Insegurança e

imóveis desvalorizados

De maneira visível, a partir da esquina das ruas Correia Lima com a Mutualidade, na altura da torre de uma operadora de celular, bandidos e “zumbis’’ agem com intensidade maior. Um aposentado que vive de favor em uma antiga casa de madeira teve o local invadido duas vezes no mesmo dia.

– Eles pegam qualquer coisa valendo cinco pila. Levaram até a ração do meu cachorro – resmungou o homem. Morador das proximidades, outro aposentado reclama que a insegurança está prejudicando relações familiares e de amizade.

– Não recebo visita, ninguém quer vir aqui de carro nem de ônibus – lastima.

Ele mora em um prédio onde quatro imobiliárias estampam placas de venda de um apartamento, cena comum em ruas do morro.

– Essa cracolândia desvaloriza os imóveis. As pessoas olham e desistem. Uma vizinha não resistiu e se desfez do apartamento por quase a metade do preço. Vou ficar aqui – diz outro morador que não quer ser identificado.

Os tiroteios e os “desfiles” de dependentes do crack tiram o sono de famílias que escolheram a região para morar em décadas passadas, quando principal característica era a tranquilidade de um ambiente interiorano, rodeado de árvores e pássaros.

– De três anos para cá, a situação piorou muito. Trabalho, preciso descansar, mas não consigo – lamenta um professor universitário de 79 anos, que vive na Correia Lima há 31 anos.

Do alto do morro, habitantes caminham com vista privilegiada da Capital

Fabiano Almeida, gerente da unidade da Guarida Imóveis no bairro Menino Deus, explica que existem boas casas à venda no Santa Tereza, mas faltam interessados por causa da criminalidade.

– Isso acontece em todo lugar com essa característica. Uma casa está à venda há mais de quatro anos no morro. O dono já baixou o preço e não aparece comprador – descreve.

– As placas se perpetuam porque a oferta é maior do que a procura – acrescenta Gilberto Cabeda, vice-presidente de comercialização de imóveis do Sindicato de Habitação (Secovi-RS).

A insegurança prejudica também a prestação de serviços para toda a comunidade.

– Qual o lugar que tem uma vista assim da cidade? Quem vem na minha casa se apaixona. Mas sofremos quando precisamos de táxi, de remédio. Tem motorista que não sobe o morro nem motoboy. Aqui é o paraíso e o inferno ao mesmo tempo – desabafa uma moradora.

Regularização parada

A tensão é maior nas proximidades da Rua Dona Maria, um dos caminhos até o ponto turístico do morro, o Belvedere Ruy Ramos, na porta da Vila Gaúcha, destino de boa parte dos drogados que peregrinam pelo Santa Tereza. Na entrada da via se percebe o ambiente belicoso. A placa indicando o nome está cravejada de tiros.

Sentados nas calçadas, jovens olheiros do tráfico observam o trânsito e gritam palavras em códigos para alertar os vendedores de drogas. Sereno significa automóvel de morador ou de cliente. Chuva é sinônimo de veículo estranho, de desafeto ou da polícia.

– À noite, carros fazem fila para comprar droga. Quando a Brigada está aqui, somem todos. É uma tranquilidade – assegura um comerciante das imediações.

Para ocultar a venda de cocaína, maconha e crack, traficantes estouram a tiros lâmpadas de iluminação da rua e a câmera de vigilância da Secretaria da Segurança Pública, que já flagrou gente armada com fuzis e submetralhadoras.

Alegalização de áreas invadidas no Morro Santa Tereza, como a Vila Gaúcha, se arrasta há pelo menos uma década sem perspectiva de solução imediata. Em 2005, o Estado, dono de 73 hectares onde estão instalados prédios da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase) e cujo terreno é ocupado irregularmente por cerca de 600 famílias, ensaiou um estudo de viabilidade de urbanização do local. A iniciativa não teve

resultado prático. Três anos depois, o governo Yeda Crusius (2007-2010) propôs a permuta da área da Fase com a iniciativa privada, que, à época, havia avaliado o local em R$ 160 milhões.

Em troca, a instituição ganharia nove unidades da Fase onde fosse necessário. O projeto implicaria a remoção de famílias instaladas no terreno. Falava-se na construção de um hotel de uma rede de turismo espanhola. A ideia ganhou a antipatia dos moradores das vilas, de oposicionistas e ativistas ambientais. O governo desistiu do projeto.

Em 2009, o Ministério Público Estadual entrou com uma ação civil pública contra o governo do Estado e a Fase para a regularização fundiária da Vila Gaúcha e da Vila União Santa Tereza. No mesmo sentindo, dois anos depois, o então governador Tarso Genro editou decreto reconhecendo o direito das famílias e a responsabilidade de legalizar as moradias em quatro vilas.

Em outubro de 2012, o Piratini anunciou a assinatura da ordem de serviços de obras de regularização das comunidades. O trabalho começava com um levantamento topográfico da área, cadastro das famílias e laudos geológico e ambiental. Neste intervalo, o Estado foi condenado pela 4ª Vara da Fazenda Pública a concretizar a legalização dos lotes. A sentença foi confirmada em parte pelo Tribunal de Justiça do Estado, mas o processo ainda é discutido no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília.

O mapeamento das vilas estaria concluído desde 2013, mas a atual gestão da Secretaria de Obras, Saneamento e Habitação (SOP), ao abordar o tema em maio deste ano, informou que a regularização fora interrompida por divergência com a empresa responsável pelo cadastramento das famílias e demais laudos.

O promotor de Justiça Cláudio Ari Mello, da Promotoria da Ordem Urbanística, prevê que o STJ defina o caso até o ano que vem. Para o advogado Jacques Alfonsin, defensor de

associações de moradores das vilas do Morro Santa Tereza, a situação das famílias é de “notória insensibilidade social por parte das autoridades públicas e do Judiciário”.

– Há posses ali estabelecidas há décadas, consolidadas como podem ser consolidadas as posses de gente pobre, como a maioria da população do país residente nessas condições vive, sem a segurança de um documento sequer que lhes garanta o reconhecimento do direito adquirido à concessão do uso do bem onde se abrigam – critica Alfonsin.

Cenas rotineiras como moradores trancados em casa, usuários consumindo drogas livremente e apartamentos à venda