A Ilha do Barba Negra
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cenário selvagem, ilha do guaíba localizada  a pouco mais de 40 quilômetros da Capital abriga pescadores, turistas de fim de semana, lendas sobre piratas e histórias de escravos

A

o ver o Guaíba se ampliar após a passagem do farol a sua esquerda e desembocar na Lagoa dos Patos, com um vento que faz a água se crispar e o barco balançar levemente, você navega mais uma hora e 15 minutos e chega até ela. A imagem que vai se aproximando é semelhante à que veriam desbravadores de séculos atrás ou, na ficção, tripulantes do bando de Jack Sparrow, o protagonista dos filmes Piratas do Caribe. Trata-se de uma ilha com vegetação nativa e variada, dunas claras e mistério próprio do que se poderia chamar de ilha fantasma. No caso de Sparrow, não fosse ele próprio uma ficção, daria para imaginá-lo, com seu gingado e uma taça de rum na mão direita, pisando a areia fofa, quebrando as incontáveis conchas coloridas sob a água límpida e, com olhar desconfiado, observando os 3,3 quilômetros por 550 metros que levam o nome de um dos seus principais inimigos: a Ilha do Barba Negra.

Pertencente ao município de Barra do Ribeiro, a ilha fica na saída do Guaíba rumo ao mar. Só não é deserta porque há velejadores que põem suas embarcações a singrar em busca da praia perfeita para passar o dia com a família. Também há pescadores que vão atrás de tainhas, jundiás e piavas. Contrariados, só evitam o bagre, peixe existente em abundância, mas cuja pesca está proibida por decreto estadual homologado em setembro de 2014. A presença humana pode ser notada pelas pontuais garrafas, latas de cerveja, baldes e até um triciclo infantil que trazem o lado perverso da civilização e maculam o cenário paradisíaco. Os conhecedores do local asseguram que esses objetos chegam pela correnteza, em especial quando há cheias.

Nas bordas, a água é límpida, e a areia, clara. No interior da ilha, quanto mais você avança ao seu centro, improváveis cactos podem ser vistos entre margaridas, orquídeas, bromélias e lírios, além das samambaias que se espraiam com elegância e árvores frutíferas tomadas de ananás, araçás, goiabas, limões e amoras. Deve-se cuidar com os espinhos afiados. E também com lagartos, capivaras e ratões. Olhando o céu, você pode ver trinca-ferros, sabiás, cardeais, asas-de-telha, barreiros e cravinas voejando. No chão, a areia acusa, intactas, pegadas de pássaros e também daquilo que parece cachorro, mas que pode também ser capivara. Um odor de putrefação é conduzido pelo vento em algumas partes da sua borda. É de mexilhões que se espalham pela areia e que, conforme os frequentadores eventuais, aportam ali a partir dos cascos de navios onde ficam grudados, algo que não ocorria 10 ou 15 anos atrás.

Luiz Carlos e sua mulher, Zelina: queixas sobre a legislação pesqueira
e críticas aos caçadores e veranistas

A reportagem de Zero Hora observa todos os detalhes daquilo que parece o paraíso tropical localizado bem no começo de uma das maiores lagoas do mundo. De repente, um movimento.

– Quem está aqui? – pergunta um homem de estatura média, pele curtida do sol, empunhando um facão.

Brinco com ele:

– Opa, estou diante do prefeito da ilha?

Aos risos, o homem troca a expressão desconfiada pela acolhedora. É o pescador Luiz Carlos Marcelino de Deus, 70 anos. Ele põe o facão na bainha e aponta para o interior da ilha, contando que vive em Guaíba, mas pega seu barquinho e vai até lá pescar antes da Semana Santa.

Acompanhamos o pescador pelo interior da ilha. A vegetação se torna mais densa. Espinhos arranham a pele. O barulho dos pássaros intensifica o sentimento de envolvimento com a natureza.

