Onélia, 79 anos, ajuda a manter viva a linhagem de ex-escravos que adotaram terras inférteis renegadas pelos próprios donos

Os últimos moradores 
do Inferno
{

Onélia, seu marido, Alcíbio,

e o cunhado Nidinho são os únicos habitantes de rincão em Bagé que abrigava ex-escravos

P

regada numa porteira de madeira, a placa determina que é proibido passar. O estreito caminho de terra vermelha e capim afofado revela a disposição dos que ousaram desobedecer. Ao atravessá-la, pouco se ouve ou se vê, a não ser o cenário verdejante, o canto dos pássaros, o cricrilar dos grilos, o som quase ensurdecedor das cigarras e, por vezes, mugidos distantes. Os próximos quilômetros – cerca de oito – acabam não sendo o maior problema para quem desconhece a região. A falta de moradores, sim. Fora o trilho dos carros, não há como saber o rumo certo.

Mais adiante, surge uma bifurcação coberta por um gramado ralo. O lado esquerdo é florido. O da direita, quase sem vida. Se as flores não forem suficientes para atrair a atenção, a discreta prancha plástica com menos de 50 centímetros de comprimento, presa por um fio numa árvore, acaba sendo decisiva ao curioso – ali está o nome da localidade na qual se ingressa: Rincão do Inferno. Distante 90 quilômetros do centro de Bagé, a área de 45 hectares ganhou este nome por ter um solo pedregoso, de difícil acesso, coberto por vegetação rasteira e cactos. Historicamente, as terras foram renegadas pelos próprios donos e acabaram abrigando negros escravizados que fugiam das estâncias e também os libertos, mas sem rumo definido.

Quando a trilha fica ainda mais íngreme e as flores desaparecem, uma paisagem surge repentinamente e revela a dimensão do vale de montanhas de pedras interligadas, formando cânions e sumindo no horizonte. É o limite entre Bagé, Caçapava do Sul e Lavras do Sul, margeando o Arroio Camaquã-Chico. Deste ponto, a cerca de três quilômetros de distância, avista-se o que parece ser uma caixa d’água azul no alto de um dos morros. Fôlego e paciência são necessários para seguir a pé. A última das oito porteiras é aberta a 500 metros da casa, antes de se ingressar nas terras cercadas da família Franco. Lá, onde o vento parece fazer a curva, vivem os últimos moradores do Inferno: os aposentados Onélia Franco Marques, 79 anos, o marido, Alcíbio Franco, 63, e o irmão dele, Enildo Pires Franco, 64, o Nidinho.

 Os três mantêm viva a linhagem do escravo Anastácio Franco, avô de Onélia e tio em quarto grau dos irmãos. O sobrenome foi recebido de uma família bajeense que, no século 19, o transmitia aos seus submetidos, conforme a tradição da época.

As terras da família fazem parte do território quilombola Palmas, de 837,9 hectares, reconhecido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em fevereiro. As comunidades quilombolas são constituídas por descendentes de escravos, que se autodefinem a partir das relações com a terra, a ancestralidade, as tradições e as práticas culturais próprias. Segundo o Incra, como parte da reparação histórica, a política de regularização fundiária determina que as terras reconhecidas por decreto presidencial – último passo que falta para Palmas – sejam ocupadas apenas por estes remanescentes, como é o caso dos Franco.

Com memória afiada, Onélia recorda a chegada dos pais ao Rincão, depois de percorrerem com os 11 filhos as estâncias da região em busca de trabalho. Maria da Conceição e Nélio Marques Franco ganharam da mãe adotiva dela o pedaço de chão duro do Inferno.

– Ela agarrou meu pai e disse pra fazer uma casinha. Mas deram porque só tinha pedra. Nada se criava aqui – conta Onélia.

Sem terra fértil, plantavam a quilômetros de distância e também criavam cabras – os únicos animais que se adaptaram ao terreno. Na infância, Onélia lembra de caminhar quilômetros para apanhar butiás nos morros vizinhos, conhecidos como Pedra Amarela e Pedra da Laje. Até hoje, mesmo se apoiando numa bengala, ela arrasta os pés para subir cerca de cem metros de onde avista as duas pedras. Considera uma forma de manter vivas as próprias recordações. Outra característica preservada por ela é a fala singular dos moradores. Eles acrescentam uma letra a mais nos finais de algumas palavras terminadas em R, como flore, calore, amore e senhore.

– A gente buscava para fazer licore. Era um tempo bom – ela diz.

