Em harmonia com a natureza
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Você já ouviu falar em permacultura? trata-se de um estilo de vida totalmente sustentável que encontrou, em Bagé, um casal de adeptos e divulgadores. Eles mostram onde vivem – em sintonia absoluta com o meio ambiente

No fim da noite, à mesa de um restaurante no centro de Bagé, João Rockett deixou escapar que o primeiro contato feito pela equipe de Zero Hora, várias horas antes, havia sido algo desencorajador.

Pelo telefone, eu pedira para encontrá-lo, porque soubera que vivia em uma casa construída com fardos de palha. Rockett farejou ali uma sólida ignorância, à qual,

de resto, está bastante acostumado, acrescida do risco de ser caricaturado nas páginas do jornal como um natureba esquisitão. Felizmente, não mencionei no telefonema a outra vaga referência que havia recebido sobre ele, a de que supostamente fazia as necessidades no solo.

Apesar de ressabiado, Rockett convidou a equipe de reportagem a visitar a propriedade de oito hectares onde vive e que funciona como sede do Instituto de Permacultura do Pampa (Ipep), a entidade que comanda. Não foram necessários mais do que alguns minutos no local para perceber que ele tinha razões de sobra para ficar desconfiado.

O fato é que havíamos nos deslocado até lá movidos por uma curiosidade desinformada, esperando encontrar algo pitoresco. Deparamos com uma realidade mais complexa, com duas pessoas – Rockett e a mulher, Tatiana Cavaçana – tentando provar que é possível viver segundo uma lógica diferente, sustentável, renovável, de baixo impacto para o ambiente.

– Você sabe alguma coisa sobre permacultura? – questionou Rockett,

logo que ultrapassamos a porteira.

– Bem pouco – menti, exagerando meus conhecimentos.

Logo na entrada da propriedade havia um biodigestor, equipamento no qual o casal deposita restos de animais e de vegetais – lixo, em outras palavras – para gerar biogás, que é utilizado como fonte de energia.

Eles também contam com um gerador eólico e com um aquecedor à lenha que esquenta a água. A caminhonete teve o motor adaptado pelo próprio Rockett para andar com óleo de cozinha usado – que ele recolhe entre amigos ou compra de empresas especializadas em coletá-lo. Com várias fontes alternativas de energia à mão, a área não depende da rede de eletricidade.

– Em permacultura se diz que cada função importante deve ser suprida por mais de um elemento. Energia é uma função importante. Cada construção aqui tem um sistema diferente, autônomo.

Se essa fonte de energia falhar, o resto não está comprometido. Temos conexão à rede elétrica, a ideia não é “não queremos mais saber de vocês”, mas ela fica aí como uma alternativa – explica Tatiana.

Rockett avançou pelo terreno em direção ao que explicou ser uma “estrutura geodésica”. É como uma grande oca indígena, que, depois de pronta, funcionaria como sala de aula. O esqueleto havia sido feito de madeira de reflorestamento, e as paredes, com palha de santa-fé, uma espécie de capim que brota em todo o pampa. Na base da parede, ao redor da estrutura, havia várias aberturas para a entrada de ar mais fresco, no verão. Uma saída para o ar quente pode ser vista no alto. Dessa forma, garante-se uma certa refrigeração.

Outra abertura, exatamente no topo do edifício, recoberta com vidro, responde pela chamada iluminação zenital. O princípio é que um vão no alto permite a entrada de muito mais luz do que janelas laterais, devido à inclinação do sol. Ou seja, a necessidade de acender uma lâmpada e gastar eletricidade fica reduzida.

– O eixo da permacultura é o design, é como eu organizo os elementos dentro de um sistema para tirar o máximo proveito deles, impactando o menos possível.

O nosso objetivo aqui é multiplicar essa ideia – enuncia Rockett.

João Rockett e Tatiana Cavaçana diante dos produtos que cultivam (acima, a horta e sua residência). Todas as imagens desta reportagem são de autoria do casal

BARRO NO LUGAR DE CIMENTO

Ele conduz a reportagem até uma área atrás da residência do casal – o cartão de visitas da propriedade, sobre a qual falaremos depois – para mostrar como funciona o abastecimento de água do complexo. A água é encanada, mas não está conectada a nenhuma rede pública. Vem da chuva, recolhida em cisternas instaladas em cada uma das edificações. No total, são 120 mil litros armazenados. Se algum dia essa fonte secar, ainda há um poço e uma bomba junto ao rio. Rocket abre uma porta e mostra um conjunto de chuveiros. O banho sai quente, graças a um boiler com aquecimento à lenha.