– Veja. Aqui está a nossa cabaninha e o trapiche de onde jogo a rede – mostra Luiz Carlos. É uma construção de madeira engenhosa para as condições.

– Bom dia. Por favor, sente-se – diz sua mulher, Maria Zelina de Deus, 64 anos.

Zelina abandona as palavras cruzadas, acende um cigarro emendado no outro e pergunta se o repórter é amigo do Cléo Kuhn, o homem do tempo da RBS.

A partir da resposta positiva, ela pede:

– Diz pra ele que precisamos ouvir mais previsões sobre o vento.

Na lide pesqueira, ela pega junto com Luiz Carlos. Só não vai quando ele tem parceria masculina. Os dois se mostram muito unidos na paz da ilha em que eles são presença avulsa. Ao lado das cadeiras, há um cacho de bananinhas-do-mato e macelas. Das bananinhas, eles fazem xarope e licor, ao mergulhá-la na cachaça. Das macelas, fazem chá. Moscas voam em volta. O casal dorme bem?

– Olha ali a nossa cama – mostra Luiz Carlos, apontando para um improviso cercado de mosquiteiro.

– Ficamos na paz aqui, mas claro que nosso objetivo é pescar. Agora, estamos há uma semana. Vamos embora amanhã – reforça Zelina, pedindo que a reportagem não se assuste caso algum lagarto grande, coisa de mais de metro, atravesse por entre as pernas de todos, sem dar atenção (ainda bem que isso não ocorreu...).

A rotina é de pesca e poucas distrações. Ela joga palavras cruzadas e ouve rádio. Está sempre informada das notícias. Ambos acompanham o Grêmio avidamente. Zelina ocupa a mente pensando na palavra certa para escrever nos espaços das cruzadas ou lê antigas revistinhas de romances, como Sabrina, Júlia e Bianca.

Luiz Carlos, enquanto isso, sai em passeio pela ilha, encontrando eventualmente estranhos como nós.

O casal se mostra apaixonado pela ilha do Barba Negra. Lamentam que a filha de 43 anos e a neta de 13 não estão com eles.

– Imagina se a menina vai deixar o celular e os jogos eletrônicos – diz ela.

Celular? Boa questão. Sim. Pega. Só que a pessoa precisa subir em uma árvore para captar o sinal da Lomba do Pinheiro.

Zelina se queixa da poluição deixada pelos turistas eventuais e também dos objetos que chegam em dias de cheia. Olha para o lado e mostra uma parte queimada, o terreno aberto.

– Aqui foi gente que fez churrasco e queimou tudo – reclama, paradoxalmente jogando seu toco de cigarro no chão.

Os peixes do casal são guardados em dois pequenos freezers. O banho é tomado com a água acondicionada em um galão e um chuveirinho improvisado. A ida e volta de Guaíba dura quatro horas e meia. A cuia está com o morrinho intacto – a água para o chimarrão é mineral, trazida de Guaíba. No trapiche, fica presa a “rede de espera”.

– Só não podemos ficar com os bagres. É uma pena. Isso tinha que mudar. Outro dia, peguei um de 20 quilos e tive que pôr fora. Dizem que está em extinção, mas é o que mais tem – lamenta Luiz Carlos. O motivo da proibição tem relação com a desova do peixe naquele local.

Sobre as pegadas de animais que podem ser vistas nas bordas da ilha, Luiz Carlos diz que provavelmente sejam de capivaras. Mas também censura pescadores:

– Alguns pescadores chegam aqui também como caçadores. Vêm sem armas, porque não podem ter o porte. Trazem dois ou três cães de caça, grandes, que correm para cima das capivaras, dos ratões, dos lagartos. Esses caçadores comem ratões e capivaras.

Luiz Carlos conta que tem esse nome porque o pai, morto há 19 anos, quando tinha 87, era seguidor de um político. Tenta se lembrar do nome. Seria Luiz Carlos Prestes? Sim, isso mesmo. Seu pai era comunista, então. Meio desconfiado, como quem vai contar um segredo familiar, ele diz que sim.

