Sinais de esperança

Na estação de trem de Salzburg, a acomodação é improvisada, mas a cordialidade das autoridades ajuda a tornar o ambiente mais descontraído

Às 20h de sábado, 26 de setembro, desembarco em Salzburg. Ao descer na estação de trem, depois de três horas de viagem, encontro centenas de pessoas acampadas no saguão. Crianças jogam balões para o ar. Imagino que Mohammad e Tala devem estar por perto. Mas não os encontro.

Sigo espreitando entre rostos abatidos dos adultos, à procura de traços familiares. Até que vejo Mohamed, sentado com outra rodinha de sírios sobre um cobertor estendido no chão frio da estação. Pergunto sobre os outros companheiros e ele diz que não aguentaram a espera. Ansiosos para chegar à Alemanha, que é dividida por apenas uma ponte com Salzburg, pegaram um táxi para atravessar a fronteira, mas acabaram apanhados pela polícia no meio do caminho. O iraquiano recebeu uma mensagem de um dos outros rapazes do grupo. A última notícia era de que seriam levados de volta à estação. Mohamed só ficou ali porque se perdeu dos outros quando voltou para apanhar sua mochila, e agora está à espera deles.

– Eles já devem estar voltando – acredita.

 

Mohamed exibe o par de tênis que ganhou e substituiu o chinelo velho com uma tira arrebentada com que caminhava até então

A acomodação é improvisada, mas a cordialidade das autoridades ajuda a tornar o ambiente mais descontraído. No meio da movimentação, um policial uniformizado brinca com as crianças, rebatendo seus balões. Voluntários distribuem comida frequentemente, mulheres e crianças podem descansar em uma área reservada. E a estação coberta ameniza o frio, diante de temperatura de 11ºC.

Mohamed está feliz porque ganhou um par de tênis, substituindo o chinelo velho com uma tira arrebentada com que caminhava até então. Na conversa, descubro que, diferentemente do que haviam me dito policiais croatas, a família não havia passado pela Hungria depois de deixar o campo de Opatovac. Foram levados por dentro da Croácia em ônibus e trens rumo à Eslovênia, e de lá para a Áustria.

Mohamed conta que foram relativamente bem tratados no caminho, com exceção de alguns empurrões de policiais e de horas de espera debaixo de chuva na saída da Croácia. Se tivessem passado pela Hungria, possivelmente as recordações seriam piores, como me contaram outros refugiados sírios que encontrei na capital austríaca.

– Foi horrível. Batiam na gente com cassetetes e diziam o tempo todo: fuck you, fuck you! – revelou o sírio Muhamad Bakeer, 24 anos.

Enquanto Mohamed me atualiza sobre o trajeto da viagem que percorremos separados, aparece uma iraniana pedindo informação.

– A que horas sai o trem?

Ninguém sabe a resposta. A maioria dos refugiados já dorme, exaurida pela espera.

À 1h40min, os policiais aparecem e acordam o grupo. Todos são instados a se levantar. A expectativa é de que seja o trem para a Alemanha, mas é apenas uma mudança de endereço. Dizem que vão levar os refugiados “para um lugar melhor” dentro da estação.

Em fila, são conduzidos para uma garagem coberta, onde há centenas de macas perfiladas, com cobertores à disposição. O ambiente é decorado com desenhos de crianças refugiadas, pendurados em varais por voluntários. Nas ilustrações, sinais de esperança de uma vida nova, longe de bombas e decapitações. Uma flor vermelha, dezenas de coraçõezinhos que enchem a página, crianças cantando, bandeiras da Síria. Expectativas que não eliminam o choro dos pequenos ali abrigados, um coro angustiante de vozes inquietas pela madrugada.

Mohamed se prepara para dormir, ainda sem notícias da família.

– Eles já deviam ter chegado – preocupa-se.

Às 7h40min de domingo, 27 de setembro, a polícia acende as luzes na garagem. Mohamed pede informação e lhe dizem que deve se aprontar porque haverá um ônibus para transportar os refugiados. Duas horas depois, entramos na fila para o embarque, sem saber para onde ele vai nos levar.

– Meu coração está na minha boca – diz a iraniana Mozhy Barraghi, que viaja sozinha e fez amizade com Mohamed.

O iraquiano tenta contato com a família. Consegue fazer uma ligação por whatsapp para Ammar, aproveitando um wi-fi disponível. O ex-soldado sírio diz que já está na fronteira.