Nas proximidades fica uma casa que, no começo da década passada, Rockett sonhou replicar por todo o país, como uma solução barata, humana e ecológica para o déficit habitacional brasileiro. Ele é um crítico ferrenho do tipo de moradia popular que se faz no Brasil. Em uma palestra que proferiu no salão nobre da  prefeitura de Bagé, no mesmo dia em que recebeu ZH, projetou para a plateia a foto de um conjunto residencial construído na Amazônia.

A imagem mostrava uma área em que a floresta fora devastada para que se semeassem, uma grudada à outra, centenas de diminutas casas de alvenaria rigorosamente iguais, espalhadas por ruas também rigorosamente iguais. Rockett disse ao público que cada moradia recebera um aquecedor de água, apesar de o calor na região beirar o insuportável.

– Que vida uma pessoa vai ter dentro de uma casa dessas? Isso é um campo de concentração. É um plano para aumentar a violência, é o desmoronamento do indivíduo, é a perda da personalidade.

É tudo tão igual que talvez tu nem consigas achar a tua casa – observou.

A alternativa que Rockett desenvolveu, financiado por uma fundação norte-americana, foi uma casa de terra, feita com uma técnica chamada superadobe. O barro é ensacado, e os sacos são empilhados e socados, formando as paredes. Nessa técnica, não há necessidade de madeiramento. O plano era que os moradores construíssem as casas, em mutirões.

– A vantagem é que posso chegar com um balde e uma pá, cavoucar o terreno e fazer a casa com a pilha de terra – justificou.

Outra vantagem diz respeito às próprias qualidades do material. Enquanto as casas de concreto são um inferno de calor e não oferecem qualquer tipo de isolamento acústico, a parede de barro tem características opostas. Ela isola o som, por exemplo, oferecendo privacidade e sossego aos vizinhos.

– O cimento é um elemento morto.

O barro está vivo. É uma membrana plasmática. Quando a umidade do ar está em excesso, ele a absorve e a reduz. Quando está baixa, ele devolve. Na Alemanha, onde há muito problema de umidade no inverno, muito mofo na parede e nos móveis, é normal arrancar o reboco de cimento e colocar barro, para fazer o controle de umidade – conta Rockett.

Apesar dos planos ambiciosos, a única casa de barro construída no projeto foi mesmo a do Ipep.

– Não foi adiante. Não vai. Hoje eu não faria um projeto desses de novo. Diante de toda essa lavagem de dinheiro, desse roubo, pensar em propor isso ao governo é loucura. Porque a história é construir, construir, construir, para poder desviar. E a ideia era ensinar as pessoas a fazer as próprias casas, sustentáveis, baratas, com sistema de saneamento e coleta da água da chuva...

PERMANENTE +CULTURA

João Harry Rockett nasceu em Bagé, há 55 anos, bisneto de um inglês que veio ao Rio Grande do Sul para construir estradas de ferro e acabou ficando. Ele se criou na zona urbana, mas desde cedo sentiu uma forte atração pela terra. Passava temporadas na propriedade rural do avô, em Pinheiro Machado. Preferia ir ao campo de que à praia. Reverenciava a natureza.

Esse entusiasmo levou-o ao curso de Agronomia, mas logo sentiu-se deslocado. Rejeitava o modelo de produção industrial, as grandes lavouras de monocultura, a pecuária intensiva. Não aceitava que, em lugar de agricultura, agora se falasse em agronegócio. Largou o curso.

– Tiraram a palavra cultura e colocaram a palavra negócio. A intenção por trás disso é que todo o processo de produção do alimento passou a ser um negócio. Antes, nós plantávamos para comer. Hoje, é para ganhar dinheiro. Quem planta hoje não tem mais contato com aquilo, então bota quanto veneno quiser, porque não é ele que vai comer. Quando olham para uma lavoura industrial, as pessoas acham lindo. Eu acho um crime. Afinal, o que sobrevive numa monocultura? Nada. Não tem vida – critica.

Rockett tentou a faculdade de Biologia, mas também desistiu. Nunca se formou – porque não coube na “fôrma”, brinca. Mesmo assim, foi trabalhar no meio rural. Começou a multiplicar sementes de hortaliças para repassar a agricultores. No princípio, fazia como todo mundo: para produzir, aplicava veneno nas plantas.

