Cachorrada reunida
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Em Arroio dos Ratos, GISLANE DE BEM, amante dos animais, assumiu a tarefa de cuidar de cães abandonados e deficientes. Já são 329 em sua propriedade rural

Por telefone, Gislane de Bem, 59 anos, explica como chegar ao sítio onde mora. Mais importante do que as orientações para cumprir os 65 quilômetros entre Porto Alegre e a zona rural de Arroio dos Ratos, é um alerta repetido mais de uma vez:

– Venham com roupas de guerra!

Na falta de um fardamento próprio para conflitos, escolhemos, eu e o fotógrafo, naquela manhã ensolarada e friazinha de fins de outubro, peças que pudessem ser avariadas sem nos provocar pesar: jeans com alta quilometragem e um moletom cheio de pelos de gatos que nunca é visto em público (meu caso), calça com remendos, “camiseta para fazer fuzarca com meus cães” e tênis para pedalar na chuva e no barro (modelito do fotógrafo). Malvestidos, partimos.

A fachada da casa de tijolos não dá pista do que há por trás, em cinco hectares e meio de terra. Se pedissem para adivinhar do que se trata, a aposta mais rápida provavelmente seria: uma colônia de férias para crianças. São duas dezenas de casinhas de bonecas pelo pátio, mais de 70 beliches e treliches cobertos por lençóis coloridos, letreiros com motivos infantis nas paredes, um açude, área verde para correr e brincar. Mas quem habita o Sítio da Vovó Gi – Lar e Centro de Recuperação de Animais são 329 cachorros, 96 deles (quase 30%) deficientes físicos, com problemas de mobilidade decorrentes de acidentes e doenças. Os cães levados ao local geralmente foram resgatados por protetores que não têm onde abrigá-los e pagam uma contribuição para mantê-los ali. Há casos de famílias que se mudam de uma residência com pátio para um apartamento e não têm como levar junto um bicho de grande porte ou que não podem – ou não querem – prestar os cuidados exigidos por um pet  paraplégico.

Não importa a procedência, existe uma regra inviolável: quem entra no sítio não sai mais. Os cachorros não estão disponíveis para adoção, apenas para serem apadrinhados e terem as despesas custeadas. O destino da cachorrada, transposto o portão da frente, é ficar ali para sempre.

– A gente convive com eles 24 horas. Eu me apego a eles, eles se apegam a mim. Aqui eles são livres. Vieram do nada, de uma vida desgraçada, e viram o paraíso – explica Gi.

No sítio não existem canis, cubículos, correntes. Todos vivem soltos. Gislane se horroriza com animais confinados em espaços exíguos. Na propriedade ao lado, com canis, Gislane afirma que animais passam horas a fio sob a quentura do sol de verão. Não suportando mais a visão dos bichos trancafiados, cobriu a cerca que divide os dois terrenos com telhas e plantas.

– Chega a doer a alma. Isso não é vida. Deixa na rua então que eles têm mais chance de encontrar uma família, uma vida digna. Comida não é tudo – justifica Gislane, que só recebe novos hóspedes se tem condições de garantir boa alimentação, abrigo e acompanhamento veterinário. – Se não é para dar uma vida boa, eu não pego.

A recomendação que ela havia nos dado quanto ao vestuário logo se justifica: os bichos se agitam com a presença de visitantes, pulam, enroscam-se nas pernas, querem afagos, oferecem lambidas. Jesus, Fred, Fabiano, Melo, Costelinha, Hugo Beauty e outras dezenas recepcionam a equipe de ZH. São cachorros de raça, vira-latas e misturados, numa variedade encantadora de cores, pelagens e tamanhos, dando a impressão de que se movem como em um redemoinho, prestes a tragar quem chega. Há de se firmar bem os pés quando um dos grandalhões se ergue para saudar com um abraço. Os deficientes não ficam atrás no quesito empolgação – acompanham os demais e também querem atenção, deslocando-se ágeis com as patas da frente, arrastando os traseiros pelo chão. Pantera, que desenvolve imediata afeição por esta repórter, é uma delas. Com uma das patas de trás enfaixadas, a cadela preta anda de arrasto. Quando senta, recosta-se em mim. Durante a entrevista com Gislane, Pantera enfia a cabeça entre as minhas pernas e mantém o olhar fixo no meu rosto.