O pai de Luiz Carlos, o pescador, era grande propagador de uma lenda: a de que o pirata Barba Negra estava por aqui, sendo perseguido em frente ao farol na divisa entre o Guaíba e a Lagoa dos Patos, quando conseguiu fugir com os companheiros e os matou, restando apenas um. Com esse subordinado, o pirata chegou à ilha e enterrou o maior dos seus tesouros sob uma figueira. Após a última pá de areia sobre o butim, Barba Negra deu um tiro no subordinado, que, antes de cair morto, revidou e matou seu assassino.

– Onde está a figueira, seu Luiz?

– Nunca mais a vi.

– Então o senhor já a viu?

Luiz Carlos diz que a viu quando criança. Mas ela secou e sumiu. Seria o destino de uma árvore quando tem um tesouro aos seus pés e pouco interesse das pessoas.

Por que o pai de Luiz Carlos jamais tomou posse do tesouro?

– Ah, pelo temperamento dele, ele jamais iria atrás de algo que não era seu – responde Zelina, sem esconder o orgulho que o sogro comunista lhe inspira.

O casal conta essa história com clara emoção. Consta que muita gente pergunta pelo tesouro, como curiosidade. E também questionam a respeito de supostos discos voadores que rondariam a ilha.

– Isso, com certeza, eu nunca vi – afirma Luiz Carlos.

segredo desvendado pelo minuano

O historiador Moacyr Flores, antigo pesquisador do assunto, brinca com as lendas e diz que não houve confrontos pela Revolução Farroupilha, como muitos relatam. O que houve, sim, foi um quilombo.

– Então, trouxeram o pirata Barba Negra lá das Caraíbas até a entrada do Guaíba – ironiza Moacyr Flores. – Não sei por que o nome da ilha é Barba Negra. Nunca descobri. Pode ser que alguém tenha dado o nome pela lenda dos piratas, mas não que o pirata estivesse aí. Vai ver alguém leu as histórias do Barba Negra e pôs esse nome.

Efetivamente, o pirata Barba Negra, que aterrorizou o Caribe e a costa sul da América no Norte, existiu e morreu em 1718, há quase 300 anos. A morte ocorreu em uma batalha sangrenta contra homens da marinha britânica enviados da Virgínia. Barba Negra, cujo verdadeiro nome era Edward Teach, foi atingido por cinco balas de mosquete e sofreu 20 ferimentos provocados por espadas. Isso ocorreu na ilha de Ocracoke, na costa da Carolina do Norte. Durante seus cinco anos como pirata e um ano como capitão, teve quatro navios e mais de 200 homens. A lenda conta que ele ateava fogo a sua longa barba escura durante as batalhas para intimidar os inimigos.

A história que Moacyr Flores relata é a de José Inácio Teixeira. Em setembro de 1829, ele ancorou seu iate (“Não os barcos de lazer atuais, mas um meio de transporte, mesmo”, ressalva o professor) no porto de Rio Grande e velejou pela Laguna dos Patos, rumo a Porto Alegre. Os ventos eram fortes no estreitamento do trajeto, e era impossível adentrar o canal de Itapuã. A solução foi se abrigar na Ilha do Barba Negra e esperar que o minuano amainasse.

O vento até pode ter diminuído a intensidade. Só que Teixeira enfrentou outro problema:

– Ele mandou um batelão (embarcação de fundo chato, com pequeno calado própria para operação próxima às margens e em águas rasas de rios, lagos e lagoas) à ilha, com um marinheiro branco e quatro escravos, também marinheiros, para buscar lenha. Surgiram mais de 30 negros armados de lanças e espingardas. Um dos marinheiros escravos se escondeu num monte de lenha, e os demais, comandados pelo branco, fugiram no batelão. Os negros atacantes atiraram nos fugitivos, visando mais ao branco, mas não o acertaram. Os negros correram para canoas escondidas nos aguapés e seguiram o batelão de perto. Vendo que os fugitivos se punham a salvo, os perseguidores tentaram a abordagem do iate que zarpou na direção de Bujuru, escapando dos quilombolas.

