz. Esses dias fui convidado para conversar com alunos de uma escola rural de Três de Maio, onde a gurizada tinha vergonha de dizer que vivia no interior. Mostrei fotos da minha vida e como eles poderiam fazer muitas coisas morando no campo. Semanas depois, a professora me ligou para contar que alguns alunos estavam plantando alface em casa, cuidando dos jardins das propriedades, interessando-se pelo lugar em que vivem. A melhor coisa que posso querer, por enquanto, é influenciar as pessoas que vivem como eu, perto de mim. No futuro, aí sim, quem sabe, poderei viajar mais longe, levando minhas experiências e conhecendo outras – conta.

 

Não há dúvidas de que está realizado com a vida que escolheu. Só tem um probleminha. Como Vanderlei não é de “frequentar bailes”, acontece que quase todos os namoros que teve, até então, foram pela internet.

 

– Parece que se a menina é daqui, não dá certo.

 

O pessoal sempre diz: “Mas também, as gurias daqui olham teu Facebook e só tem vaca e porco”. Mas vou fazer o que se é do que eu gosto? Ninguém precisa gostar disso, só quero ter alguém que me apoie naquilo que eu faço – argumenta.

 

Pois bem, recentemente, a distância atrapalhou mais um vez. Foi o sexto namoro que começou e teve fim na internet. Em tom de brincadeira, Vanderlei fala que já está quase desistindo: aos 26 anos, não há mais muito tempo para encontrar alguém. Sabe, na verdade, que não é bem assim. Reconhece que seu tempo é diferente. Quem passa os dias acompanhando as plantas e os animais crescerem sabe que de nada adianta querer acelerar os processos da vida. Quando o lado amoroso tiver de se estabelecer, diz ele, acontecerá. De preferência, da próxima vez, sem depender tanto da internet.

 

– Quem sabe depois desta reportagem não apareça uma moça do interior, parecida comigo. Não é?