Profissão

persistência

Há 10 anos, eles foram aprovados em um concurso estadual para serem professores do Ensino Médio em Porto Alegre. Uma realização ou o começo de uma decepção? ZH mostra o que aconteceu com os 48 que foram nomeados. A estatística ref lete a realidade de uma categoria valorizada nos discursos, mas não nos salários e nas condições de trabalho

REPORTAGEM

Luísa Martins

Colaborou LETÍCIA DUARTE

EDIçÃO

Ticiano Osório

 

EDIçÃO DIGITAL

Greyce Vargas

 

IMAGENS

Carlos Macedo

Fernando Gomes

DeSIGN

Leandro Maciel

Diogo Perin

Aprofessora de química Paula Brust, quando precisa usar o laboratório, se vê entre a precária vidraria e substâncias químicas cujos prazos de validade expiraram no século passado. Da mesma disciplina, Graciela Cechin limpa o quadro negro com papel higiênico, porque não há apagador. Para Cláudia de Oliveira, professora de história e geografia, os problemas não são de infraestrutura – o desafio diário é ser ouvida por estudantes, em geral, desinteressados. As três, você já deve ter intuído, ensinam em escolas da rede estadual.

ZH analisou a lista dos 48 professores nomeados no concurso de 2005 do magistério estadual para o Ensino Médio em Porto Alegre. Dez anos depois, a reportagem constatou que apenas 14 estão trabalhando para o Estado – o equivalente a 29%. Salários baixos, falta de estrutura nas escolas, desinteresse dos alunos e pouca perspectiva de evoluir na carreira são os motivos elencados pelos que assumiram, mas exoneraram-se tempos depois. Pelo menos 19 nem chegaram a tomar posse, frente a propostas melhores que surgiram entre o resultado do concurso e a nomeação (quase dois anos, em alguns casos). Outros 10 abandonaram a profissão – viraram analistas, bancários, policiais. Apenas duas pessoas da lista não foram localizadas.

Os 48 nomeados

Assumiram e continuam na rede estadual

Assumiram, mas exoneraram-se

Não assumiram

É fácil encontrar justificativa para o resultado deste mapeamento. Pesquisa realizada pelo Ibope Inteligência e divulgada este ano pela Fundação Lemann mostrou que, para professores da rede pública brasileira, a contribuição para a formação dos alunos e a responsabilidade social trazem satisfação, mas entram em conflito com a indisciplina dos estudantes e a defasagem do aprendizado (quando alunos são aprovados em um ano mesmo sem estarem preparados para o próximo). O desgosto que mais mobiliza a categoria é a remuneração. O RS é o Estado que paga o menor vencimento básico inicial para os professores estaduais: R$ 1.260 por 40 horas semanais. O piso nacional é de R$ 1.917,78.

– Uma coisa leva à outra: com más condições de trabalho, o professor não consegue garantir o aprendizado dos alunos. E quando o aprendizado não se conclui, ele perde a crença de que pode fazer diferença – diz o economista Ernesto Martins Faria, coordenador de projetos da Fundação Lemann, ONG que apoia iniciativas inovadoras em educação e realiza pesquisas para embasar políticas públicas no setor.

Quem fica trava uma luta diária entre o sonho de protagonizar uma mudança social e os obstáculos para realizá-lo. O professor, em geral, sente-se impotente, enquanto a sociedade cobra dele a responsabilidade que assumiu ao escolher a carreira. Aliás, uma opção que, hoje, não tem o apelo do passado: menos de 2% dos adolescentes que terminam o Ensino Médio pretendem cursar, na faculdade, Pedagogia ou alguma licenciatura. O dado é do estudo Atratividade da Carreira Docente no Brasil, encomendado pela Fundação Victor Civita à Fundação Carlos Chagas (FCC). Ser professor é bonito, nobre, até gratificante, mas passar todo esse trabalho e ainda ganhar pouco? Não, dizem os adolescentes.