Teixeira enfim conseguiu navegar com ventos mais favoráveis e chegou a Porto Alegre. Imediatamente, comunicou às autoridades que havia, na Ilha do Barba Negra, um quilombo. Vice-presidente da província, o vigário-geral Antônio Vieira da Soledade ordenou ao tenente Luís Alves dos Santos Marques que preparasse uma expedição punitiva, com 160 soldados de linha e mais 30 artilheiros.

Quase um mês depois, a tropa estava distribuída na escuna Doze de Outubro, em dois lanchões e um iate. As embarcações dos agentes se aproximaram da ilha e ancoraram nas suas proximidades. Um dos lanchões se dirigiu à terra e encontrou uma canoa grande tripulada por cinco escravos que, ao serem descobertos, remaram para o interior da ilha e se imiscuíram na vegetação.

Narra o professor Moacyr Flores:

– O lanchão continuou a navegar, costeando a ilha até o lado oposto, onde os soldados desembarcaram e bloquearam a fuga de, conforme a linguagem da época, “seis machos e três fêmeas”, que escaparam para uma pequena canoa. Intimados a se entregar, continuaram a fuga. O comandante ordenou aos soldados que atirassem. A descarga violenta matou os negros e afundou a canoa. Quando a expedição das autoridades desembarcou na ilha, encontrou apenas roças de feijão e de milho, quatro casas prontas e duas ainda em construção. Os soldados arrasaram tudo. A expedição retornou sem nada sofrer. Apenas o cadete Joaquim da Fonseca Pereira Pinto, que se achava na retranca da escuna, por imprudência caiu n’água e pereceu afogado. Essas notícias foram publicadas no jornal O Amigo do Homem e da Pátria, edições de 18 de setembro e de 12 de outubro de 1829.

Flores chama a atenção para a demora: por que os agentes da repressão levaram tanto tempo para reunir rapidamente suas forças? Por que permitiram que escravos da cidade tivessem tempo de avisar os quilombolas? Cronistas da época dão conta de que “as notícias circulavam rapidamente entre os escravos que tudo viam e ouviam porque participavam como mão de obra de todas as atividades dos brancos”. O historiador também pergunta: por que a expedição punitiva não vasculhou as ilhas e as margens da Laguna dos Patos, não percorreu as estâncias da Barra do Ribeiro e de Pedras Brancas, atual município de Guaíba, em busca dos escravos fugitivos? O comandante militar deu a missão por cumprida com a destruição de roças de subsistência e algumas palhoças. Isso intriga Flores:

– O jornal não se refere à proteção que os estancieiros da região davam aos quilombolas da Ilha do Barba Negra. Havia várias charqueadas nas proximidades, com trabalho mais intenso no período de dezembro a fevereiro, quando o calor do sol é maior, para secar as mantas de carne expostas nos varais. O quilombo da Ilha do Barba Negra fornecia mão de obra barata às charqueadas e às estâncias.

O fato é que a expedição demorou e falhou em capturar quilombolas porque eles estavam prevenidos e conseguiram fugir a tempo pela ponta da Ilha de Canguçu. Dois dias antes do ataque, os quilombolas estiveram carneando na estância de Cabeçudas, de propriedade de D. Maria de Oliveira, irmã do cônego Salgado. Flores conta que gente como D. Maria de Oliveira e cônego Salgado sustentavam sua produção com o aluguel de escravos fugidos, que jamais eram denunciados, porque o silêncio servia aos interesses empresariais.

– Havia 16 quilombos no Rio Grande do Sul, tudo tranquilo e pacífico – conta Flores. – Era mão de obra barata!

