O Kerb 
dos Ensslin
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festa dos descendentes de imigrantes alemães em Arroio do Tigre teve bandinha com trajes típicos, café colonial, baile animado, culto na igreja e um churrasco para arrematar dois dias dedicados à preservação da memória e dos laços familiares – grande objetivo desses encontros que marcam os finais de semana no interior gaúcho

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e uma das portas da casa saía, em curtos intervalos de tempo, uma renovável e aparentemente infinita leva de bandejas. Elas vinham forradas de nacos de salame, generosos cubos de queijo, cucas e bolos de tantos sabores que deixavam até os mais esfomeados em dúvida: qual provar primeiro? Não eram nem quatro da tarde daquele ensolarado sábado dos últimos meses de 2016 – festa que é festa, ainda que logo depois do almoço, tem de ter comilança.

E lá se iam as bandejas pelo quintal do antigo casarão da Linha Cereja, no interior de Arroio do Tigre, no centro do Estado. Era ali, entre flores e bancos, que se reuniam os convidados. Muitos trajados a caráter: as mulheres de Dirndl e os homens de Lederhosen, como são chamados os vestidos e os suspensórios típicos do sul da Alemanha, roupas comuns na Oktoberfest no Brasil. Não faltou uma tradicional banda de marchinhas alemãs, muito menos uma chopeira, estrategicamente instalada na varanda – que, não por acaso, tornou-se um dos pontos mais frequentados naquela tarde.

Quem passava pela estrada de chão à frente do casarão logo entendia o porquê de tanta gente reunida: uma faixa pendurada na lateral da morada anunciava a 11ª Ensslin Fest. Mais de 200 pessoas, entre nonagenários e recém-nascidos, comemoravam o encontro daqueles que carregam o sobrenome Ensslin. Os mais distantes vieram de São Paulo, teve comitiva partindo de Jaguarão, uma caravana de Pelotas, outra de Montenegro, alguns carros de Porto Alegre e também ali de perto, do município de Candelária.

– Só assim para a gente se ver, não é? – comentava uma prima com a outra.

Marlene Folbrich não segura o choro na recepção aos convidados

A última reunião havia ocorrido em 2013, em Pelotas. Tempo suficiente para os mais velhos confundirem a fisionomia dos mais jovens, para a cor do cabelo mudar (naturalmente ou não), para uns engordarem, outros emagrecerem. E também para a família aumentar. Entre os abraços e risadas e bolos e cucas e litros de chopp, não era difícil passar pelos grupos que se reuniam e pescar algumas frases do tipo:

– Mas tu estás loira de novo?

– Tu é a Cássia, né?

– Mas tu nem conhece os parentes mais?

– Esse é o meu filho mais novo.

A anfitriã era Erika, 79 anos. Ela é neta de Ludwig Gustav e Christina Ensslin, os imigrantes que deixaram a localidade alemã de Bopfingen, em 1886, e rumaram em direção ao Rio Grande do Sul, instalando-se no município de Candelária. O antigo casarão foi o lar onde cresceu a família de Karl Ensslin, o primeiro filho do casal de imigrantes a nascer no Brasil. Na Linha Cereja, Carlos (como passou a ser chamado) montou também um armazém para a venda de diversos produtos e casou-se com Arlinda Karnopp, com quem teve um filho e duas filhas – entre elas, Erika. Foram os parentes mais próximos dela que organizaram a festa, mas, como sempre, o convite foi estendido a todos os outros braços da família Ensslin.

Catherine Ensslin, 27 anos, uma das organizadoras, conta:

– Escolhemos iniciar a festa neste casarão porque ele é muito especial para a família e também para Arroio do Tigre, pois foi na Linha Cereja que o município começou. A recepção é sempre o momento mais informal da festa, quando o pessoal se reencontra e bota a conversa em dia. E, desta vez, seguimos o habitual, que é procurar trazer um pouco da cultura alemã e também aquilo que a cidade anfitriã tem a oferecer. No caso, os músicos, a comida, a linguiça e os queijos.