Silêncio e imensidão: Nidinho gosta de passar os finais de tarde em um barranco pedregoso, no morro onde vive

na companhia do silêncio

A família de Alcíbio e Nidinho chegou logo depois. A mãe, Marcilina Franco, era parente distante da avó de Onélia. Foi o patriarca, Felicíssimo Alves Franco, falecido há mais de 40 anos, quem construiu uma choupana de barro de duas peças para abrigar a mulher e os oitos filhos.

Desde os 13 anos, Alcíbio e o irmão aprenderam na lida dura do campo que a vida não seria fácil no Inferno. Em busca de trabalho, cumpriam o mesmo trajeto feito pelos pais de Onélia e se ofereciam para qualquer função. Por vezes, lembra Nidinho, eram obrigados a levar mochilas de pedras nas costas de uma estância a outra. Eram quilômetros a vencer, o dia inteiro. Também produziam carvão e cortavam mato. Ficavam meses longe de casa.

Quando não havia energia elétrica e água encanada, situação resolvida em 2007, poucos se atreviam a alcançar o topo do morro de pedra. Pais, irmãos, filhos e primos dos três foram morrendo de velhice ou deixando o rincão, um de cada vez, motivados pela falta de emprego e de acesso a serviços básicos, como assistência médica. Marcilina, a mãe de Alcíbio e Nidinho, só se mudou para a casa de um parente, no centro de Bagé, depois que o Alzheimer a atacou. Ela morreu no ano passado, aos 100 anos. Nidinho é quem mais sofre com saudade da mãe. Ao olhar para a casa da família ainda de pé ao lado de uma de alvenaria, de quatro peças, construída por ele, parece enxergar a mãe:

– Vou sempre conservar a casinha, inté a hora que Deus me der forças para fazer ela continuar de pé.

As últimas a sair do Inferno foram as filhas de Alcíbio, netas de Onélia – Nídia, hoje com 40 anos, e Solange, 38, moradoras de Lavras do Sul e Bagé.

– Criei os filhos e até quem não era. Ajudei a cuidar dos netos. Só saio daqui depois de morta – garante Onélia, enquanto conta a história e sorve mais um chimarrão, sentada no sofá instalado no pátio de casa. Onélia não pretende deixar a localidade.

– O silêncio é muito bom. Fico só um dia longe. Não aguento. Não me animo – reforça a mulher, que viajou a Porto Alegre algumas vezes e não gostou do que viu. – Tem muito movimento – resume.

A aposentada não teve vontade de se despedir do Rincão nem quando a única filha dela saiu da localidade ao abandonar o marido Alcíbio e os quatro filhos, há 30 anos. Pelo contrário, ajudou a criar as crianças e cuidou do genro. A solidão e a falta de opções de pretendentes acabaram aproximando Onélia e Alcíbio, que anos mais tarde passaram a viver como casal. Os dois seguem juntos, e convivem de forma pacífica com a filha de Onélia – hoje viúva. Em datas especiais e nos finais de semana do verão, o casal costuma receber filhos, netos e primos – ex-moradores da localidade – para encontros que varam a madrugada ao som do cavaquinho de Alcíbio. Com energia de sobra, apesar do diabetes e dos problemas no coração e nas articulações, Onélia ainda arrisca passos de samba e de tango, duas paixões cultivadas desde a adolescência, quando só saía para frequentar os bailes. Ela, que nunca foi à escola, também gosta de cantar e de declamar versos, alguns de sua criação, influenciada pela imensidão avistada da janela lilás da cozinha:

– A natureza ajuda.

Onélia mora na parte mais baixa do morro de pedra compartilhado com Nidinho – a casa dele fica no alto, a cerca de 300 metros do casal. Passa pelo menos um dia do mês apenas nas companhias dos seis cães: Ursinho, Amigo, Vigilante, Cavalinho, Cadum e Baixinho. É quando o marido vai de ônibus ao centro de Bagé para tratar a doença de Chagas, fazer compras e receber a aposentadoria. No dia em que a reportagem visitou a família, na primeira quinzena de março, ele estava na cidade. Na volta, que ocorre sempre à noite por causa da distância percorrida a pé – são cerca de 20 quilômetros da BR-153 até a casa –, Onélia costuma esperá-lo usando uma roupa de passeio e com água quente para o chimarrão:

– Chegou o anoitecê e, bah!, pego a cuia, venho para fora esperar o Alcíbio.

