Lições de árabe

No caminho para a Macedônia, um ex-soldado que a muito custo revela o próprio nome e dá aula da língua materna

Às 7h17min de terça-feira, Ghazi e Razan começam a dobrar as mantas que aquecem as crianças. As luzes do porto de Atenas já são visíveis. O tempo está cinza e úmido no primeiro dia de outono.

O pai veste Tala com um blusão de gola alta, cantando para ela enquanto ajeita as mangas. A menina se irrita com a gola, mas Ghazi insiste dizendo que é necessária, que está frio lá fora. A mãe alcança uma escova para a filha pentear-se, depois coloca uma tiara cor de rosa com flores nos seus cabelos. Mohammad sorri enquanto a mãe o veste com blusão marrom sobre a camiseta. Come uma banana como café da manhã, fazendo cara feia para a ponta amassada, que a mãe engole em seu lugar.

Musa está ansioso para se comunicar com a família. Desde que saiu da Turquia ainda não conseguiu dar notícias. Ao desembarcar, começa a procurar uma rede de wi-fi para fazer a conexão. Existe uma no porto, mas o sinal está fraco. Musa insiste. Quando já está na parada de ônibus, rumo à estação de trem, consegue a conexão. Faz uma chamada de vídeo via whatsapp para o irmão, que também deixou o país fugindo do Estado Islâmico. Feliz, conta que sobreviveu à travessia do Mar Egeu e chegou a Atenas. Quando pergunto mais sobre a conversa, ele diz que não pode dar detalhes.

– Daesh, Daesh! – volta a dizer, repetindo aquele mesmo sinal com a mão atravessando o pescoço: tem medo de que descubram onde seu irmão está e cortem sua cabeça.

Por orientação de sírios que já vivem na Grécia, o grupo segue de trem até uma agência de viagens que organiza excursões de refugiados até a fronteira com a Macedônia, Oimo Travel. Sentada na janela do trem, Tala canta ao lado de Musa, inventando uma composição própria:

– Onde nós vamos, motorista, onde você vai nos levar, motorista, mais rápido, mais rápido, mais rápido!

No caminho, outro jovem do grupo, de cabelo arrepiado, compra uma faixa para tapar uma tatuagem no braço esquerdo. É uma suástica. Diz que quando tatuou não sabia do significado, só achou bonito o símbolo, que conheceu em filmes estrangeiros. Agora, sonhando em entrar na Alemanha, não quer correr o risco de ter problemas com a polícia. Vai usar a faixa durante toda a viagem, simulando um machucado. Ele conversa comigo e adora tirar selfies do grupo, mas não quer dizer seu nome. Conta que já foi soldado do exército, quatro anos atrás, quando a guerra estava começando. Fugiu porque não queria participar do massacre e ficou marcado. Sua família recebeu um comunicado dizendo que ele era um jovem morto. Não podia mais voltar para casa. Desde então, não fala mais com familiares, temendo que paguem o preço da sua deserção. Pergunto se ele testemunhou muitas mortes enquanto estava no exército.

– Muitas.

E matou?

– Eu fugi antes.

Fã de filmes americanos, usa expressões em inglês como se estivesse em um deles, repetindo em cada frase a palavra “fucking”: “I am fucking hungry”, “Let’s go to this fucking city”.

Pouco antes das 10h, chegamos à agência de viagens. Uma sala comercial à beira da calçada com letreiro em grego e cartazes em árabe no seu interior. Mais uma vez, o pai reúne a documentação de todos. O valor é de 40 euros por pessoa. Toda a negociação é feita em árabe. A previsão é de que o ônibus para a Macedônia chegue em duas horas. Todos sentam-se na calçada. A espera tem cheiro de batatas Pringles sabor cebola, que as crianças comem e distribuem aos demais.

Para se distrair, o ex-soldado começa a me dar lições de árabe. Tomo notas do que escuto e repito as frases aprendidas, “Ana asme Letícia, Ana mean al Brazil, Ana sahafea” (Meu nome é Letícia. Eu sou do Brasil. Sou jornalista). Eles riem do meu sotaque árabe, e involuntariamente viro motivo de diversão para o grupo, enquanto o tempo passa.

Pouco antes do meio-dia, vem um aviso de que o ônibus está a caminho. O pai faz a contagem do grupo e falta uma pessoa. Rama, a moça de 18 anos que os acompanha, aproveitou o tempo para dar uma volta e ainda não retornou. Todos ficam impacientes. Minutos depois, ela aparece e é xingada pelos mais velhos. Avisam que o grupo não pode se dispersar. Não é hora para passeios. O clima fica tenso.