Vidão de cão

Os cachorros da Vovó Gi têm  atendimento veterinário, terreno espaçoso e até açude .

– Não vejo eles como deficientes, como coitadinhos. São cachorros. Reabilitei quantos? Já perdi a conta. O chão reergue eles, a areia, a nossa presença. Eles querem a gente – explica.

Formada em Psicologia, Gislane manteve uma escola de Educação Infantil na Capital por 25 anos. Era um lugar de crianças e também de animais – os pequenos conviviam com coelho, tartaruga, periquito, todos soltos. De família de fazendeiros, ela sempre nutriu o gosto pela bicharada. Desgostosa com a rotina de educadora e a sensação de impotência diante de situações envolvendo as famílias que atendia, além de ter o desafio de manter a instituição viável financeiramente, resolveu encerrar as atividades. À época, ainda não tinha ideia de que abraçaria mais de três centenas de cães – desejava, apenas, isolar-se um pouco.

– Minha garganta já estava desse tamanho de engolir sapo – recorda. – Eu queria morar no mato, morar no mato, morar no mato! Nem sonhava que minha vida ia virar isso aqui.

Gislane não tinha dinheiro para comprar o sítio quando a oferta surgiu, mas uma série de eventos que lhe abriu os caminhos até a assinatura do contrato a levou a crer que estava predestinada àquele lugar. Ricardo, um de seus quatro filhos, formou-se depois em Medicina Veterinária e se especializou em fisioterapia. Ajudando o filho no trabalho, ela teve contato com animais deficientes. Alguns se hospedavam na clínica, e Gi foi se afeiçoando:

– Senti como se aquele fosse o meu caminho.

A partir de 2010, cães da clínica foram transferidos ao sítio, virando os primeiros desbravadores daquela imensidão de terra e liberdade. Larinha, vira-lata peluda branquinha que não andava, está lá até hoje e já consegue se movimentar, mas ainda amarga a falta de um financiador. Seguiram-se Lavan, Kitéria – que de tão debilitada parecia empalhada, tamanho o comprometimento de sua mobilidade –, Laila, Canguru (sem as patas da frente), a preta de patas tortas Gisele, a labradora Mel, o poodle Bobinho, a pelo de arame Duda, Babi – esta, vítima de um ataque atroz, um estupro cometido por um homem. Gislane começava ali sua maior e mais ambiciosa missão. Como informa seu perfil no Facebook, sua função no Sítio da Vovó Gi é “líder da matilha”.

Alguns animais já vêm batizados, outros carecem de nomes. Em alguns casos, há trocas – por exemplo, Vitório virou Costelinha, Marlon agora é Rafael. Gi garante saber todos de cor e jamais se atrapalhar.

– Como você memoriza todos? – questiono.

– Não sei. Como você memoriza o nome de um filho? – devolve ela.

– Mas eu não tenho 329 filhos!

– Se tivesse, memorizaria!

Gislane abriu mão do seu quarto na residência confortável de mais de cem metros quadrados que é sede do sítio para ficar perto dos “filhos” durante a noite, em um galpão de madeira. A supercama de casal, o “trono da rainha”, como ela denomina a estrutura suspensa no centro do dormitório, acolhe sempre os mesmos ocupantes na hora de dormir: Canguru (que sobe a escadinha feito um foguete, mesmo desprovida das patas dianteiras), Fumaça, Clóvis, Babi, Chaves, Bidu, Bobinho, Vitória. Os demais repousam nas respectivas camas – todos sabem qual é a sua.