Os pés do pescador e as pegadas de pássaros da região

TEXTO

Léo Gerchmann

leo.gerchmann@zerohora.com.br

IMAGENS

Tadeu Vilani

tadeu.vilani@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Ticiano Osório

ticiano.osorio@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

 

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

A Ilha do Barba Negra
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A Ilha do Barba Negra

Ao ver o Guaíba se ampliar após a passagem do farol a sua esquerda e desembocar na Lagoa dos Patos, com um vento que faz a água se crispar e o barco balançar levemente, você navega mais uma hora e 15 minutos e chega até ela. A imagem que vai se aproximando é semelhante à que veriam desbravadores de séculos atrás ou, na ficção, tripulantes do bando de Jack Sparrow, o protagonista dos filmes Piratas do Caribe. Trata-se de uma ilha com vegetação nativa e variada, dunas claras e mistério próprio do que se poderia chamar de ilha fantasma. No caso de Sparrow, não fosse ele próprio uma ficção, daria para imaginá-lo, com seu gingado e uma taça de rum na mão direita, pisando a areia fofa, quebrando as incontáveis conchas coloridas sob a água límpida e, com olhar desconfiado, observando os 3,3 quilômetros por 550 metros que levam o nome de um dos seus principais inimigos: a Ilha do Barba Negra.

Pertencente ao município de Barra do Ribeiro, a ilha fica na saída do Guaíba rumo ao mar. Só não é deserta porque há velejadores que põem suas embarcações a singrar em busca da praia perfeita para passar o dia com a família. Também há pescadores que vão atrás de tainhas, jundiás e piavas. Contrariados, só evitam o bagre, peixe existente em abundância, mas cuja pesca está proibida por decreto estadual homologado em setembro de 2014. A presença humana pode ser notada pelas pontuais garrafas, latas de cerveja, baldes e até um triciclo infantil que trazem o lado perverso da civilização e maculam o cenário paradisíaco. Os conhecedores do local asseguram que esses objetos chegam pela correnteza, em especial quando há cheias.

Nas bordas, a água é límpida, e a areia, clara. No interior da ilha, quanto mais você avança ao seu centro, improváveis cactos podem ser vistos entre margaridas, orquídeas, bromélias e lírios, além das samambaias que se espraiam com elegância e árvores frutíferas tomadas de ananás, araçás, goiabas, limões e amoras. Deve-se cuidar com os espinhos afiados. E também com lagartos, capivaras e ratões. Olhando o céu, você pode ver trinca-ferros, sabiás, cardeais, asas-de-telha, barreiros e cravinas voejando. No chão, a areia acusa, intactas, pegadas de pássaros e também daquilo que parece cachorro, mas que pode também ser capivara. Um odor de putrefação é conduzido pelo vento em algumas partes da sua borda. É de mexilhões que se espalham pela areia e que, conforme os frequentadores eventuais, aportam ali a partir dos cascos de navios onde ficam grudados, algo que não ocorria 10 ou 15 anos atrás.

A reportagem de Zero Hora observa todos os detalhes daquilo que parece o paraíso tropical localizado bem no começo de uma das maiores lagoas do mundo. De repente, um movimento.

– Quem está aqui? – pergunta um homem de estatura média, pele curtida do sol, empunhando um facão.

Brinco com ele:

– Opa, estou diante do prefeito da ilha?

Aos risos, o homem troca a expressão desconfiada pela acolhedora. É o pescador Luiz Carlos Marcelino de Deus, 70 anos. Ele põe o facão na bainha e aponta para o interior da ilha, contando que vive em Guaíba, mas pega seu barquinho e vai até lá pescar antes da Semana Santa.

Acompanhamos o pescador pelo interior da ilha. A vegetação se torna mais densa. Espinhos arranham a pele. O barulho dos pássaros intensifica o sentimento de envolvimento com a natureza.

– Veja. Aqui está a nossa cabaninha e o trapiche de onde jogo a rede – mostra Luiz Carlos. É uma construção de madeira engenhosa para as condições.