– Vamos nos encontrar, então, estamos indo para aí de ônibus! – anima-se Mohamed.

A viagem dura uma hora e meia. Ao chegarmos, um policial avisa que, se caminharmos quatro quilômetros, alcançaremos a Alemanha. Estamos em Mühlheim, no nordeste da Áustria. Antes da caminhada decisiva, os refugiados param para comer num centro de acolhimento montado para recebê-los.

No banheiro, uma jovem chora copiosamente, mostrando as pernas desnudas. Fala em voz alta coisas que ninguém entende, nem as mulheres árabes. Uma voluntária é chamada e tampouco sabe como ajudá-la. Até que a iraniana identifica a língua da mulher: é farsi, o idioma persa, falado principalmente no Irã e no Afeganistão. Então a moça conta que passou mal do estômago e sujou suas calças. Não tem mais condições de usá-la. A voluntária sai para buscar uma calça e oferece um banho, mas ela diz que não há tempo, que o marido está a sua espera lá fora.

Depois de várias tentativas de conectar o celular no wi-fi do centro de acolhimento, Mohamed consegue enviar uma mensagem para Ammar, avisando onde está. Imagina que irá encontrá-los em breve.

Centenas de pessoas acampam na estação de trem de Salzburg

Sem sinal dos amigos, o maratonista e lutador de boxe decide caminhar até a fronteira. Acompanho ele e a nova amiga iraniana no percurso tão esperado, sob o sol do início da tarde. Pelo caminho, Mohamed colhe frutinhas roxas que desconhece para provar. Admira-se com as vacas “menores do que no Iraque”, aprecia as casas bem cuidadas.

Logo à frente deles, caminha uma família síria com duas crianças pequenas, que vivia em Alhaska, cidade que o Estado Islâmico tenta dominar. A estudante Nour Alhmad, 18 anos, diz que vão a passos lentos porque o tio tem dificuldade para andar. Tem a perna inchada por estilhaços de duas bombas que o atingiram na luta entre as forças em guerra. Enquanto converso com ela, tropeço e bato sem querer com a caneta em seu braço. Peço desculpas, ela minimiza.

– Depois dessa jornada não sinto mais dor.

A jovem calcula que perdeu uns quatro quilos, as roupas estão folgadas. Mas também computa alguns ganhos.

– Aprendemos muito com essa viagem. Temos que ser fortes, porque a vida pede que sejamos fortes. E esta é a jornada – ensina.

A poucos metros da fronteira, os refugiados tiram fotos diante das águas calmas de um rio que divide os territórios. Avançam mais alguns passos e entram na fila conduzida por policiais alemães. Enfim, o destino. Estão felizes, mas cansados demais para comemorar. Mohamed se junta à fila, dizendo que vai me mandar notícias quando reencontrar com a família na Alemanha.

– Não se preocupe, vai dar tudo certo – diz.

Dou meia volta e decido voltar para procurar os outros, suspeitando que tenham ficado na outra fronteira, em Salzburg. Cinco minutos depois, Mohamed vem correndo atrás de mim:

– Disseram que se eu me registrar na Alemanha tenho que ficar na Alemanha para sempre, se sair não posso voltar.

Como tem planos de ir para a Finlândia e, de lá, para os Estados Unidos, onde mora um tio, o iraquiano se sente inseguro em cruzar a fronteira. Acaba voltando comigo até o campo de acolhida, num trajeto que leva mais uma hora e 15 minutos de caminhada.

– Por que não me disseram antes? Por que não nos deixam livres? Odeio este país – frustra-se.

Ao regressar a Salzburg e seguir outro mapa enviado por um dos rapazes pelo whatsapp, descubro naquela noite que a família está em um campo, já no lado alemão. Consigo alcançá-los em Freilassing, a cidade alemã que faz fronteira com a Áustria, pouco depois das 22h. Quando chego ao campo, avisto da calçada Ghazi e os amigos fumando no pátio. Sorridentes, estendem as mãos através da cerca para me cumprimentar. Antes que possamos conversar, um policial aparece gritando.

– Saia daqui! É proibido ficar aqui! – ordena para mim.

– E também não pode fumar no pátio – resmunga para eles.

O agente então me manda falar com o chefe do policiamento do campo, que me orienta a falar com a assessoria de imprensa, que depois de vários contatos responde na manhã seguinte que não pode me autorizar a falar com a família porque o prédio de abrigo aos refugiados é de responsabilidade da prefeitura.