Protegidos por

céu e chuva

Diante da fronteira entre Sérvia e Croácia, uma multidão encobre a linha de policiais. Vinte passos são suficientes para se chegar ao outro lado. Passam-se 15 horas

Não saber é uma das tônicas da viagem. Ninguém sabe quanto será o tempo da próxima caminhada, da próxima espera. É preciso confiar. E esperar. Eles esperam sem reclamar. Estar ali ao relento é mais seguro do que estar em suas casas na Síria.

No lado sérvio da fronteira, uma voluntária segura um cartaz com instruções em árabe, e vários grupos param para tirar fotos com ela. A loira longilínea atrai olhares não só pela simpatia, mas pelo biotipo.

– As mulheres daqui são tão sexies – entusiasma-se o ex-soldado Ammar.

A mãe pega um kit infantil de roupas e troca Mohammad. Joga longe a calça suja, não há como lavá-la.

No anoitecer, a multidão é tamanha que fica impossível enxergar a fronteira, onde policiais fazem a vigília. De tempos em tempos, os grupos mais à frente assobiam e aplaudem, comemorando quando alguém é liberado para passar ao outro lado.

Refugiados cercam os voluntários, à procura de informação.

– Não podemos precisar quanto vai ser o tempo de espera, eles abrem o portão e fecham. Poucas pessoas por vez estão passando – diz um deles, estimando que pelo menos mil pessoas estejam agora à espera.

De longe, ouve-se o refrão de uma música.

– É uma música da Síria. Dizem que vão sentir saudade do país – explica o iraquiano Mohamed.

Às 20h30min, acampamos sobre o cascalho, sentando sobre as mochilas.

Depois de meia hora, a fila começa a se mexer.

– Êêêê – gritam em coro os mais à frente.

Todos se levantam. Apesar da multidão em movimento, não há empurra-empurra. O grupo se preocupa mais em ficar unido. A noite será de avanços e recuos, um senta e levanta ansioso e incerto. Os pais repousam com os filhos no colo, com olhares embaçados e perdidos. Como a fila não anda, a família estende sobre o chão os cobertores que ganhou na entrada. As cobertas ficam onduladas pelo amontoado de garrafas plásticas e embalagens de biscoitos que cobre a terra, resquício dos que já passaram por ali. O leito irregular é o conforto possível para o sono de crianças e adultos. Musa reserva um cantinho para mim no cobertor e escoro minha cabeça sobre a mochila, uma cama improvável sob as estrelas. Meia hora depois, vem um novo alerta de que a fila está andando. Integrantes do grupo começam a discutir. Alguns acham que é preciso correr para pegar uma melhor posição. Os pais se preocupam com as crianças, que dormem, e preferem permanecer sobre os cobertores já estendidos. Difícil manter o grupo coeso no meio do tumulto.

Equipes de TV circulam no meio do povo, irradiando pontos de luz na escuridão.

No meio da noite, uma voluntária de colete laranja distribui água. Quem está mais à frente tenta fazer pressão sobre os policiais para abrirem os portões:

– Open! Open!

Pouco adianta.

Acabo pegando no sono. Os rapazes do grupo me cobrem com um cobertor. Não me sinto em condições de recusar: durmo aquecida, me sentindo privilegiada. Quando penso em levantar, dois jovens do grupo dormem sobre minhas pernas.

Por volta de 1h, o pai começa a acordar todo mundo.

– Vamos, vamos!

Perdem minutos preciosos até levantar acampamento. Avançam um pouco na fila e param de novo. O tio das crianças, Adham, que estava sem dormir e esperava ter pego um lugar melhor à frente, fica impaciente.

– Vocês dormiram, eu não.

Os integrantes do grupo caminham de mãos dadas para não se perderem. Ficamos de pé na expectativa de que a fila ande, mas 40 minutos depois tudo está parado. O pai pergunta para voluntários de colete azul do Acnur se vão abrir a fronteira. Parecem não ter ouvido.

No meio da madrugada, voluntários de colete amarelo arremessam biscoitos, sem conseguir circular no meio da multidão.

O frio aumenta ao amanhecer, e cobertores distribuídos horas antes aos caminhantes viram proteção sobre as cabeças.

– Parecem zumbis. Eu vi num filme – diz o iraquiano, que aprendeu inglês sozinho, em filmes americanos.

Mohamed tem um tio que mora nos Estados Unidos e sonha em ir para lá depois de chegar à Alemanha. O maratonista é fã da celebridade Kim Kardashian, a quem segue no Instagram. Admite que morava numa região do Iraque não afetada pela guerra, mas foi incentivado pelo tio a aproveitar a onda migratória.

Às 5h30min, começa a chover. A polícia continua imóvel diante da fronteira. Pelo menos 20 policiais estão enfileirados com os braços cruzados a nossa frente. A situação só não se torna mais dramática porque capas de chuva começam a ser lançadas por voluntários. Vestimos as capas de plástico verde sobre as mochilas, e aos poucos os cobertores umedecidos começam a ficar pelo chão. O mesmo chão que virou mar de garrafas plásticas, e onde prestando atenção se encontram outros objetos que contam a história da viagem: uma fralda, um ursinho de pelúcia. A sujeira é um retrato melancólico e simbólico da jornada.

– Viramos pessoas sujas. Muito sujas – define o ex-soldado Ammar, que na frase original nos definiu como “Fucking dirty people”.

Com o clarear do dia, às 6h, todos se postam de pé, acreditando que a fila vai andar. Mais um desejo do que uma perspectiva concreta. Já estamos há 11 horas na espera. A chuva dá trégua, e o casal se aproxima com os filhos, com semblante cansado emoldurado pelas capas de chuva. Ghazi estende a mão para os rapazes em cumprimento.

Aquele 24 de setembro é o feriado islâmico do Eid al-Adha, o “festival do sacrifício”, que lembra a disposição de Abraão de sacrificar seu filho como um ato de obediência a uma ordem divina – e a misericórdia de Alá em colocar um cordeiro no lugar do menino no último momento.

Abatidos, sem dormir, alimentando-se com biscoitos e salgadinhos, os refugiados são a própria imagem do sacrifício. Fico pensando se é essa fé inabalável que sustenta a espera. Eles não reclamam. Aguardam pacientes, mesmo depois de 12 horas na chuva e no frio.

No meio da fila, Ammar espia no celular o mapa para ver em que parte do caminho está.

O coro de vozes volta a cantar em inglês.

– Croatia, Croatia, we want to open!

Os policiais mantêm o olhar sisudo, mandam todo mundo permanecer sentado.

– Sit down, sit down!

Pouco antes das 7h, quando o sol irrompe raios rosados sobre as nuvens cinzentas, Ghazi consegue passar com a família pelo cordão. Com os demais integrantes do grupo, levo duas horas e meia de espera até alcançá-los. Não são mais do que 20 passos entre um lado e outro, mas à custa de tanto sacrifício que me emociono na travessia. Às 9h30min, chegamos à Croácia.

– Não chore, por favor não chore – dizem-me os rapazes.

Minutos depois, um vizinho de fila resume para mim a diferença entre o que eu sinto e o que eles sentem.

– Isto não é nada comparado ao que vivemos na Síria. Lá há sangue por todo lugar, a Síria cheira a morte. Qualquer coisa é melhor do que aquilo – assegura o fisioterapeuta Harem Alhamad, 31 anos, de Aleppo.

Ele deixou a filha de quatro anos na Síria por falta de dinheiro para pagar a viagem dela.

A cada etapa da viagem, roupas e cobertas se avolumam. Crianças têm prioridade