– Bom dia. Por favor, sente-se – diz sua mulher, Maria Zelina de Deus, 64 anos.

Zelina abandona as palavras cruzadas, acende um cigarro emendado no outro e pergunta se o repórter é amigo do Cléo Kuhn, o homem do tempo da RBS.

A partir da resposta positiva, ela pede:

– Diz pra ele que precisamos ouvir mais previsões sobre o vento.

Na lide pesqueira, ela pega junto com Luiz Carlos. Só não vai quando ele tem parceria masculina. Os dois se mostram muito unidos na paz da ilha em que eles são presença avulsa. Ao lado das cadeiras, há um cacho de bananinhas-do-mato e macelas. Das bananinhas, eles fazem xarope e licor, ao mergulhá-la na cachaça. Das macelas, fazem chá. Moscas voam em volta. O casal dorme bem?

– Olha ali a nossa cama – mostra Luiz Carlos, apontando para um improviso cercado de mosquiteiro.

– Ficamos na paz aqui, mas claro que nosso objetivo é pescar. Agora, estamos há uma semana. Vamos embora amanhã – reforça Zelina, pedindo que a reportagem não se assuste caso algum lagarto grande, coisa de mais de metro, atravesse por entre as pernas de todos, sem dar atenção (ainda bem que isso não ocorreu...).

A rotina é de pesca e poucas distrações. Ela joga palavras cruzadas e ouve rádio. Está sempre informada das notícias. Ambos acompanham o Grêmio avidamente. Zelina ocupa a mente pensando na palavra certa para escrever nos espaços das cruzadas ou lê antigas revistinhas de romances, como Sabrina, Júlia e Bianca.

Luiz Carlos, enquanto isso, sai em passeio pela ilha, encontrando eventualmente estranhos como nós.

O casal se mostra apaixonado pela ilha do Barba Negra. Lamentam que a filha de 43 anos e a neta de 13 não estão com eles.

– Imagina se a menina vai deixar o celular e os jogos eletrônicos – diz ela.

Celular? Boa questão. Sim. Pega. Só que a pessoa precisa subir em uma árvore para captar o sinal da Lomba do Pinheiro.

Zelina se queixa da poluição deixada pelos turistas eventuais e também dos objetos que chegam em dias de cheia. Olha para o lado e mostra uma parte queimada, o terreno aberto.

– Aqui foi gente que fez churrasco e queimou tudo – reclama, paradoxalmente jogando seu toco de cigarro no chão.

Os peixes do casal são guardados em dois pequenos freezers. O banho é tomado com a água acondicionada em um galão e um chuveirinho improvisado. A ida e volta de Guaíba dura quatro horas e meia. A cuia está com o morrinho intacto – a água para o chimarrão é mineral, trazida de Guaíba.

as pegadas de pássaros da região

No trapiche, fica presa a “rede de espera”.

– Só não podemos ficar com os bagres. É uma pena. Isso tinha que mudar. Outro dia, peguei um de 20 quilos e tive que pôr fora. Dizem que está em extinção, mas é o que mais tem – lamenta Luiz Carlos. O motivo da proibição tem relação com a desova do peixe naquele local.

Sobre as pegadas de animais que podem ser vistas nas bordas da ilha, Luiz Carlos diz que provavelmente sejam de capivaras. Mas também censura pescadores:

– Alguns pescadores chegam aqui também como caçadores. Vêm sem armas, porque não podem ter o porte. Trazem dois ou três cães de caça, grandes, que correm para cima das capivaras, dos ratões, dos lagartos. Esses caçadores comem ratões e capivaras.

Luiz Carlos conta que tem esse nome porque o pai, morto há 19 anos, quando tinha 87, era seguidor de um político. Tenta se lembrar do nome. Seria Luiz Carlos Prestes? Sim, isso mesmo. Seu pai era comunista, então. Meio desconfiado, como quem vai contar um segredo familiar, ele diz que sim.