– Os jovens de Ensino Médio reconhecem o professor como uma pessoa de referência, mas acham que seria muito complicado seguir essa profissão. Eles enfatizam a dificuldade de lidar com adolescentes e as más estruturas físicas das escolas: relataram à pesquisa ambientes sujos, depredados e, em alguns casos, até semelhantes a presídios. Também falta perspectiva de progressão profissional – comenta a supervisora da pesquisa, Bernadete Gatti, pedagoga, doutora em Psicologia e vice-presidente da FCC.

Em entrevista recente à ZH, o ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro disse temer um “apagão” de professores. Na medida em que eles vão se aproximando da idade de aposentadoria, corre-se o risco de haver um grande vazio nos próximos anos:

– O Brasil vai ter de gastar mais dinheiro em educação. Uma das metas do PNE (Plano Nacional de Educação) é que o professor da rede básica ganhe a média do que ganha uma pessoa com a mesma escolaridade. Hoje, ele ganha uns 30% a menos do que se tivesse gasto esses quatro anos fazendo outro curso. E o ambiente nas salas de aula não tem sido convidativo. É uma carreira complicada para atrair pessoas.

O interesse nos concursos do magistério estadual caiu 17% desde 2005, quando 80.356 se inscreveram. Em 2011, foram 69.150. Em 2013, 66.296.

No levantamento junto à lista de nomeados, ZH observou que muitos professores, durante anos, desdobraram-se para atender às redes estadual, municipal e privada, ao mesmo tempo.

– Ninguém consegue sobreviver trabalhando só no Estado – justifica a professora de inglês Maira da Silva Gomes, que assumiu em 2007, mas exonerou-se em 2010 para tomar posse no Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), onde a remuneração é 10 vezes maior para a mesma carga horária.

 

 

A sobrecarga de trabalho, diz a coordenadora de Educação da Unesco no Brasil, Rebeca Otero, é um dos fatores que reduzem a qualidade do ensino:

– Ao ter de dar conta de várias coisas simultaneamente, não dá tempo de se aprimorar, ler, estudar, coisas absolutamente necessárias para este profissional. E é difícil que o interesse do aluno não seja afetado quando ele vê o professor passando dificuldades, sem salário, doente, cansado e desmotivado.

Recentemente, a revista americana Child Development comprovou esta influência ao publicar um estudo sobre depressão em professores – “uma das profissões mais estressantes”. Os pesquisadores concluíram que as doenças dos professores trazem implicações negativas também para os alunos, que têm seu aprendizado comprometido.

Para mudar essa realidade, o primeiro passo é valorizar a profissão. Mas o caminho é longo.

– Se a gente for interpretar a situação atual de forma clara e sem rodeios, é o seguinte: o Estado não dá importância para a educação. E nem a sociedade, que se exime de pressionar as autoridades – diz o professor Fernando Becker, mestre em Educação, doutor em Psicologia Escolar e professor da UFRGS.

Presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Roberto Leão almeja o reconhecimento da profissão para além dos anos de eleição:

– Não estou dizendo que o professor tenha de pairar sobre tudo, mas que seja valorizado sempre, não só em época de eleição, quando se fala que professor é uma figura exponencial, ou em 15 de outubro, quando todo mundo lembra da professorinha da infância. É bonito, claro, mas precisamos mais.

 

 

Giz e saliva

– Qual é a tua profissão? – perguntam.

– Sou professora do Estado – responde Paula Brust, 39 anos.

– Ah! Coitada…

Não foram poucas as vezes em que a docente ouviu isso. O desprestígio da profissão é tanto que ela se prepara para abandonar a carreira com a qual um dia tanto sonhou. De manhã, enfrenta a sala de aula e os alunos que se dividem entre tentar compreender o equilíbrio das reações químicas, ouvir música, bater papo pelo celular, jogar cartas e até fazer mágica. Alguns sequer tiram a mochila das costas.

Paula cansou de ser “coitada”.

– Não é uma questão apenas salarial, mas também de autoestima – diz.

