"Tem crianças muito pequenas pedindo socorro, e os pais não estão vendo"

Gisele Varani

51 anos, Gerontóloga

Em família, Gisele Varani sempre se enxergou entre iguais: todos estavam acima do peso. Na escola, a característica se tornou um incômodo desde cedo. Vivendo em uma cidade pequena, onde o comércio não oferecia muitas opções de vestuário, a menina teve de se adaptar – as peças infantis não lhe serviam, o que a forçava a usar artigos de adulto ou a recorrer aos serviços sob medida de uma costureira.

– Isso discriminava de alguma maneira, eu já ficava diferente – lembra a gerontóloga de 51 anos.

As ofensas surgiam em momentos como a aula de Educação Física. Boa no vôlei, Gisele participava de campeonatos, mas a competência no jogo não a blindava contra os ataques que partiam do entorno da quadra:

– Vai lá, rolha de poço! Filhote de baleia!

Gisele recorda se sentir confusa, incapaz de compreender por que quilos a mais incitavam um rechaço tão intenso. Observava os colegas e identificava, em cada um, suas peculiaridades: havia os magros, os altos, os que usavam óculos.

– Eu não fazia nada diferente deles. Não entendia muito bem o porquê da diferença, não entendia por que isso incomodava.

Em uma época de normas rígidas no colégio administrado por freiras e de relações mais formais e distantes entre pais e filhos, a agonia de Gisele passou desapercebida. Ela fingia não ouvir os desaforos, chorava sobre o travesseiro antes de dormir. Os insultos abasteciam um ciclo perverso: a menina era hostilizada porque era gorda e, por não revidar nem receber amparo, na escola ou em casa, buscava um escape, lançando-se a mais excessos com a comida ou brigando com o irmão. A partir dos 10 anos, a estudante arriscou a saúde com dietas extremamente restritivas. Na adolescência, sentia-se feia e desconfortável: as amigas pesavam 50 quilos, e ela, 70.

– Quando adulto, você percebe suas outras qualidades, mas enquanto você é adolescente é difícil de perceber. Os próprios jovens não têm maturidade para entender.

Gisele se sentiu acolhida em reuniões de um grupo da Igreja Católica. Dedicou-se com afinco aos estudos, optou pela carreira na área da saúde e, a partir dos 21 anos, buscou auxílio na terapia. Aos poucos, conseguiu vencer os entraves que dificultavam as relações afetivas.

– Eu tinha necessidade de dizer sim sempre, senão o outro não ia gostar de mim. Isso vinha daquela criança que, se não fosse queridinha, os outros não iam gostar dela.

Com 40 quilos a menos, Gisele passou a viver melhor. A partir do drama pessoal, acredita ter se tornado mais disponível para lidar com o sofrimento do outro – a filha também enfrentou bullying na escola. A gerontóloga destaca que a família é a base, referência para as crianças, e que os preconceitos dos adultos acabam sendo absorvidos por elas. Para Gisele, falta um olhar mais cuidadoso por parte dos pais.

– Que o meu exemplo sirva para que outros não precisem passar pelo que passei. Quem é diferente sabe do que estou falando, é muito sério. Quem está sofrendo isso imagina que não vai ter fim. Os pais não têm noção da extensão do sofrimento dos filhos. Tem crianças muito pequenas pedindo socorro, e os pais não estão vendo.