Na rotina que começa por volta das 7h, o casal se divide entre os afazeres domésticos. Enquanto o marido trata as galinhas, as cabras e os cães, Onélia varre a casa e o pátio e prepara as refeições:

– Gosto de tudo ajeitado. Planto muita flore também. Dou nome para cada plantinha.

Ainda sobra tempo para ela preparar ambrosia feita com leite de cabra e doce de abóbora (colhida no próprio terreno). Nos intervalos, os dois gostam de assistir aos noticiários. À noite, acompanham todas as novelas de diferentes canais. Vão dormir por volta da 1h.

e então fez-se a luz

Há 10 anos, lampiões e lamparinas foram trocados por lâmpadas, geladeiras, televisor e celulares nas terras dos Franco. A luz também garantiu o fim da água carregada em baldes. Onélia e Alcíbio têm chuveiro elétrico, água encanada com a ajuda de uma bomba elétrica e são apaixonados por televisão – a primeira deles na vida. Nidinho ainda prefere o banho frio no rio ou na torneira, que serve de chuveiro.

A chegada da energia elétrica também deu visibilidade aos remanescentes. Em 2010, inclusive, foi produzido um filme no Rincão, misturando realidade e ficção, que teve a participação dos três. A partir daí, as visitas de forasteiros ficaram mais constantes. Segundo Onélia, os campistas ficam impressionados com a beleza ainda rude do lugar. Outras novidades que vieram com a luz são a cobrança de uma quantia simbólica pela estadia nas terras da família e a oferta de compotas de doces – produzidas pela aposentada –, refrigerante, água, cerveja geladas a quem quiser comprar. Os viajantes ficam instalados próximos ao rio, sem qualquer vínculo com a família, numa descida de quase um quilômetro distante das casas. A cobrança é uma forma de engrossar as rendas escassas dos salários de aposentados. O dinheiro já ajudou Onélia a ampliar a peça onde são feitos almoços e jantares, se os campistas preferirem cozinhar, e a melhorar a própria moradia. Até a virada do século passado, os três moradores do rincão viviam numa casa de barro com cobertura de capim.

– Um moço veio acampar e me ensinou a fazer isso (cobrar) com os visitantes. Para nós, foi uma boa ajuda – conta Onélia.

Faceiros com as visitas, que quebram a rotina silenciosa, os três são conhecidos pela receptividade calorosa. Numa das janelas do grande salão, há um desenho de Alcíbio tocando violão. Foi feito a carvão pelo pintor bajeense Carlo Andrei, que visitou a família. As paredes cor-de-rosa são cobertas por mais de 500 fotografias tiradas ao lado de familiares e de pessoas que vieram de outras cidades e de outros Estados. As cópias sempre chegam por meio de outros visitantes, indicados por quem já passou pelo Rincão, ou pelos Correios – Alcíbio busca as correspondências na vizinhança mais próxima. Muitos visitantes acabam voltando.

– Fico faceira com a presença de gente diferente para nos contar uns causos. Os caminhantes sempre me encontram com a cara alegre – assegura Onélia.

Paredes da casa de Onélia são ornadas por fotos de familiares e visitantes. 
abaixo, Alcíbio no desenho a carvão do pintor Carlo Andrei

Nidinho quer casar

Ao contrário de Onélia e Alcíbio, Nidinho jamais esteve na capital dos gaúchos. Nem tem vontade:

– Nunca tive a intenção de me mudar daqui. De maneira nenhuma.

O homem que nunca teve um relógio, mas sabe as horas se orientando quando tem sol, viveu por anos numa cabana de capim ao lado da choupana de barro. Só a deixou quando um vendaval feito redemoinho arrancou o que viu pela frente, inclusive a casa de Nidinho – da qual resta apenas o esqueleto de madeira. Foi preciso a ajuda de um amigo para erguer as peças de alvenaria. Há um ano, ele não sai do Rincão do Inferno.

A última vez foi para se despedir da mãe morta, de quem cuidou até ela perder a visão e não caminhar mais. Sabia que a mãe queria ser enterrada do lado de casa, mas entendeu que o pedido seria complicado porque ela estava internada no centro de Bagé.

– Sinto a falta dela. Ainda bem que tenho o meu irmão e minha cunhada por aqui. E os meus cuscos, claro – completa.

Os dias se arrastam no alto da pedra habitada por Nidinho. Apenas os cães Liquida e Liquigás fazem companhia enquanto ele, que é gremista, ouve as notícias de futebol pelo rádio. Nos finais de tarde, depois de alimentar as galinhas e os dois amigos caninos, gosta de sentar ou ficar em pé sobre um barranco pedregoso de onde vê o pôr do sol.

