Armando o tempo
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Ele veste o lenço branco dos chimangos e é conservador quando se trata de meteorologia. Confiando em indícios como o movimento dos animais e Usando instrumentos como um galo que muda de cor conforme a umidade, Armando Azambuja dá continuidade às tradições mais remotas de previsão do tempo

Armando Azambuja gosta de repetir uma história que ouviu certa vez, em uma festa, e que lhe foi apresentada como verídica. Segundo o relato, dois meteorologistas recém-formados apareceram na Campanha carregados de engenhocas e pediram licença a uma velhota para passar a noite na propriedade dela, fazendo medições atmosféricas. A mulher anuiu:

– Vou arrumar um quarto para vocês.

– Não tem necessidade, porque vamos passar a noite a céu aberto, botando aparelhagem – disseram os dois.

– Mas olha que vai chover –  insistiu a velha.

Com um sorriso de superioridade, os meteorologistas teriam então assegurado que não, que o céu estava lindo, estrelado, sem precipitação à vista.

– Bom. Mas vai chover. Vou deixar o quarto pronto para vocês – sacramentou a mulher.

Segundo Armando, “quando foi lá por meia-noite, começaram as nuvens a correr e a correr, e nuvem preta, e taparam a Lua, e já os caras meio que se olharam, e dali a pouco era água que Deus mandava”. A dupla teve de se abrigar. Na manhã seguinte, mal a velha levantou, os dois bateram à porta, ansiosos:

– Queremos saber como a senhora adivinhou que ia chover, se as nossas previsões não davam chuva.

A mulher esclareceu:

– Olha, tenho um burrinho que, quando o tempo está bom, ele nem aparece em casa, está sempre no fundo do campo. Mas quando vai vir bastante chuva ele aparece e vai para dentro do galpão, para se abrigar. Foi o que ele fez ontem.

Nessa altura da história, Armando Azambuja alarga uma pausa, antes de arrematar, contendo o riso:

– Os dois se olharam e disseram: “Mas, bá, então o burro sabe mais do que nós, que somos formados!”.

O meteorologista amador e um dos instrumentos que utiliza. Ele posta a previsão diariamente em sua página no Facebook

Se tal causo aconteceu mesmo ou não passa de invenção, pouco importa. A verdade contida nele, e que interessa aqui, é revelar algo sobre a persona do seu narrador. Armando talvez goste da história porque se enxerga nela, e no lado que se sai melhor. Ele é como a velhota ou, talvez, sem ofensa, como o burro. Vivente criado nas vastidões do pampa, acostumou-se desde menino a prestar atenção em detalhes da natureza geralmente desprezados pela meteorologia. A partir da umidade de uma parede, da cara da Lua em certa noite ou da direção em que o vento sopra, o corretor rural de 64 anos prepara suas próprias previsões e as compartilha com o mundo.

Todas as manhãs, bem cedo, depois de vestir a bombacha e atar um lenço branco ao pescoço, Armando vai até o pátio dos fundos de sua casa, no centro de Bagé. Ali, mantém um pluviômetro e um termômetro. Toma nota da temperatura e registra a quantidade de chuva, se é que houve. Atravessa o casarão centenário, sai pela porta da frente e, em plena rua, esquadrinha o céu, a névoa, as nuvens, a umidade no calçamento. Nunca deixa de lançar um olhar inquisitivo para os lados do Uruguai. O passo seguinte é sentar à frente do computador e confeccionar uma postagem no Facebook, como esta, de 20 de junho:

 

Bom dia! Agora são 5:55 da madrugada. Céu bem claro, sem nuvens, céu azul e estrelado. A lua minguante brilhando. Tempo bom. Vamos ter um dia lindo de sol. Caiu GEADA e grande. Esta de renguear cusco em ladeira. Lua Minguante. Vento Sudoeste. Temperatura 1 grau positivo e sensação térmica de -2 graus.

 

A meteorologia artesanal praticada por Armando é herdeira de uma tradição antiquíssima. Foi só no século 20 que a previsão do tempo ganhou contornos mais científicos, amparada em modelos matemáticos, imagens de satélite e computadores poderosos. Até então, e durante milênios, as pessoas tinham de se virar como podiam. Todo mundo precisava ser um pouco meteorologista, interpretando sinais da natureza para saber se o dia seguinte seria adequado para um plantio, para colocar uma canoa no mar ou para sair com a carroça estrada afora. Ditos populares, do gênero “cerração baixa, sol que racha”, resumiam os saberes – e também as superstições.