Mas, em determinado momento, ele teve uma ideia transformadora. Pensou que, para existir uma agricultura verdadeiramente orgânica, as sementes utilizadas também precisavam ser orgânicas, sem adição de químicos. Rockett apresentou a ideia à cooperativa de um assentamento e, assim, nasceu a BioNatur, empresa pioneira na América Latina na produção de sementes agroecológicas, sediada em Candiota.

– A semente tem memória. Se tu tens uma planta que recebe produto químico durante décadas, isso vai estar na memória da planta. É como uma mãe que fuma na gravidez.

A criança pode nascer com alguma coisa. Então o que eu discutia na época é que, se vou trabalhar orgânico com uma semente dessas, a planta tem uma deficiência – defende.

Um dia, duas décadas atrás, em uma reunião sobre resgate de sementes realizada em Porto Alegre, Rockett foi abordado pelo iraniano Ali Sharif (1953–2017). Vindo de uma família de produtores de pistache, Sharif havia viajado aos Estados Unidos, em 1984, para fazer um curso com o cientista australiano

Bill Mollison (1928–2016), o pai da permacultura. Ao longo de sua carreira, Mollison vislumbrou a possibilidade de desenvolver um sistema de vida sustentável, eficiente e ecologicamente harmonioso, baseado em intervenções em quatro eixos: água, energia, alimento e habitação. Ele deu projeção a essa filosofia em 1978, ao publicar o livro Permaculture One: A Perennial Agriculture for Human Settlements. O conceito que apresentou ao mundo vinha da junção das palavras “permanente” e “cultura”.

Sharif foi dos primeiros discípulos de Mollison. Terminado o curso, o mestre perguntou ao pupilo:

– O que você vai fazer com isso agora?

– O que você mandar – respondeu o iraniano.

Mollison pegou um mapa e mostrou que não havia nenhum instituto de difusão da permacultura na América Latina. Sharif transferiu-se para o continente com o objetivo de criá-lo. E foi assim que, em 1998, em Porto Alegre, abordou Rockett para oferecer ajuda e recursos no projeto das sementes orgânicas. Tempos depois, apresentou uma proposta. A intenção era criar centros de permacultura em cada um dos principais biomas brasileiros. O bajeense foi convidado a assumir a iniciativa no pampa. Deixou a BioNatur e fundou, no ano 2000, não muito longe do centro de Bagé, o Ipep.

A finalidade do empreendimento é divulgar a permacultura e demonstrar, na prática, que ela funciona. Uma fonte de financiamento para esse trabalho são as consultorias, pelo Brasil e no Exterior. Rockett costuma ser contratado por empresas ou organizações interessadas em adotar práticas mais sustentáveis e eficientes.

Ele chega, faz o que chama de leitura da paisagem e oferece soluções. Muitas vezes são coisas simples, como orientar um hotel que mantém todos os aparelhos de frigobar dentro de armários a fazer aberturas para entrada de ar, de forma que o equipamento não precise trabalhar tanto para tirar calor de seu interior. Rocket conta que conseguiu reduzir em 37% o consumo de energia num hotel mineiro, só com medidas como repensar as janelas.

– Quando me chamam para fazer consultoria, o meu cliente é o

planeta – afirma ele.

“PRINCÍPIO  DO CONSÓRCIO”

No Ipep, Rockett e Tatiana (uma designer paulistana que conheceu o companheiro em 2010, em Minas Gerais) ministram vários cursos e oferecem programas de visitação, apresentando o que construíram. Mostram, por exemplo, a horta em que produzem tomate, pimentão, hortaliças folhosas, frutas e ervilhas. Eles praticam ali o princípio do consórcio, ou seja, aproximar plantas que criam uma sinergia, ajudando-se mutuamente a crescer. Também cultivam trigo, cevada e uma quantidade de arroz que os alimenta pelo ano inteiro. Trabalham em um projeto para demonstrar que, mesmo tendo só um metro quadrado dentro de um apartamento, qualquer um pode cultivar uma quantidade respeitável de alimentos.

– O que plantamos dá e sobra para nossa subsistência. Quando comi pela primeira vez o arroz que a gente plantou, que é arroz fresco, não o arroz que passou por secagem, me dei conta do lixo de vida que a gente tem na cidade. Nunca uma pessoa de Porto Alegre e de São Paulo vai poder comprar um arroz fresco, porque ele não tem tempo de prateleira. Mas quando você come o arroz que é colhido e não é seco, não consegue mais comer outro. Ele é incomparável em termos de sabor e de qualidade nutricional – defende Tatiana.