Há um ano, decidiu começar a se preparar para concursos públicos. De manhã, para garantir a renda mirrada da jornada de 20 horas conquistada com a nomeação, oito anos atrás, pega dois ônibus: do Menino Deus ao HPS e do HPS à Escola Estadual Prof. Alcides Cunha, no bairro Petrópolis – o trajeto dura quase uma hora e meia. À tarde, volta para casa e estuda, por meio de um cursinho online, para concursos da área do Judiciário.

– Gosto dos alunos, tento fazer dar certo, mas em que condições? Só tenho duas coisas à disposição: giz e saliva. Sequer há folha para xerox. Imprimo as provas em casa. Nos congressos, ouço falar em novas tecnologias para atrair os estudantes, mas essas tecnologias não chegam até nós.

 

Em uma escola de 1,8 mil alunos, só um projetor multimídia funciona. Há apenas duas ou três auxiliares de limpeza, segundo a professora. As maçanetas das portas estão depredadas – no laboratório, por exemplo, a porta só fecha se alguém encostar uma cadeira. O álcool isopropílico, utilizado nas reações, venceu em 27 de abril de 2001; o sulfato de cobre, em 1º de janeiro de 1999. Os alunos parecem não se importar: o único atrativo do lugar é um esqueleto, útil à aula de Biologia, mas utilizado apenas para tirar selfies. O portão principal da escola é fechado a corrente e cadeado durante os turnos letivos, “senão os alunos fogem”, diz uma servidora.

– Eles só vêm para “fazer social”. O conteúdo não tem significado algum – desabafa Paula.

 

A cada contracheque, mais tristeza. Para Paula, ser professor não é missão nem vocação: é uma profissão. Ela fez curso técnico em Química e cursou Química Industrial – poderia trabalhar em alguma fábrica, mas optou pela licenciatura para trabalhar com adolescentes, contribuir para a sua formação.

Ela não tem coragem de cobrar motivação dos estudantes em aula. Até tentou. Em 2012, identificou potencial em um aluno e decretou: “Não aceito nada menos que a UFRGS para ti”. O jovem foi aprovado naquele mesmo ano. Outra boa aluna confessou que estava quase desistindo da escola porque não tinha mais dinheiro para as passagens de ônibus. A professora insistiu para que ela continuasse e comprometeu-se a pagar o transporte da garota. Ela também passou no vestibular. As boas intenções esbarram na desvalorização.

– Como vou continuar incentivando os alunos se nem eu mesma me sinto estimulada? Na verdade, me sinto frustrada por não conseguir sobreviver daquilo que eu gosto – reflete ela, que conta com ajuda do marido, psiquiatra, para viver dignamente.

Na sala de aula, se vê entre a indignação – dos 23 alunos, só 11 comparecem: dois deles jogam no smartphone, outro se debruça sobre a mochila e dorme – e a gratificação.

– Hoje foi a primeira vez que eu entendi química – revela um aluno durante a aula que ZH observou.

Paula pensa que cumpriu sua missão com aquele adolescente, mas murcha quando o conteúdo exige a resolução de uma equação simples. Os alunos, em pleno Ensino Médio, não sabem fazer a conta de dividir.

 

A professora de química cansou de ser “coitada” aos olhos dos outros: “Não é só uma questão salarial, mas de autoestima”

R$ 900 e alma zen

Sentados nas classes e cadeiras onde estão escritos, por eles mesmos, os maiores impropérios, os alunos da professora de química Graciela Cechin, 51 anos, debocham quando ela tropeça no parquê que insiste em se soltar do chão. Bem-humorada, ela também ri e segue sua aula. No quadro negro, com um fragmento minúsculo, escreve “Funções Inorgânicas”.

– Temos pouco giz, é preciso aproveitar até o último milímetro.

Quando precisa apagar, o jeito é usar papel higiênico. O pó se solta e ela espirra – sofre de rinite alérgica. Pensa no quadro branco que há meses não é preenchido porque está no laboratório de Ciências, quase inutilizado pelos professores e alunos da Escola Estadual Odila Gay da Fonseca, em Ipanema, zona sul da Capital. Da última vez que entraram lá (há muito tempo), deixaram um copo cheio de Coca-Cola, sujeira por todo canto e vidrarias amontoadas nos armários de madeira, repletos de teias de aranha.