Em tempos modernos, foi no campo que essas tradições se mantiveram, ainda que combalidas, o que Armando atribui a uma convivência mais íntima, constante e sofrida com os elementos naturais – o sol, as estrelas, a chuva, o vento, a geada. Ele lamenta que essa velha meteorologia campeira esteja se perdendo:

– O que o pessoal de antigamente tinha para se guiar? Eles mesmos! Por isso que aprendiam, que sabiam. Moravam em campo aberto, no contato com a natureza, tinham oportunidade de ver as coisas. Se tu és bom observador, no decorrer dos anos tu vais encaixando as coisas, vais sabendo o que está relacionado com o quê. Hoje não há mais esse conhecimento. Para começar, tu contas nos dedos os que passam mais tempo no campo do que na cidade. Se tu bates na porta da minha casa e perguntas “Seu Armando está?”, vão responder: “Não: ele foi pra fora”. Isso já é uma mudança, porque se a pessoa foi para fora, quer dizer que ela está voltando. Antes, diriam: “Ele está pra fora”. Estar pra fora significava que a pessoa não ia voltar durante um mês, 60 dias. Além disso, quem ainda continua lá na Campanha não conserva os conhecimentos sobre o tempo, porque é muito fácil ligar a TV e ter a previsão pronta. A natureza diz muita coisa para a gente.

Nos tempos da infância de Armando, mais de meio século atrás, ainda havia muito pampiano que arriscava sua própria previsão do tempo. Uma dessas pessoas era um tio, Orsay Araújo. Na estância na região de Palmas, a 60 e tantos quilômetros da zona urbana de Bagé, o sobrinho cresceu vendo aquele homem cravar com alguma precisão o que ia acontecer no outro dia, em termos de precipitações e temperaturas. Ele era um guru local.

– Amanhã chove? – perguntavam os moradores.

– Não, não chove, porque o vento está assim, ou assado – ensinava Orsay.

Crescer ouvindo aqueles ensinamentos, diz Armando, ativou algo nele mesmo. Ainda era um adolescente e já acumulava noções meteorológicas – reais ou imaginárias. Conforme esse receituário, vento nordeste, por exemplo, significa umidade e puxa chuva. Mas se pela manhã houver cerração, a chuva não é forte. E dá para saber que vai ocorrer a cerração se, na noite anterior, houver um círculo em volta lua. Agora, se determinado tipo de lagarta começar a se amontoar no campo, caminhando umas por cima das outras, daí é sinal de temporal e enchente. Essa certeza é reforçada caso o gado e as ovelhas, que geralmente estão esparramados, comecem a se achegar uns aos outros, buscando proteção.

– O gado se defende. Ele conhece o clima. Então tu observas essas coisas, faz as tuas previsões e, daqui a pouco, começas a acertar – garante Armando.

E também a errar. Na manhã em que recebeu a visita de ZH, por exemplo, ele admitiu que vinha de um revés na véspera. No começo do dia, havia anunciado para seus seguidores, espalhados por diferentes cidades, Estados e até outros países, que Bagé teria tempo fechado, mas nenhuma chuva. Baseara-se em parte nas informações passadas, via Facebook, por um amigo morador de Piedra Sola, no meio do Uruguai.

– Ele me disse que até andava tropeando, com tempo bom e uma friagem bárbara. Eu me guio muito pelo Uruguai – explica Armando.

Não foi necessário esperar muito para ver a realidade espezinhar a previsão. De manhã mesmo, já chovia sobre Bagé.

– Eu acerto bastante. Vamos botar mais de 80%. Mas sou sujeito a erros. O clima está muito mudado. Então, errei. Mas os institutos de meteorologia erraram também. Porque quem sabe mesmo é o velhinho lá em cima.

Avô e bisavô lutaram em 1893 e 1923. do lado dos chimangos, claro

 

A visita de ZH ao meteorologista informal da Rainha da Fronteira deu-se em uma manhã de meados de junho. Quando a porta abriu, revelou-se a estampa de um gauchão de almanaque, bigodudo e pilchado. Se outra pessoa qualquer bater à mesma porta, vai encontrar Armando exatamente da mesma maneira. Com exceção de uma ou outra cerimônia de casamento que exija a formalidade de um terno, ele não é visto com outro traje há muitos anos. Chamam-no de “o homem do lenço branco”, por causa do acessório que há mais de três décadas amarra ao pescoço todo o santo dia, quando mal salta da cama, e que é sua marca registrada.