O pai de Luiz Carlos, o pescador, era grande propagador de uma lenda: a de que o pirata Barba Negra estava por aqui, sendo perseguido em frente ao farol na divisa entre o Guaíba e a Lagoa dos Patos, quando conseguiu fugir com os companheiros e os matou, restando apenas um. Com esse subordinado, o pirata chegou à ilha e enterrou o maior dos seus tesouros sob uma figueira. Após a última pá de areia sobre o butim, Barba Negra deu um tiro no subordinado, que, antes de cair morto, revidou e matou seu assassino.

– Onde está a figueira, seu Luiz?

– Nunca mais a vi.

– Então o senhor já a viu?

Luiz Carlos diz que a viu quando criança. Mas ela secou e sumiu. Seria o destino de uma árvore quando tem um tesouro aos seus pés e pouco interesse das pessoas.

Por que o pai de Luiz Carlos jamais tomou posse do tesouro?

– Ah, pelo temperamento dele, ele jamais iria atrás de algo que não era seu – responde Zelina, sem esconder o orgulho que o sogro comunista lhe inspira.

O casal conta essa história com clara emoção. Consta que muita gente pergunta pelo tesouro, como curiosidade. E também questionam a respeito de supostos discos voadores que rondariam a ilha.

– Isso, com certeza, eu nunca vi – afirma Luiz Carlos.

SEGREDO DESVENDADO

PELO MINUANO

O historiador Moacyr Flores, antigo pesquisador do assunto, brinca com as lendas e diz que não houve confrontos pela Revolução Farroupilha, como muitos relatam. O que houve, sim, foi um quilombo.

– Então, trouxeram o pirata Barba Negra lá das Caraíbas até a entrada do Guaíba – ironiza Moacyr Flores. – Não sei por que o nome da ilha é Barba Negra. Nunca descobri. Pode ser que alguém tenha dado o nome pela lenda dos piratas, mas não que o pirata estivesse aí. Vai ver alguém leu as histórias do Barba Negra e pôs esse nome.

Efetivamente, o pirata Barba Negra, que aterrorizou o Caribe e a costa sul da América no Norte, existiu e morreu em 1718, há quase 300 anos. A morte ocorreu em uma batalha sangrenta contra homens da marinha britânica enviados da Virgínia. Barba Negra, cujo verdadeiro nome era Edward Teach, foi atingido por cinco balas de mosquete e sofreu 20 ferimentos provocados por espadas. Isso ocorreu na ilha de Ocracoke, na costa da Carolina do Norte. Durante seus cinco anos como pirata e um ano como capitão, teve quatro navios e mais de 200 homens. A lenda conta que ele ateava fogo a sua longa barba escura durante as batalhas para intimidar os inimigos.

A história que Moacyr Flores relata é a de José Inácio Teixeira. Em setembro de 1829, ele ancorou seu iate (“Não os barcos de lazer atuais, mas um meio de transporte, mesmo”, ressalva o professor) no porto de Rio Grande e velejou pela Laguna dos Patos, rumo a Porto Alegre. Os ventos eram fortes no estreitamento do trajeto, e era impossível adentrar o canal de Itapuã. A solução foi se abrigar na Ilha do Barba Negra e esperar que o minuano amainasse.

O vento até pode ter diminuído a intensidade. Só que Teixeira enfrentou outro problema:

– Ele mandou um batelão (embarcação de fundo chato, com pequeno calado própria para operação próxima às margens e em águas rasas de rios, lagos e lagoas) à ilha, com um marinheiro branco e quatro escravos, também marinheiros, para buscar lenha. Surgiram mais de 30 negros armados de lanças e espingardas. Um dos marinheiros escravos se escondeu num monte de lenha, e os demais, comandados pelo branco, fugiram no batelão. Os negros atacantes atiraram nos fugitivos, visando mais ao branco, mas não o acertaram. Os negros correram para canoas escondidas nos aguapés e seguiram o batelão de perto. Vendo que os fugitivos se punham a salvo, os perseguidores tentaram a abordagem do iate que zarpou na direção de Bujuru, escapando dos quilombolas.