Seus alunos não desligam o celular e, às vezes, nem tiram os fones de ouvido. Graciela minimiza:

– Fiz o concurso não pelo dinheiro, pois tenho outras fontes de renda, mas para trabalhar com essa galera aqui, ó (diz, apontando para uma janela onde era possível ver os adolescentes se divertindo no recreio).

Graciela também é terapeuta holística. Trabalha com astrologia, reiki, búzios, tarô, massoterapia, medicina chinesa. As consultas rendem de

R$ 2 mil a R$ 3 mil por mês – e ela recebe pensão familiar. O marido é professor universitário, com boa contribuição para a renda familiar. Os

R$ 900 líquidos que tira como professora estadual são um complemento.

 

Só pensando assim – e contando com sua alma zen – para não se sentir tão fatigada ao sair de uma sala de aula. Para atrair a atenção dos alunos, é na base de muita briga, conta ela, que se graduou em Química em 1993, trabalhou na área industrial e em 2004 se decidiu pela licenciatura.

– Acredito que só por meio da educação vamos conseguir fazer com que a vida seja integral. Mas tem que ter muita boa vontade para fazer a diferença, porque a crise não é só do Estado, é de todo o planeta – reflete, atribuindo este momento crítico à passagem de Plutão por Capricórnio.

Na época do concurso, sua mãe estava em coma, respirando por aparelhos. Graciela estudava as apostilas ao lado dela, no quarto de hospital. No dia da prova, após dar uma boa notícia ao marido – havia ido bem –, recebeu outra: a mãe havia melhorado. Era um sinal de “bons fluidos”.

Não sem contratempos. Nomeada para uma escola no bairro Petrópolis, seu primeiro dia como professora estadual foi um desastre. Substituíra uma professora muito querida por alunos e funcionários. Por isso, era vista com antipatia.

– Lugar de gente que começa é na periferia – ouviu de uma servidora.

 

 

Depois de três meses de muita meditação para curar a raiva, pediu transferência para a escola onde leciona até hoje, em Ipanema. Lá, enfrenta outros tipos de problemas: falta de telefone, internet, merenda e materiais, além de inacessibilidade ao laboratório, que fica no segundo andar. No início deste mês, ela relatou que 50% dos alunos já haviam desistido do ano letivo, por infrequência ou mau aproveitamento.

– Eu me submeto porque acredito no que estou fazendo. Os próprios alunos duvidam disso. Mas entrei para cumprir uma missão: tentar elevar o nível de consciência dos jovens – sustenta.

Graciela lamenta não ter conhecido a escola em sua época de glória. Colegas dizem que, há 15 anos, o ensino básico era suficiente para aprovar dezenas de alunos da UFRGS, sem cursinho. Hoje, é difícil fazê-los crer que a atomística e a geometria das moléculas têm alguma importância para o ingresso na universidade.

– Infelizmente, a cultura de aprovar todo mundo veio para ficar. Eu sou contra – comenta.

A professora não cogita fazer outro concurso para ampliar sua carga horária. O salário não compensaria a necessidade de abrir mão de suas outras fontes de renda, as espirituais. Por que resiste no ensino estadual?

– Uma pessoa é feita de vários seres. E um deles, em mim, diz para eu permanecer. Também tem o fato de eu ser leonina e orgulhosa, o que me impede de abandonar. Se, em uma turma, eu tocar a alma de um só estudante, o trabalho vai ter valido a pena.

 

Graciela completa a renda como terapeuta holística: “Dou aulas para cumprir uma missão junto aos jovens”

Ensinar: uma aventura

Cláudia Ema Nascimento de Oliveira, 48 anos, não se lembra de andar com o pai pela rua sem que fossem interrompidos de quadra em quadra. Aquela chuva de cumprimentos, abraços e acenos ao pai, professor de português, a encantava: com tanto carinho e atenção de tanta gente, por que escolheria outro ofício?