– Nunca encontrei um lugar tão bonito como este que nós moremo. Só tenho ouvidos para os passarinhos e pro galo cantador. Aqui, posso andar de noite. Na cidade, certa hora já é impróprio andar na rua. É a ganância que destrói tudo – acredita.

Entre os desejos de Nidinho, que almeja chegar aos 100 anos com saúde suficiente para continuar pegando numa enxada e num machado, está a vontade de casar – revelada entre sorrisos envergonhados.  A escassez de mulheres solteiras no Rincão do Inferno o fez deixar em segundo plano, por décadas, a ideia de ter uma companheira. Nem mesmo as tentativas de Onélia de apresentar conhecidas nos bailes da região tiraram Nidinho da solteirice. E quando tocam no assunto, ele fica ainda mais acanhado. Começa a mexer sem parar nos cabelos brancos encaracolados e não para de rir de si mesmo.

– Não vou dizer que quero ficar sozinho sempre, né? Mas tô fazendo bem a lei dele (Deus). Tô esperando.

A esperança de Nidinho está na quantidade de visitantes que se atrevem a cruzar as oito porteiras até as casas dos Franco. Quem sabe, numa dessas investidas, ele encontre a alma gêmea.

– O lugar era dificultoso, e quase não vinha ninguém. Agora, tá aparecendo mais gente de longe do que os próprios de perto. Então, tudo tem uma hora. Deus deve ter marcado ela. Uma hora vai chegar. Entende?

Onélia não desiste de encontrar uma companheira para Nidinho. Reforça que cansou de ver o cunhado “solito”. Ela chegou a considerar que o nome do lugar seja capaz de afugentar alguma pretendente à futura cunhada. Até já pensou em mudá-lo para Rincão dos Franco. Mas no coração de Onélia e Nidinho, o Inferno tem outro nome.

– Se tivesse que dar um outro nome seria Paraíso. Mas dizem que já está registrado e não pode mudar. Ah! Mas no meu coração – resume Onélia, repetindo sílaba por sílaba – é PA-RA-Í-SO.

A história do lugar

- O Rincão do Inferno é uma das quatro regiões que compõem o quilombo das Palmas, formado também pelos rincões do Alves e da Pedreira e por Campo do Ourique. De Porto Alegre até a estrada vicinal que dá acesso ao quilombo, são aproximadamente 295 quilômetros.

- Em 2007, um grupo de pesquisadores da UFRGS visitou Palmas, considerada o quinto distrito de Bagé. Eles entrevistaram os quilombolas e reuniram registros históricos para reconstruir as trajetórias das famílias. O relatório sócio-histórico-antropológico concluiu que Palmas foi um quilombo. A maior parte dos moradores são descendentes da ex-escrava Margarida Saboia, que teria ganho as terras dos proprietários ou dos descendentes da Sesmaria dos Simões Pires. Na região, ela se envolveu com Antonico Maria Alves, que teria vindo da Banda Oriental (Uruguai). Outros descendem do avó de Onélia e dos ex-escravos Procópia e Baldino Soares Freitas, que chegaram em 1893.

- Na época de Margarida, Bagé presenciou conflitos como a Revolução Farroupilha (1835–1845), a Guerra do Paraguai (1893-1870) e a Revolução Federalista (1893-1895). A instabilidade levou escravos e negros libertos a se refugiarem na região fronteiriça. Muitos retornaram quando os conflitos acabaram e se fixaram na região.

- O processo de regularização de Palmas no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) foi aberto em 2005 e teve a publicação do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), em 2011.  Nesse período, foram cadastradas 23 famílias pertencentes à comunidade. O próximo passo é a publicação de um decreto presidencial autorizando as desapropriações. O Incra identificou 19 proprietários não descendentes de escravos em parte do território. Os imóveis desapropriados serão vistoriados e avaliados conforme os preços de mercado, pagando-se em dinheiro pelas terras e benfeitorias. Da área total declarada (837,9 hectares), 405 hectares já são de posse das famílias quilombolas Franco, Freitas, Soares e Pires.