“Antes disso, a gente acabava se vendo só

nos velórios”

Encontros familiares como este ocorrem quase todos os fins de semana no interior do Rio Grande do Sul. São momentos em que alemães, pomeranos, italianos, russos, portugueses e pessoas das origens mais distintas reúnem os que moram longe, os mais antigos com os mais novos e restabelecem, assim, a coesão do grupo familiar, como explica a antropóloga Maria Cristina França, pesquisadora do tema:

– As festas de família buscam reordenar o parentesco. Elas surgem em um momento em que o individualismo tomou proporções imensas, nos fragilizando. Resgatar a família é, então, uma forma de retomar um lugar onde nossas emoções podem ser amparadas, em que se possa ter mais confiança, segurança e se saiba que não se está sozinho.

Conservar os laços afetivos é apenas um dos objetivos das reuniões familiares. Outro é a preservação da memória: fazer com que os mais antigos não esqueçam e os mais novos conheçam a trajetória do sobrenome até chegar no momento presente. Não à toa, os idosos ganham destaque nesses encontros – de acordo com Maria Cristina, usualmente cabe a eles passar as memórias adiante.

No encontro dos Ensslin, o papel de “contador da história” foi assumido por Hilberto Bischoff, 74 anos, cuja falecida mãe era irmã da anfitriã Erika. O engenheiro eletricista hoje mora no Estado de São Paulo, mas foi naquela casa que passou a infância e adolescência. Enquanto todos se entrosavam no quintal do casarão da Linha Cereja, ele pediu a atenção dos familiares para relembrar momentos importantes da família – parte deles vividos naquele local.

– Vivam este momento! A história dos nossos avós termina aqui, mas a nossa família continua. Aqui, sempre imperou um clima de amizade e de união. Este lugar está infestado de um vírus da paz. Sugiro que cada um respire fundo e se contamine. E, por fim, lembrem-se que nosso bisavô sempre nos trazia balinhas quando nos visitava. Então, em memória dele e de toda a nossa família, peguem uma balinha (um pote que estava sendo repassado) e a troquem com quem estiver ao lado. Aproveitem e troquem também um abraço! – propôs, no fim da fala.

No momento seguinte, crianças olhavam um pouco assustadas para os adultos, diante das lágrimas que escorriam pelos rostos. A família já se reúne há mais de três décadas, e a emoção nunca se ausentou. Mas havia pelo menos dois motivos que deixavam aquela tarde ainda mais especial. Um deles era a abertura de um museu com objetos antigos da família, instalado no local onde um dia foi o armazém de Carlos Ensslin. A ideia era antiga, mas só entre março e outubro do ano passado é que o projeto tomou forma. Com a ajuda dos filhos, Rejane Bischoff, viúva do sobrinho de Erika, foi quem se dedicou a resgatar, classificar e expor os pertences da família – entre eles, uma lousa de ardósia, potes para fazer chucrute, uma máquina de Pascal (considerada a primeira calculadora mecânica do mundo), projetor de filmes e instrumentos musicais. Um trabalho que tomou vários fins de semana de folga, mas que valeu a pena ter sido feito.

– As pessoas se emocionaram ao ver tudo pronto, talvez não imaginassem que encontrariam uma grande quantidade de objetos. O mais legal é que cada um destes pertences conta a história da família. Muitos olhavam para eles e se lembravam de alguém utilizando. Existe uma memória afetiva em torno dos objetos – afirma Rejane.

O entra-e-sai do museu – onde se reuniram, sentados à mesa, os vovôs e vovós – e o auê com música e chopp do lado de fora deram trégua mais uma vez quando chegou outro momento tradicional: o da foto de família. E aí, bem, organizar os cerca de 200 parentes, todos loucos para botar o papo em dia, não é das coisas mais fáceis.