Em 2017, Cláudia faz 25 anos de profissão. Oficialmente, começou em 1992, na prefeitura de Porto Alegre, ensinando história. Mas, antes disso, treinou muito: quando criança, seu passatempo preferido era enfileirar tijolos, dar nome a cada um e fingir que eram alunos. Ela era a professora – usava o quadro negro, o giz, as listas de chamadas e os cadernos de caligrafia, materiais comuns dentro de casa, onde os “temas” eram mesmo um dever, uma atividade diária obrigatória.

Hoje, seus alunos, obviamente, não são tão comportados. Na Escola Técnica Estadual Parobé, onde estudou e leciona desde 2001 (o concurso de 2005 foi para ampliar a carga horária), o desafio é se fazer ouvir. Às vezes, implora às “crianças” (para Cláudia, ter 18 anos ainda é ser criança):

– Por favor, por favor. Me deixem falar.

Ela já tentou abolir o uso de celular e de fones de ouvido com uma regra expressa: esses dispersivos devem permanecer dentro das mochilas durante todo o período. O combate à desobediência inclui reprimendas àqueles que se ajeitam sobre a classe e, sem constrangimento, dormem.

– Isso é todos os dias, com todas as turmas. É claro que é desgastante.

Cláudia tem facilidade para contornar a situação porque a infraestrutura da escola permite. Há quadros brancos com canetas (que funcionam) em todas as salas; duas salas especiais com 30 netbooks cada; laboratório de informática com computadores de mesa e ambientes com lousa eletrônica, além de banheiros limpos e reformados. Há serviços de atenção ao professor e de orientação educacional aos alunos. É a escola estadual que recebe mais incentivo financeiro, segundo a própria Secretaria de Educação.

– O investimento no ensino técnico respinga também no regular – justifica a professora, uma entusiasta da profissão, apesar do baixo salário.

Cláudia lembra que seu pai, na década de 1940, conseguia sustentar a família e ter casa e carro próprios com a sua remuneração. Mais de

70 anos depois, com a desvalorização da carreira, ela afirma que, com o salário da jornada semanal de 60 horas, vive bem, mas sem luxos. Não tem internet em casa, por exemplo.

– Meus alunos brincam que eu sou jurássica, que eu não sei direito nem o que é Facebook. Meu negócio é livro didático – brinca.

Ela sabe, porém, que é preciso alcançar a realidade dos alunos. Tenta tirar proveito da característica “nervosa” dos adolescentes, partindo do princípio de que eles não aprendem apenas com o professor, mas também debatendo entre si.

 

 

– Transmitir conhecimento já é um conceito ultrapassado. O certo é construir conhecimento. O professor é importante, mas não é o único agente. Imagina: minha turma tem 32 pessoas. São 32 mundos diferentes, até porque a Parobé mistura todas as classes sociais. Isso é um ponto muito positivo. Cada um tem uma história para contar. E eles são de um tempo diferente do meu, isso me encanta. Cada dia é uma aventura.

No feriado de 12 de outubro, 15 alunos seus participaram do UFRGSMundi, uma simulação de comitês da Organização das Nações Unidas (ONU) . Na quarta, reuniram-se na Parobé para discutir a experiência. Os estudantes revelaram domínio de temas como conflitos civis e royalties do petróleo. A dois deles, o evento deu um certificado de destaque, para o orgulho da professora.

Esse é um dos motivos pelos quais Cláudia não se vê trocando o ensino público pela rede privada. Quer retribuir o investimento da sociedade em sua formação, concluída pela UFRGS. Chegou a tentar carreira de bancária, mas não havia nascido para lidar só com papéis. Decidiu perseguir “a utopia de ser professor”, assim como fez seu pai.

– Não vou conseguir mudar o mundo como pensei inicialmente, mas sei que posso mudar alguma coisa. É isso que me faz continuar – diz, para depois de alguns segundos de silêncio, complementar: – O professor é um insistente.