Caminhamos duas quadras até uma praça onde há um restaurante árabe. É o ponto de encontro da excursão, e todos se sentem em casa. Driblando o letreiro grego, comunicam-se na própria língua com todos os funcionários do estabelecimento. Ali reencontramos outros sírios que estavam no acampamento em Kos, como o estudante de medicina Issa Jafar, 24 anos, que assim como boa parte do grupo é natural de Raqqa. Pergunto se ele está feliz.

– Não muito, ansioso para partir – diz.

 

De Atenas, na Grécia, refugiados viajam para a Macedônia

Ele tem uma melancolia no olhar. Diz que não viaja por opção, mas por falta dela. Não gosta de ser chamado de refugiado.

– Olham para a gente como se não fôssemos nada. No meu país eu me sentia importante. Quando cursava a universidade, me sentia especial. Agora olham para nós desse jeito, como refugiados. Você pode ver um sírio sorrindo, ele sorri para você. Mas por dentro sentimos dor. Não estamos felizes por sermos refugiados – explica.

Já se passaram 40 minutos desde o anúncio de que o ônibus estava chegando, e o veículo ainda não apareceu. O pai começa a ficar nervoso. Cogita pegar um trem para ir até a Macedônia. Os organizadores dizem que o ônibus está a caminho, que já está vindo, só mais um pouquinho, mas com o passar do tempo o grupo começa a duvidar das explicações. Olham o tempo todo para a rua, esperando, temerosos de que algo possa impedir a viagem.

Às 13h, o ônibus finalmente chega.

– Yala umo, yala umo –  grita Adham Assad, 28 anos, irmão da mãe das crianças, chamando a todos para se aprontarem rapidamente.

Em cinco minutos, os 11 integrantes do grupo já estão em seus lugares. Mas ainda existem três assentos vagos no ônibus. A excursão não parte enquanto a lotação não for completa. Nova espera.

Sentado à minha frente, o ex-soldado que intercala suas frases com “fucking” brinca com Mohammad, sorridente. Depois me conta que ainda tem uma bala alojada na perna. E que recebeu “três estrelas do Exército”. Carrega a guerra no corpo. Não quer falar mais sobre isso. Diz que não tem sentimentos, que não sente mais nada. Como todos, quer esquecer o passado. E estudar psicologia na Alemanha. Para passar o tempo, volta a tomar minhas lições de árabe, fazendo as perguntas ensinadas na calçada horas antes, como é seu nome, quantos anos tem, de onde você é. Invertemos o jogo e pergunto a ele em árabe qual é seu nome “Ma hwa asmak?”. E aí finalmente ele revela sua identidade. O soldado que diz não ter sentimentos se chama Ammar.

Fronteira às escuras

O ônibus parte às 13h46min. Serão sete horas de viagem até a fronteira com a Macedônia.

Exausta, a maioria dos integrantes do grupo dorme. O ex-maratonista iraquiano Mohamed diz que tem sono, mas não consegue adormecer. Antes estava tenso pela travessia do mar, depois por medo de que alguém roubasse algo das barracas, depois o navio balançava, agora o passageiro que vai no banco de trás não para de falar e receber apitos de passarinho cantando no celular.

– Faz oito dias que não durmo. Meu sonho é estar numa praia e tomar um ice limão – divaga.

Insone, olha as montanhas pela janela, prenúncio do novo caminho.

– São tão bonitas. Quero estudar a natureza – diz, pensando em cursar geologia quando chegar à faculdade.

Depois de sete horas de viagem, o ônibus se aproxima da fronteira com a Macedônia. Às 21h50min, o pai começa a calçar os filhos, preparando-os para a caminhada que virá. A 10 minutos do ponto de chegada, a fronteira da Grécia com a Macedônia, ouve-se uma gritaria no ônibus. Está faltando o documento de um dos viajantes. A chamada é refeita para todos, entre discussões nervosas. O clima volta a ficar nervoso.

Pouco depois das 22h, o ônibus para num acostamento escuro. A excursão alcança a primeira fronteira. Todos descem em silêncio, apreensivos. Semanas antes de Ghazi e sua família chegarem ali, forças de segurança da Macedônia haviam atirado granadas e bombas de gás lacrimogêneo para dispersar migrantes. O confronto ocorreu logo depois de o país ter declarado estado de emergência diante do afluxo maciço de refugiados.

A incerteza sobre o que os espera nesta noite tensiona o início da peregrinação, cadenciada pelo som dos passos sobre o cascalho que permeia os trilhos.