TEXTO

Aline Custódio

aline.custodio@diariogaucho.com.br

IMAGENS

Mateus Bruxel

mateus.bruxel@diariogaucho.com.br

EDIÇÃO

Ticiano Osório

ticiano.osorio@zerohora.com.br

DESIGN

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

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Onélia, 79 anos, ajuda a manter viva a linhagem de ex-escravos que adotaram terras inférteis renegadas pelos próprios donos

Os últimos moradores do Inferno

Pregada numa porteira de madeira, a placa determina que é proibido passar. O estreito caminho de terra vermelha e capim afofado revela a disposição dos que ousaram desobedecer. Ao atravessá-la, pouco se ouve ou se vê, a não ser o cenário verdejante, o canto dos pássaros, o cricrilar dos grilos, o som quase ensurdecedor das cigarras e, por vezes, mugidos distantes. Os próximos quilômetros – cerca de oito – acabam não sendo o maior problema para quem desconhece a região. A falta de moradores, sim. Fora o trilho dos carros, não há como saber o rumo certo.

Mais adiante, surge uma bifurcação coberta por um gramado ralo. O lado esquerdo é florido. O da direita, quase sem vida. Se as flores não forem suficientes para atrair a atenção, a discreta prancha plástica com menos de 50 centímetros de comprimento, presa por um fio numa árvore, acaba sendo decisiva ao curioso – ali está o nome da localidade na qual se ingressa: Rincão do Inferno. Distante 90 quilômetros do centro de Bagé, a área de 45 hectares ganhou este nome por ter um solo pedregoso, de difícil acesso, coberto por vegetação rasteira e cactos. Historicamente, as terras foram renegadas pelos próprios donos e acabaram abrigando negros escravizados que fugiam das estâncias e também os libertos, mas sem rumo definido.

Quando a trilha fica ainda mais íngreme e as flores desaparecem, uma paisagem surge repentinamente e revela a dimensão do vale de montanhas de pedras interligadas, formando cânions e sumindo no horizonte. É o limite entre Bagé, Caçapava do Sul e Lavras do Sul, margeando o Arroio Camaquã-Chico. Deste ponto, a cerca de três quilômetros de distância, avista-se o que parece ser uma caixa d’água azul no alto de um dos morros. Fôlego e paciência são necessários para seguir a pé. A última das oito porteiras é aberta a 500 metros da casa, antes de se ingressar nas terras cercadas da família Franco. Lá, onde o vento parece fazer a curva, vivem os últimos moradores do Inferno: os aposentados Onélia Franco Marques, 79 anos, o marido, Alcíbio Franco, 63, e o irmão dele, Enildo Pires Franco, 64, o Nidinho.

 Os três mantêm viva a linhagem do escravo Anastácio Franco, avô de Onélia e tio em quarto grau dos irmãos. O sobrenome foi recebido de uma família bajeense que, no século 19, o transmitia aos seus submetidos, conforme a tradição da época.

As terras da família fazem parte do território quilombola Palmas, de 837,9 hectares, reconhecido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em fevereiro. As comunidades quilombolas são constituídas por descendentes de escravos, que se autodefinem a partir das relações com a terra, a ancestralidade, as tradições e as práticas culturais próprias. Segundo o Incra, como parte da reparação histórica, a política de regularização fundiária determina que as terras reconhecidas por decreto presidencial – último passo que falta para Palmas – sejam ocupadas apenas por estes remanescentes, como é o caso dos Franco.

Com memória afiada, Onélia recorda a chegada dos pais ao Rincão, depois de percorrerem com os 11 filhos as estâncias da região em busca de trabalho. Maria da Conceição e Nélio Marques Franco ganharam da mãe adotiva dela o pedaço de chão duro do Inferno.

– Ela agarrou meu pai e disse pra fazer uma casinha. Mas deram porque só tinha pedra. Nada se criava aqui – conta Onélia.

Sem terra fértil, plantavam a quilômetros de distância e também criavam cabras – os únicos animais que se adaptaram ao terreno. Na infância, Onélia lembra de caminhar quilômetros para apanhar butiás nos morros vizinhos, conhecidos como Pedra Amarela e Pedra da Laje. Até hoje, mesmo se apoiando numa bengala, ela arrasta os pés para subir cerca de cem metros de onde avista as duas pedras. Considera uma forma de manter vivas as próprias recordações. Outra característica preservada por ela é a fala singular dos moradores. Eles acrescentam uma letra a mais nos finais de algumas palavras terminadas em R, como flore, calore, amore e senhore.

– A gente buscava para fazer licore. Era um tempo bom – ela diz.

Silêncio e imensidão: Nidinho gosta de passar os finais de tarde em um barranco pedregoso, no morro onde vive