 

Cláudia não desiste: “Não vou conseguir mudar o mundo, mas sei que posso mudar alguma coisa”

Noite aterrorizante

A primeira impressão foi assustadora. Chamado para uma vaga de professor por contrato emergencial, Rodrigo Buchfink de Souza, à época com 20 anos, chegou a uma escola perto da Avenida Bento Gonçalves, em Porto Alegre, para estrear na rede estadual. Era uma noite de terça-feira. Um colega deu o primeiro aviso:

– Cuidado. Os alunos, às vezes, vêm armados.

De um funcionário, Rodrigo ouviu:

– Eles podem arranhar o teu carro. Para arrumar, vai todo o teu salário.

Depois, veio da diretora, resignada:

– O banheiro é o lugar onde eles se drogam. Não tem lâmpada. Eles sempre quebram, então não adianta ficar gastando com reposição.

Os alunos eram muitos. As turmas a que ele atendeu naquela noite se espremiam em salas de aula que, confortavelmente, abrigariam apenas metade. Ao ver aquele gurizão entrando com livros à mão, um estudante sussurrou ao outro:

– “Isso aí” é o professor?

Rodrigo logo viu que, para fazer aquele grupo – famoso pela incessante balbúrdia – prestar a mínima atenção na aula, não poderia usar números. Muitos, no 1º ano do Ensino Médio, não sabiam a tabuada. O professor, mais jovem do que a maioria dos presentes, improvisou com os próprios estudantes uma aula sobre velocidade e distância percorrida, fazendo-os caminhar pela sala e contando o tempo em um relógio.

– Alguns gostaram, até participaram, mas foi um esforço equivalente a 30 jogos de futebol. Meu método funcionaria uma, duas, três noites, e depois eu iria só me desgastar. E por um salário baixíssimo – recorda Rodrigo.

 

 

Ele havia se formado em Física no ano anterior, 2002, e estudava para ingressar no mestrado. Achou que seria uma boa ideia, neste meio tempo, ganhar cancha em sala

de aula – por isso, assinou o contrato, sem imaginar que duraria poucas horas.

– Foi uma experiência lamentável, do início ao fim daquela noite.

Antes de ir embora, já decidido em não voltar àquela sala, foi indagado por uma aluna:

– Sôr, o senhor também vai viajar e nos deixar aqui?

O professor anterior de física só havia ficado uma semana.

– Aquilo não saiu da minha cabeça – lembra Rodrigo –, mas tive de pensar no que era melhor para mim. No outro dia, já pedi para sair.

O concurso de 2005 era uma oportunidade de ter estabilidade e contar com um plano de saúde. Tinha esperança de que, talvez em outra escola, a situação fosse diferente. Quando foi nomeado, dois anos depois, já havia ganhado uma bolsa de doutorado da qual não valeria a pena abrir mão. Não levou dois segundos para decidir: abdicaria da vaga de professor estadual.

Hoje, Rodrigo leciona em pré-vestibulares e na rede privada, onde tem uma remuneração melhor e convive com colegas que também compõem o quadro estadual. Solidariza-se:

– Quando os professores contam o que passam, eu só sei que não é mentira porque já estive lá. Foi uma noite só, mas o suficiente para entender que a rede pública está degradada.

 

“Quando professores contam o que passam, só sei que não é mentira porque já estive lá”, conta Rodrigo sobre a rede pública.

Um sonho aposentado

Enquanto ainda trabalhava como bombeiro, Gerson Vigil havia traçado um plano de vida: aos 46 anos, se aposentaria e passaria a se dedicar totalmente à profissão de professor. Era um desejo de anos, adiado pelas circunstâncias. Mas a felicidade de ser aprovado no concurso do magistério, em 2005, durou só até o momento da nomeação. Uma emenda constitucional em vigor desde 1998, que ele desconhecia, emperrou o sonho: como ele já era aposentado pelo Estado, não poderia assumir outra função pública no governo.