Erika com a foto dos avós, Christina e Ludwig, vindos da Alemanha em 1886

Demorou um certo tempo para que os Ensslin se posicionassem em frente à casa, os idosos sentados à frente, as crianças no chão e os adultos em pé. “Sorrrrriam!!!”

Era só o primeiro dos registros oficiais. Infinitos flashes ainda estavam por vir. Porque a festa dos Ensslin não dura a manhã e o início da tarde de um domingo, mas um fim de semana inteiro – um verdadeiro Kerb, expressão corriqueiramente utilizada no idioma alemão para falar das festas que nunca acabam. No sábado à noite, todos tiveram tempo para um banho rápido e logo rumaram para um clube, no centro de Arroio do Tigre. Era dada a largada do baile.

Bastava um primeiro passo adentro do salão e os convidados já comentavam a longa mesa de bolos, sobremesas, salgados, tortas e quitutes. Ao lado do bufê – jamais se esqueceriam disso –, lá estava a chopeira recarregada. Dela, saiu o líquido para o concurso de chope em metro, em que homens e mulheres competiram para ver quem esvaziava uma tulipa cheia no menor tempo. Foi um embalo para o início da animada dança da polonaise, em que os familiares formam um círculo, uma espécie de trenzinho, envolvem-se em uma trança humana, ensaiam passos de quadrilha e terminam arriscando uma valsa. Uma banda manteve a animação altas horas da madrugada adentro. Nem todos aguentaram até o fim, mas ninguém saiu menos feliz.

– Foi meu primo Franz que começou com essa história de reunir a família. Antes, a gente acabava se vendo só nos velórios. Ele achou que isso tinha de mudar, e está aí: todo mundo junto, aproveitando a vida – afirmou Lory Ensslin Hermes, 82 anos.

Restaurada, Bíblia de 1584

foi uma atração à parte

Acordar na manhã do domingo seguinte não foi tarefa fácil para muitos. Mas era preciso: para as 10h, estava marcado o culto na paróquia luterana do município – que, por razões já claras, não começou no horário previsto. Ainda que com atraso, a cerimônia era um dos momentos mais aguardados: aquele em que seria apresentada a bíblia da família após um processo de restauro que levou 10 meses.

O livro, publicado em 1584, foi trazido por Ludwig Gustav quando migrou da Alemanha para o Brasil, e segue como herança dos Ensslin, presente em todos os eventos da família. No último encontro, realizado em Pelotas, chamara atenção o péssimo estado de conservação da chamada Bíblia de Wittenberg, escrita em alemão gótico. A família montou uma comissão e decidiu levar o artigo para os reparos em Porto Alegre. As mais de mil páginas foram separadas, lavadas e restauradas, uma por uma. Os resíduos da limpeza foram guardados em pequenos sacos plásticos e devolvidos para a família com um nome: “Poeira do Século”. Durante o culto, o livro de seis quilos e meio e 39 centímetros de espessura foi levado para o altar. A emoção tomou conta dos familiares mais uma vez.

– Em uma das páginas, tem uma assinatura: “Maria Elizabeth Ensslin, 1719”. Ao lado, está uma anotação: “Esta bíblia foi recebida de minha saudosa mãe”. Sabemos, por meio disto, que o livro está em nossa família pelo menos desde o início do século 18. É o nosso maior símbolo, um objeto de referência para todos nós – diz Traudi Ensslin Wendt, uma das responsáveis pelo processo de renovação do livro.

– Objetos como essa Bíblia são símbolos que dão a ideia de que nossos descendentes vieram de algum lugar e trouxeram pertences quando vieram. Eles servem, portanto, para legitimar uma trajetória.

A partir deste objetos, sabemos que construímos uma vida aqui, e que somos gratos por isso, mas temos consciência também da importância de nos lembrar de onde viemos – avalia a pesquisadora Maria Cristina França.