Outra coisa que o casal mostra – e orienta como fazer – é o telhado verde. Nessa técnica, coloca-se uma lona sobre o madeirame do teto e, sobre ela, depositam-se bandejas com 10 a 15 centímetros de terra, na qual viceja a vegetação. Esse passa a ser o telhado da casa. Como é um material ecológico, representa um impacto para o ambiente menor do que no caso de uma telha de barro, de zinco ou de brasilit. Outra vantagem é o efeito térmico. O interior da casa fica com uma diferença de temperatura de até 4,5ºC em relação ao exterior – para baixo, se estiver quente, e para cima, se estiver frio – porque a troca de ar entre o lado de dentro e o de fora leva mais tempo para acontecer através da terra do que com materiais convencionais.

Além disso, o telhado verde absorve 75% da chuva. Na hora da enxurrada, a terra vai se empapando de água. Só começa a pingar, devagar, depois de algumas horas, quando saturou. Por causa dessa característica, bairros em cidades europeias conseguiram eliminar problemas crônicos de alagamento apenas investindo na colocação maciça de telhados verdes.

– Quando a gente constrói uma casa, é como se arrancasse a vegetação e colocasse a casa em cima. Com o telhado verde, a gente arranca as plantas, coloca a casa e depois põe as plantas de volta. Isso significa que estou melhorando a qualidade do ar, permitindo que insetos e borboletas sigam vivendo ali. Na Alemanha, já deve haver entre 15% e 20% de telhado verde nas construções. No Brasil, quando comecei a falar disso, não me levavam a sério, achavam loucura da minha parte. O pessoal não tem formação, não tem mundo, não tem leitura – lamenta Rockett.

A principal edificação na área do Ipep é a casa na qual Rockett e Tatiana vivem, uma construção espaçosa e imponente, com dois pavimentos. Uma de suas particularidades é dispor de um banheiro seco, sem uso de água para descarga. Depois de usar uma das duas privadas instaladas lado a lado, deve-se colocar um pouco de serragem em seu interior. Em contato com as fezes e com a urina, o material provoca uma reação química que elimina o mau cheiro. As necessidades e a serragem caem em dois reservatórios, um para cada privada, que ficam do lado de fora da residência.

Cada vaso sanitário é usado alternadamente.

– Vai acumulando dentro do reservatório. Depois de seis meses, paro de usar um e começo a usar o outro. Nesse período, morreram os patógenos todos. Uma vez por ano, abro o compartimento e retiro o material. Ele se transforma num pó, sem cheiro, que é usado como adubo para plantio de árvores – explica Rockett.

As paredes da casa foram feitas com fardos de feno e rebocadas com barro retirado do próprio terreno. O telhado, piramidal, é todo de santa-fé. A madeira é de eucaliptos plantados na região. Os ângulos de janelas e beirais foram calculados para que a residência receba os raios solares no inverno, mas não no verão. Durante os meses mais frios, o sol entra das 9h30min até as 15h30min, aquecendo o piso, que armazena esse calor para dissipá-lo no ambiente.

O buraco de onde saiu o barro para construção das paredes, por sua vez, foi transformado em um lago no qual a luz do sol reflete pela manhã, bate em um vidro e projeta luz na residência. Essas técnicas, combinadas com os materiais utilizados, garantem iluminação natural e uma temperatura interna sempre na faixa dos 20ºC aos 26ºC, não importa se esteja gelado ou fervendo na rua. Graças a isso, não há necessidade de ar-condicionado.

A casa é um exemplo da chamada bioconstrução. Todo o material vem das redondezas.

– Nossa casa se levanta do ambiente e, um dia, quando deixar de existir, ela vai voltar para o ambiente. Vai se reintegrar a ele. Sem impacto nenhum, porque ela não tem contaminantes. Na permacultura, desenhamos uma área de forma que ela funcione como um organismo integrado.

O mais importante é viver uma vida verdadeira, sem artificialidades. E nós estamos abrindo as portas da nossa vida para quem quiser ver – anuncia Tatiana.

 

SAIBA MAIS

> Confira mais sobre o trabalho do Instituto de Permacultura do Pampa (Ipep) no site ipep.org.br.

 

> Conheça também o trabalho de fotografia de João Rockett e Tatiana Cavaçana em materama.com.br.

TOPO

TEXTO

Itamar Melo

itamar.melo@zerohora.com.br

IMAGENS

João Rockett e

Tatiana Cavaçana

Divulgação

EDIÇÃO

Daniel Feix

daniel.feix@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

 

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

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