Foi um golpe. Gerson, que havia cuidadosamente separado toda a documentação para tomar posse, se viu obrigado a jogar tudo dentro de uma gaveta:

– Eu não estava preocupado com a questão salarial. Aposentado, teria tranquilidade para preparar minhas aulas. Da experiência como estagiário, sabia que meu jeito de ensinar atrairia os jovens.

Ele havia estudado em “colégio de padre”, com aulas ao estilo tradicional, e tinha certeza de que não era isso que queria para seus alunos. Gerson, durante o estágio docente da faculdade de Geografia da UFRGS, pedia para os estudantes esquecerem o conteúdo dos livros, pois traria temas do cotidiano, com os quais a juventude estava familiarizada. A estratégia deu certo: no último dia de aula, a gurizada organizou uma festinha surpresa, com direito a bolo e refrigerante.

– Foi o dia mais emocionante da minha vida. Um gesto simples, mas significou que eu havia provocado algo de bom naquela turma. Infelizmente, por uma burocracia, fui impedido de seguir meu sonho. Depois desse episódio, fui abandonando a ideia. Profissionalmente, nunca dei aula – conta ele, que atribui a isso o agravamento de um quadro de depressão.

Hoje aos 56 anos, Gerson passa os dias em casa. Acha que está mais cansado assim, no ócio, do que se sentiria caso estivesse ocupado com a sala de aula. Doou seus livros para os quatro filhos. Torce para que algum deles, um dia, exerça a profissão que ele não pôde exercer.

 

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Carlos Eduardo Vieira da Cunha

perguntas para o Secretário de Educação do RS

 

O que explica a falta, nas escolas, de materiais básicos para o trabalho do professor, como giz e apagador?

 

Estamos com dois meses de atraso no repasse da verba de autonomia das escolas, dinheiro que a Secretaria destina mensalmente para a manutenção das instituições, com base no número de alunos. Todos sabem da dificuldade pela qual o Estado está passando, e as escolas não ficaram imunes a este quadro. Em algumas escolas não há nem papel higiênico, isso é uma realidade que eu espero que melhore a partir do aumento do ICMS, que vai garantir incremento na receita para o ano que vem. Reconhecemos o atraso e temos feito esforço para tentar não repetir a situação do mês passado, em que chegamos ao ponto de parcelar o salário. Isso gera problemas na administração da escola, nós temos consciência disso.

 

 

A que o senhor atribuiria o fato de 70% dos nomeados em 2005 terem se exonerado da vaga ou sequer assumido?

 

Não precisamos voltar a 2005. Vivemos este problema em 2015. No início do mandato, nos deparamos com a falta de muitos professores. Apesar de todas as dificuldades do RS, obtivemos do governador José Ivo Sartori, de forma excepcional, a autorização para nomear 540 novos professores classificados no concurso público de 2013, que ainda está em vigor. Tivemos muita dificuldade para preencher esse número. Chamamos 744 aprovados, ou seja, 204 se recusaram a assumir – isso é forte. Ou seja, isso que vocês detectaram nesta reportagem se repetiu agora. O Estado oferece remuneração menor em relação a concursos municipais e federais, e esta “concorrência” faz com que nossos profissionais migrem para outras esferas.

 

 

O número decrescente de inscritos nos últimos três concursos para o magistério estadual não revela que algo está errado?

 

O número de inscritos no último concurso pode ter diminuído, mas ainda assim é um número considerável, pois ficaram quase sete candidatos por vaga. Ou seja, foi um certame competitivo. Isso não quer dizer que não reconheçamos que a carreira não tem sido tão atrativa quanto foi no passado. Precisamos fazer com que a infraestrutura das escolas seja compatível com a qualidade que desejamos para a nossa educação. Quando um jovem escolhe a profissão que vai abraçar, ele leva em conta uma série de coisas, e o magistério tem, ao longo dos anos, perdido espaço para outras opções de carreira. Mas penso que estamos vivendo um momento privilegiado na história da educação, porque pela primeira vez temos planos alinhados em três níveis de governo – União, Estado e Municípios – que estabelecem metas claras para alcançarmos em 10 anos, inclusive a valorização do magistério. Agora, não dependeremos mais do humor, da boa vontade ou da linha ideológica dos governos. Temos uma política de Estado definida em leis.