Após o culto, a bíblia foi levada para o salão, que já não era mais do baile, mas do churrasco de domingo. Ficou exposta sobre uma mesa. E teve mais fotos de família, centenas delas. Antes, durante e após o almoço, adultos e idosos circulavam por entre as mesas. Catherine, uma das organizadoras, acompanhava a movimentação, orgulhosa:

– Claro que a geração do meu pai vive momentos mais calorosos nestes encontros. Afinal, eles se criaram juntos e ficam felizes por rever os primos e tios que moram longe. Nós, mais jovens, já não temos tanto contato com as pessoas de fora. Então, eu sempre me perguntei se estes encontros terminariam quando chegasse na minha geração. Pensava: quem vai movimentar isso?  E aqui estou, ciente de que esta tradição não pode morrer.

Não pode mesmo. Edgar, 91 anos, a figura mais antiga da família, bisavô de três bebês, os mais jovens Ensslin, explica o porquê:

– É importante ver que a gente envelhece, mas que a família cresce e a vida continua.

Valenthyna Herath Ensslin

TEXTO

Bruna Scirea

IMAGENS

Tadeu Vilani

carlos.macedo@zerohora.com.br

EDIÇÃO

Ticiano Osório

ticiano.osorio@zerohora.com.br

DESIGN

Amanda Souza

amanda.souza@zerohora.com.br

Paola Gandolfo

paola.gandolfo@zerohora.com.br

O Kerb 
dos Ensslin
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O Kerb 
dos Ensslin

 

Qualquer pessoa que lance na internet o nome de Hamilton Coelho vai encontrar, em poucos segundos, um vídeo sobre ele produzido pela rede britânica BBC, devidamente legendado em inglês. Também vai tropeçar em reportagens e documentários que retratam o artista plástico a percorrer em um velho Jipe as areias do litoral sul gaúcho, em busca de ossos de baleia, destroços de navios naufragados, boias náuticas e outros materiais cuspidos pelo mar, que ele transforma em esculturas e expõe em seu próprio museu, na Barra do Chuí.

Apesar do acesso fácil, Coelho navega a internet com pouca desenvoltura e nunca assistiu a esses vídeos. Reage até com certa perplexidade ao ser informado de que eles estão na rede. E demonstra ressentimento por ninguém nunca lhe ter enviado o resultado das tantas horas de gravações a que o submeteram.

A verdade é que Coelho está cansado de repórteres, documentaristas e produtores de TV. Eles aparecem com regularidade, tomam seu tempo, pedem que ele faça isso ou aquilo diante das câmeras e depois vão embora para colher louros e salários, sem oferecer nada em troca. E não lhe permitem nenhum controle sobre o que vai ser mostrado, dito ou escrito, o que o faz sentir-se desprotegido. Como Coelho vive isolado no ponto mais meridional do país, à margem do Arroio Chuí e com o Uruguai à porta, invariavelmente também aproveitam para descrevê-lo como “o último morador do Brasil”, tirando o foco do que ele considera mais importante, o seu trabalho.

Uma vez, chegaram ao extremo de enfiar um ponto eletrônico em seu ouvido e ficaram enviando instruções a distância (“Agora se abaixa e apanha esse osso de baleia”), enquanto filmavam o artista com um drone. Em sua fala ágil e entrecortada, na qual uma sentença é quase sempre interrompida por outra antes de chegar ao final, como se as ideias se acavalassem em ritmo frenético na sua cabeça, o artista conta como reage a essas situações:

– Eu fico puto da cara... Tu ficas de marionete... Não gosto de ser marionete, cara... Senta aqui, bota ali, arruma o chapéu... Eu sou o mergulhão. Sabe o que é o mergulhão, o biguá? O biguá, quando vê gente, pff. Eu sou o próprio... Isso que eu sou leonino. Dizem que o leonino gosta de aparecer... Os caras vêm aqui, vendem para a TV, e aí que eu fico de cara... Pagaram hotel, pagaram gasolina. E o artista, nada... Vou começar a me fechar na caixinha... Cobrar cachê... Reportagem e sair na televisão não enche barriga...