Há muito tempo, Gi diz não saber o que é descansar. Seu sono é entrecortado, em capítulos, com interrupções provocadas por qualquer movimentação – se um cusco acorda para fazer xixi ou cocô, acaba despertando outros e criando balbúrdia. Consta que Rodolfo, um fila enorme diagnosticado com glaucoma, é o único que ronca.

Em noites de tormenta, os medrosos são autorizados a subir também no trono real. Na cama lotada – o número de ocupantes pode alcançar 50 –, Gi tem de ir abrindo espaço entre a massa peluda de corpos para se acomodar, empurrando um para cá e outro para lá. Dureza, ela reconhece, dando uma gargalhada:

– Mas eu não sinto frio no inverno. Você sente!

Vidão de cão

Os cachorros dormem em beliches e treliches.

Christian dos Santos, 18 anos, um dos 11 ajudantes na lida diária, é apegado a bichos desde pequeno. Seus melhores amigos caninos são Gal Costa, que costuma esperá-lo no portão, e Fabiano. Responsável pelos banhos, o jovem atua em um recanto com um quê de salão de beleza: há banheiras, secadores de cabelo, xampus, condicionadores, utensílios para tosa e laços de fita.

– Limpo ouvido, corto unha, coloco enfeite. E depois de tudo tiro foto – enumera Christian, levando a tiracolo a câmera com que capta as imagens que abastecem a página do sítio no Facebook.

Por dia, são pelos menos 10 “clientes” para atendimento – os mais frequentes são aqueles com dificuldades para andar e, consequentemente, defecar e urinar, que acabam se sujando mais. Os novatos no sítio tendem a apresentar mais resistência à água, enquanto outros, como Nilo e Chaplin, relaxam tanto durante a esfregação que até cochilam. Tem cachorros que nunca tomaram banho, enquanto outros, como Princesa, só conhecem a água do açude. E o bodum?

– Cachorro que vive no campo não tem cheiro ruim – garante Gi.

O acesso aos comedouros e bebedouros é livre. Por mês, são compradas entre três e quatro toneladas de ração, entregues de caminhão. Quatro máquinas de lavar funcionam sem descanso com a roupa de cama. Nove armários de duas portas cada um são repletos de medicamentos: antibióticos, anti-inflamatórios, soro antiofídico, complexos vitamínicos. Uma solução preventiva para pulgas é pulverizada no ambiente duas vezes por ano. O sortimento de remédios é tão grande que, dia desses, até o veterinário Arthur Ehlers, 36 anos, socorreu-se da farmácia de Gi, pegando emprestados alguns comprimidos. Ehlers é parceiro do sítio, onde realiza atendimentos semanais.

– Quando cheguei aqui, fiquei de boca aberta com a organização e as boas condições. Cachorro gosta de estar na rua, de viver em bando. Me apaixonei – elogia o veterinário.

Os problemas de saúde mais comuns são os de pele, como sarna e alergias. Tudo é registrado em um caderno. O caso recente mais grave foi o de Shakira, uma akita branca que não resistiu a um grave tumor na boca e morreu na véspera da quarta cirurgia.

Gislane se nega a sacrificar animais:

– Só Deus tira a vida. Ninguém mais tem esse direito.

Tratores abrem buracos gigantes para enterrar as fezes. Gi garante que o investimento em uma ração de melhor qualidade reduziu em até três vezes a quantidade de excrementos. Para tentar dimensionar a trabalheira dos encarregados de limpar o pátio, pergunto quantas porções de cocô são recolhidas por dia.

– Nunca contei – diz ela. – É muita merda!

Em horários imprevisíveis – ao meio-dia, no decorrer da tarde, às vezes em plena madrugada –, tem início um fenômeno encantador: um uivo coletivo. O primeiro cão solta um “uuuuuuuuu”, o segundo imita o primeiro e puxa o terceiro, numa sequência que se multiplica em alta velocidade. Em segundos, todos os 329 cães, cada um com seu timbre e volume – uns mais graves e potentes, outros esganiçados, alguns delicados e fininhos –, estão uivando em conjunto, de cabeça para cima e com a boca aberta em um furinho: “Aaaauuuuuuuuuuuuuuuu!!!”.