 

 

Por que o RS não paga o piso nacional?

 

Todos nós queremos que o magistério seja bem remunerado, faz parte do processo de valorização. Mas nós temos que ter fontes de financiamento. A lei do piso é federal. Acontece que a União não tem repassado aos Estados os recursos necessários para a aplicação da lei. Sabemos que o bolo tributário está concentrado na União, então se ela não assumir essas responsabilidades vamos continuar impossibilitados de remunerar dignamente o magistério. Com esse grau de comprometimento da receita do RS com a dívida, a gente não tem conseguido sequer pagar em dia o salário. Como vamos aplicar a lei do piso sem o auxílio da União? Com o novo ministro (Aloizio Mercadante, empossado no início do mês), vamos reafirmar essa reivindicação.

 

Embora tenha tirado o primeiro lugar na área de Língua Portuguesa, o governo levou dois anos para me nomear, pois fez centenas de contratações e não chamava nunca os concursados. Assumi e fiquei na rede estadual até 2012, quando aumentei minha carga horária no município e exonerei-me do Estado. Há descaso para com a educação brasileira e o desestímulo ao professor. Considero-me muito bem preparada para exercer a docência na educação básica. Tenho doutorado em Letras e vivo lendo e fazendo cursos para atualização permanente. A remuneração, no entanto, é ridícula. Todas as profissões de nível superior, e até mesmo algumas de nível médio técnico, têm remunerações superiores à do professor da educação básica. Há uma ideia errônea de que o professor de educação básica é um professor de menor qualidade, que deva receber muito menos que o professor do ensino superior. Ora, quem alicerça as bases do conhecimento das novas gerações deveria ser muito bem remunerado. Há muitos professores desistindo de atuar nos Ensinos Fundamental e Médio, diante desses péssimos salários e das precárias condições de trabalho. O prejuízo é do Brasil, com seu déficit de leitura, seus analfabetos funcionais, sua carência de massa crítica, sua cidadania alienada, seus jovens sem perspectivas, sua ausência de valores éticos.

Miriam Lia Cavalheiro Gusmão

Professora da Escola Municipal de Ensino Médio Emílio Meyer

Quando fiz o concurso, estava recém-formado e achava uma boa ideia ter estabilidade. Passei para professor de educação física. Quando fui nomeado, estava trabalhando em academias e optei por não assumir, devido ao baixo salário. Em 2009, fiz concurso para a Polícia Civil e me encontrei: descobri uma vocação. Não sinto falta do magistério porque hoje estou realizado. Como também sou um servidor estadual e sei da nossa situação, fico triste pelos professores. É um sofrimento histórico e lamentável.

Gianpaolo Dalla Valle

Inspetor de polícia

 

 

Eu sou professor porque eu gosto. A motivação que perdura até hoje são os alunos. Porque, da parte dos governos, não teve nenhum até hoje que valorizasse a profissão. Alguns pais também reclamavam: achavam que era do professor o problema de seus filhos não terem bom aproveitamento.

Marcos Kan Moori

Professor da Uergs

Mural de reflexões

Tive uma formação pública de qualidade e sempre me preparei para o exercício do magistério, já sabendo, naquela época, que havia desrespeito. Tenho muito orgulho da minha profissão. Hoje trabalho com jovens e adultos e me sinto recompensada. Tem casos emocionantes, como o de um aluno de mais de 60 anos que passou no vestibular e está cursando Direito. Outro que não perdeu o emprego porque conseguiu concluir os estudos. Claro que eu me sentiria mais feliz se minhas contas estivessem pagas. Mês passado, quando olhei o contracheque, pensei em desistir.

Louriane Ribeiro de Oliveira

Professora do Núcleo Estadual de Educação de Jovens e Adultos Vicente Scherer

PROFISSÃOPERSISTÊNCIA