Armando tem uma bem fornida coleção do adereço, mais de 20 peças, todas de cetim e imaculadamente alvas. Até já ganhou finíssimos lenços de outras cores, mas declinou usá-los, por uma questão de princípio. Pois não é só no que diz respeito à caprichosa hermenêutica do clima que o bajeense se apega aos valores antigos – e é aqui que o leitor há de permitir uma digressão, antes que retomemos o tema meteorológico.

Lembrando as guerras civis do passado, Armando é um autodeclarado pica-pau, ou chimango. Como os antepassados embebidos das pelejas que ensanguentavam o Rio Grande, utiliza o pano descolorido para reafirmar essa posição.

– Sabes o que é o lenço branco? São os pica-paus. Na época, eram pica-paus de um lado e maragatos, lenços vermelhos, do outro. E a minha família era toda lenço-branco. Era seguidora do Júlio de Castilhos, que foi presidente do Estado. Defendia uma coisa. E os maragatos defendiam outra. Naquela época existiam dois partidos, não é como agora, 34 ou 36. E existia homem de vergonha.

Um dos episódios mais conhecidos e sangrentos da Revolução Federalista de 1893 foi o cerco de Bagé. A cidade estava sob controle de aliados do então presidente estadual Júlio de Castilhos, líder máximo dos pica-paus. Mas um contingente de 3 mil inimigos maragatos atacou e sitiou a urbe, sob o comando de Joca Tavares. A turma do lenço branco entrincheirou-se na Praça da Matriz e aguentou firme durante 47 dias. Entre os que resistiam estava Antônio Xavier de Azambuja, bisavô de Armando.

– Eles estavam quase perdendo a revolução para os maragatos na praça aqui da cidade. A coisa estava feia. Chegaram a comer carne de cavalo, porque estavam sem provimentos. Mas aí chegou reforço – relata o bisneto.

Os maragatos foram forçados a se retirar, depois de uma campanha que deixou centenas mortos e foi marcada pela selvageria das degolas em ambos os lados. Com a vitória dos chimangos, Júlio de Castilhos nomeou Antônio Azambuja como o primeiro intendente de Bagé. Três décadas depois, em 1923, os lenços colorados dos maragatos e os lenços brancos dos seguidores de Borges de Medeiros, o discípulo que havia sucedido Júlio de Castilhos na presidência do Estado, voltaram a se defrontar. Desta vez, foi o avô de Armando, seu homônimo, que representou os Azambuja.

Armando se criou entre pessoas que exibiam o adereço orgulhosamente. Guarda com carinho a foto em que, aos cinco anos, já usa o lenço, que lhe bate na cintura. Para ele, é uma forma de comunhão com as ideias dos antepassados, que associa ao governismo e também à ditadura militar implantada em 1964, que ele diz não ter sido uma ditadura.

– Meu tataravô, meu bisavô, meu avô, meu pai, eu, os meus filhos, o meu neto, é tudo lenço branco! Nasci dentro disso aí. Sempre de partido do governo. Hoje, não, que hoje não tem nenhum partido que represente o lenço branco. Os de antigamente estão tudo se revoltando na tumba. Mas antes sempre fui do lado do governo. Eu sou dos milicos. Na minha família é tudo militar. Tem gente que diz assim: “Ah, no tempo dos militares, a ditadura”. Eu digo: “Não, nós não tivemos ditadura, tivemos um regime militar”. Ditadura é o que temos hoje, porque metem tudo goela abaixo. Antes existia organização, disciplina, ordem. Existia tudo que era bom.

A Revolução de 1923, último confronto entre as duas facções, foi terminada com a assinatura do tratado de Pedras Altas. Após tanto tempo se matando, chimangos e maragatos chegaram a um acordo. Anos depois, quando o avô de Armando fundou o tradicional CTG 93, um dos símbolos escolhidos para representar a entidade foi o de dois lenços “acolherados” – o branco e o vermelho, unidos e em paz. Mas o homem do tempo de Bagé garante que as famílias do Interior ainda sabem quem é de um lado e quem é de outro, e que não há desgosto maior para um pai do que ver o filho usar ao colo a cor do adversário.

– Hoje não é comum que as pessoas se identifiquem como chimango ou maragato, como eu. Mas aqui em Bagé eu sei que tem uns que são maragatos. Se vão participar de um desfile, eles botam o lenço vermelho. Outros não usam, mas a gente sabe que são, pela família. A animosidade de antigamente não existe mais, porém, continua sendo uma coisa que chama atenção.

Armando em sua casa: meteorologista amador acorda todos os dias antes do amanhecer para coletar informações e postar a previsão no Facebook.