O coro dura cerca de três a quatro minutos e empolga até os cachorros dos vizinhos, que uivam também. Se Gi está ao telefone, desculpa-se com o interlocutor e aguarda. É inútil tentar detê-los antes do ápice da performance. “Chegaaaa!”, ela grita, quando o espetáculo já está na curva descendente, aproximando-se do final, porque paciência de mãe também tem limite. Todos se calam imediatamente.

– É lindo. Eu adoro! Aquilo mexe com o meu interior, é uma coisa muito forte. Se você entra na deles, olha, você chora. Tem dias que eu uivo junto.

Gislane convida para conhecer o açude. No verão, os cães têm trânsito livre até a água, podendo nadar a qualquer momento do dia. A líder segura um pedaço de pau comprido, uma espécie de cajado para impor respeito. Os latidos ecoam pelo mato. Ela se emociona quando vê a correria da multidão avançando.

– Vem o aleijado, vem o rengo, vem o cego, vem o coxo, vem o mocho, vem tudo! Isso aqui é inacreditável. Tem uma energia diferente no ar.

Vidão de cão

cães nadam no açude da propriedade de gislane.

A temperatura abaixo dos 20ºC não é considerada um impeditivo pelos banhistas. A turma se atira na água e avança até uma ilhota metros à frente, onde uma breve pausa para recobrar o fôlego antecede o retorno à margem. Como se obedecessem ao sinal do árbitro de uma competição de natação, alguns cães se atiram em grupos, sete ou oito mergulhando simultaneamente e saindo em disparada. Alguns ficam de molho, demorando-se no banho. Canguru, a espoleta sem braços, demonstra sua agilidade também aqui, lançando-se sem medo no açude. Ao sair, os cães se chacoalham para tirar o excesso de água, pulam nas nossas pernas, molham e embarram nossas roupas, faceiros com a folia. Lobinho se agita na beirada, tentando sair.

– Vem, filho, vem! Sobe! – chama Gislane.

A visita da reportagem se encerra pouco depois do meio-dia. Levo marcas na calça que, até agora, semanas depois, negam-se a ceder às lavagens. Se o jeans não era “de guerra”, agora virou. Para quem ama bichos, o passeio é inesquecível, capaz de injetar uma recarga intensa de alegria e bem-estar.

– A pessoa que abandona um animal está abandonando um ser vivo. Alguns têm autonomia para se virarem sozinhos, mas a grande maioria fica em estado de miséria total. Pior ainda na cidade do que no campo. No campo, eles ainda têm alguma chance. Resgatar um bicho requer responsabilidades. Por pena, não vale a pena. Ou você tem como dar uma estrutura para aquele animal, ou deixa ali que talvez uma outra pessoa possa dar – reflete Gislane. – Deles eu ganho afeto, reconhecimento, amorosidade. Eu acolhi a escória, o que todo mundo rejeita: a deficiência, a doença, a pobreza, a miséria. Poder fazer algo me mobiliza muito. Poder ser alguém para alguém me move – completa.

Por WhatsApp, Gislane envia as novidades dos cuscos em textos, fotos e áudios. Dezembro ainda nem havia começado, e o sítio já estava caracterizado para o Natal, com presépio, Papai Noel, pinheiro, renas, luzinhas. Os looks dos cachorros também são temáticos, em vermelho: toucas com pompom, vestidos, lenços.

Aos interessados em uma boa ação de final de ano: 25 cães ainda aguardam apadrinhamento.

TEXTO

Larissa Roso

larissa.roso@zerohora.com.br

IMAGENS

Jefferson Botega

jefferson.botega@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Daniel Feix

daniel.feix@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

Cachorrada reunida
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Cachorrada reunida

Vidão de cão

Os cachorros da Vovó Gi têm direito a beliches e treliches.