Teixeira enfim conseguiu navegar com ventos mais favoráveis e chegou a Porto Alegre. Imediatamente, comunicou às autoridades que havia, na Ilha do Barba Negra, um quilombo. Vice-presidente da província, o vigário-geral Antônio Vieira da Soledade ordenou ao tenente Luís Alves dos Santos Marques que preparasse uma expedição punitiva, com 160 soldados de linha e mais 30 artilheiros.

Luiz Carlos e sua mulher, Zelina: queixas sobre a legislação pesqueira e críticas aos caçadores e veranistas

Quase um mês depois, a tropa estava distribuída na escuna Doze de Outubro, em dois lanchões e um iate. As embarcações dos agentes se aproximaram da ilha e ancoraram nas suas proximidades. Um dos lanchões se dirigiu à terra e encontrou uma canoa grande tripulada por cinco escravos que, ao serem descobertos, remaram para o interior da ilha e se imiscuíram na vegetação.

Narra o professor Moacyr Flores:

– O lanchão continuou a navegar, costeando a ilha até o lado oposto, onde os soldados desembarcaram e bloquearam a fuga de, conforme a linguagem da época, “seis machos e três fêmeas”, que escaparam para uma pequena canoa. Intimados a se entregar, continuaram a fuga. O comandante ordenou aos soldados que atirassem. A descarga violenta matou os negros e afundou a canoa. Quando a expedição das autoridades desembarcou na ilha, encontrou apenas roças de feijão e de milho, quatro casas prontas e duas ainda em construção. Os soldados arrasaram tudo. A expedição retornou sem nada sofrer. Apenas o cadete Joaquim da Fonseca Pereira Pinto, que se achava na retranca da escuna, por imprudência caiu n’água e pereceu afogado. Essas notícias foram publicadas no jornal O Amigo do Homem e da Pátria, edições de 18 de setembro e de 12 de outubro de 1829.

Os pés do pescador

Flores chama a atenção para a demora: por que os agentes da repressão levaram tanto tempo para reunir rapidamente suas forças? Por que permitiram que escravos da cidade tivessem tempo de avisar os quilombolas? Cronistas da época dão conta de que “as notícias circulavam rapidamente entre os escravos que tudo viam e ouviam porque participavam como mão de obra de todas as atividades dos brancos”. O historiador também pergunta: por que a expedição punitiva não vasculhou as ilhas e as margens da Laguna dos Patos, não percorreu as estâncias da Barra do Ribeiro e de Pedras Brancas, atual município de Guaíba, em busca dos escravos fugitivos? O comandante militar deu a missão por cumprida com a destruição de roças de subsistência e algumas palhoças. Isso intriga Flores:

– O jornal não se refere à proteção que os estancieiros da região davam aos quilombolas da Ilha do Barba Negra. Havia várias charqueadas nas proximidades, com trabalho mais intenso no período de dezembro a fevereiro, quando o calor do sol é maior, para secar as mantas de carne expostas nos varais. O quilombo da Ilha do Barba Negra fornecia mão de obra barata às charqueadas e às estâncias.

O fato é que a expedição demorou e falhou em capturar quilombolas porque eles estavam prevenidos e conseguiram fugir a tempo pela ponta da Ilha de Canguçu. Dois dias antes do ataque, os quilombolas estiveram carneando na estância de Cabeçudas, de propriedade de D. Maria de Oliveira, irmã do cônego Salgado. Flores conta que gente como D. Maria de Oliveira e cônego Salgado sustentavam sua produção com o aluguel de escravos fugidos, que jamais eram denunciados, porque o silêncio servia aos interesses empresariais.

– Havia 16 quilombos no Rio Grande do Sul, tudo tranquilo e pacífico – conta Flores. – Era mão de obra barata!