Muitas vezes, quando a conversa envereda pelos meandros da política, o melhor que se pode fazer é falar do tempo. Azambuja levantou-se do sofá e guiou a equipe de ZH até um aposento nos fundos da casa, onde mostrou um de seus mais confiáveis equipamentos para a previsão do tempo. Trata-se de uma parede. Ela estava pingando água.

– Essa parede é para o lado sul, dos castelhanos. Quando verte água, quando sua, significa chuva, umidade. Se o tempo firmou, ela seca na hora.

É instantâneo – explica.

Armando abriu em seguida a porta do pátio, para mostrar o pluviômetro e o termômetro. Este último havia quebrado horas antes, quando tentara protegê-lo das faceirices de sua cadela. Anunciou que substituiria o equipamento no mesmo dia, para não falhar o registro meteorológico da manhã seguinte. Seu plano era adquirir um termômetro novo dos camelôs de Bagé.

De volta à sala de estar e ao sofá, ele explicou que sua prática é muito distinta daquela levada a cabo pelos meteorologistas dos institutos especializados. Sua previsão é municipal. Só para Bagé, só para a zona onde sua vista alcança.

– Não posso fazer previsão para Porto Alegre. Não estou lá pra ver – sentencia.

Nessa sua zona geográfica de abrangência, não se intimida com Inpes, Inmets e Cptecs. Assim como às vezes erra e os institutos acertam, o contrário também acontece – mesmo que os institutos tenham “todos os alfarrábios necessários e aparelhagem de satélite”.

– Vocês já ouviram falar do Cléo Kuhn? Pois esses dias eu tive de dar nos dedos dele. Ele deu que ia chover e eu afirmei que não chovia. Não choveu. Sabem como eu sabia? Vou mostrar uma coisa para vocês.

Armando levantou-se e sumiu por alguns instantes. Retornou trazendo nas mãos uma dos mais sofisticadas tecnologias para previsão do tempo de que dispõe, recém-trazida da Europa: um daqueles pequenos galos que prometem mudar de cor, conforme a umidade, presente de uma amiga que esteve em Portugal.

– É uma coisa em que me baseio e dá certo. Funciona – diz Armando.

Várias pessoas confiam no tino meteorológico do bajeense. As curtidas das previsões no Facebook ficam entre 30 e 60 a cada dia. Volta e meia, alguém faz uma consulta sobre quais serão as condições, de forma a planejar suas atividades. Armando conta com orgulho a história de um amigo que pretendia fazer um transporte de gado para o frigorífico em uma sexta-feira, mas antecipou a faina em um dia por causa do seu prognóstico de chuva. Veio a sexta e despencou a chuvarada.

Uma rádio local também aposta nos dotes armandianos. Divulga os dados que ele compila, de chuva ou geada, e uma vez por mês recebe o meteorologista amador no estúdio para que apresente seu relatório mensal. Porque todas as medições de chuva e temperatura feitas por Armando são religiosamente anotadas em cadernos e no computador e depois são transformadas em atas que resumem o que aconteceu em cada mês e em cada ano. Está lá, por exemplo, que o mês mais chuvoso de 2014 e 2015 foi outubro, mas que em 2016 o título coube a abril.

Qual a relevância disso?

– Nenhuma. É uma coisa particular. Mas a história que foi escrita jamais será esquecida e apagada, porque está registrada. Então passam-se 10, 15 anos, e aí alguém diz: “Naquele ano de 2014, em Bagé, choveu 100mm”. E eu vou poder dizer: “Não, espera aí, que eu tenho anotado. Choveu 2 mil e pico” – exemplifica.

Naquela manhã, ao receber a visita de ZH, Armando já tinha cumprido a missão do dia. Antes das 6h, olhou para a rua, examinou a coloração do galinho, perscrutou o quadrante do vento, examinou a umidade na parede, constatou 5mm no pluviômetro e 8ºC no termômetro. Em seguida, postou seu veredito no Facebook:

 

Bom dia ! Agora são 5:55 da madrugada. Céu encoberto por uma névoa branca baixa. Vamos ter um dia encoberto, com nuvens, podendo no decorrer do dia ter aberturas de sol, e tarde e noite poderá ter chuva.

 

O tempo esteve firme até o final da tarde. Quando anoiteceu, veio um toró.

TEXTO

Itamar Melo

itamar.melo@zerohora.com.br

IMAGENS

Carlos Macedo

carlos.macedo@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Daniel Feix

daniel.feix@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

 

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

Armando o tempo
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