Luto

eternizado

"Não tem como esquecer", diz Ligiane no quarto intocado da filha que morreu no incêndio da Kiss

 

Uma legião de familiares transformou o quarto, a sala ou outro cômodo da casa em relicário dos filhos mortos na Kiss. Zero Hora falou com parentes de vítimas do incêndio

"Não consigo virar a página"

 

Na noite de 27 de janeiro, Sílvio Beuren Junior, 31 anos, tirou a camisa que usaria para ir à Kiss e a pendurou numa poltrona do quarto. Tomou banho, vestiu roupa de festa e foi para a boate encontrar amigos. Morreu lá, trancado por outras pessoas no banheiro superlotado. Desde então, a camisa e a cadeira permanecem do mesmo jeito. Na mesma posição, intocadas. Intacto também está o quarto dele, transformado em santuário pela mãe do rapaz, Marta Mourão Beuren.

As paredes estão repletas de fotos de Sílvio no sítio, marcando gado, em viagem ao Uruguai, desfilando a cavalo — ele até fez uma ponta como ator em filme de época. Os chapéus de vaqueiro e uma boina gaúcha estão espalhados pelo quarto, como no dia da morte. O local sofreu pequenas alterações. Sobre a cama, Marta colocou um chapéu bávaro e um traje típico alemão com o qual Sílvio se apresentava no grupo de dança Edelweiss. Ali também repousa a gaita-ponto com a qual o filho tocava a canção castelhana "Merceditas", sob aplausos dos amigos.

Sílvio era o caçula e o filho que ainda morava com os pais. Brincalhão, alegre e namorador, era a alegria da casa — agora mais silenciosa, lamenta Marta. Quando se desespera de saudades, ela pensa em Nossa Senhora e no sofrimento em que ela vivenciou com o calvário de Jesus Cristo.

Apesar de católica, ela recebeu, de frequentadores de um centro espírita, supostos recados mandados pelo filho. Ele teria avisado que está bem e recomendado que a mãe, aos poucos, doe suas roupas.

— Não consigo virar a página. Beijo as fotos, faço pedidos a ele, oro por ele. Me disseram para dar tudo que está no quarto, recomeçar a vida, mas é difícil. Me parece uma traição ao meu filho.

"Filho não morre para mãe"

 

Quem entra no apartamento de Jaqueline Malezan depara com um grande pôster do filho Augusto na parede. Sorrindo, o rapaz oferece um brinde. Transmite alegria ao lado de uma foto da irmã, Luísa.

Augusto, 18 anos, morreu na Kiss, intoxicado ao voltar para dentro da boate para retirar pessoas. Teria ajudado a salvar cinco, antes de ele próprio cair desfalecido em meio à nuvem tóxica deflagrada pela queima da espuma com cianeto que derretia do teto.

No apartamento na área central de Santa Maria, em pequenos armários envidraçados da sala, estão eternizados os objetos mais queridos pelo rapaz: cuia e bomba com nome dele entalhado, laço de couro, chapéus de vaqueiro. Outros pertences, agora eternos, estão espalhados pelo quarto, como facas, guaiacas e espora.

Na fazenda do avô, na rodovia entre Santa Maria e São Sepé, Augusto podia escolher entre 200 cavalos para cavalgar, descreve Jaqueline. Criou-se no lombo deles e vivia em remates de gado. Participou de rodeio e até conseguiu um troféu pelo desempenho. Gostava de aventura, define a mãe coruja. Após cursar o Ensino Médio, sonhava em ir para o quartel.

Tudo o que Augusto mais amava em casa permanece da mesma maneira desde sua morte. Quando a tristeza bate, Jaqueline diz que olha para a grande foto do filho na parede e se ampara nela. Outro consolo é uma neta, recém-nascida, filha da irmã de Augusto. A pequena, sempre ativa, ajuda a preencher a falta do rapaz. Mas o filho e suas coisas têm lugar sagrado.

— Filho não morre para a mãe. Parece que ele vai voltar, aparecer a qualquer hora. Quando toca a campainha, penso que é ele. Para que vou mexer?

 

"É uma saudade sem fim"

 

Evangélica, a dona de casa Maria Aparecida Neves, a Cida, ampara-se na Bíblia para diminuir a revolta. Livro esse que permanece em cima de uma mesinha à cabeceira da cama do filho, Augusto Cezar, morto aos 19 anos na danceteria.

Um violão e uma guitarra com a qual ele tocava rock e gospel também estão lá desde a morte do rapaz, filho único - foram retirados do armário na noite da tragédia da Kiss e deixados ali, "porque ele se envolvia com música, se dedicava". As roupas seguem espalhadas pelo quarto, como na última noite. O quarto só é aberto para limpeza e algum outro retoque. Praticamente nada é tocado, muito menos retirado.

O rapaz cursava Ciência da Computação, mas gostava mesmo era de tocar rock e gospel. Cida diz que, quando a saudade bate forte, ela abre o guarda-roupas de Augusto e pega as camisetas das quais ele mais gostava: uma que ele veste numa foto tamanho pôster colada no armário e outra do Grêmio, time para o qual torcia com fervor.

A mãe tomou incontáveis tranquilizantes desde o dia do incêndio e faz acompanhamento psíquico para enfrentar a perda. Ela não consegue mais se focar em trabalho externo e agora se mantém como dona de casa. Sonhava em ser avó, não tem outro filho e a revolta parece ser uma constante na sua vida. A religiosidade a ajuda a se acalmar.

O marido, Cezar, que trabalha fora como pintor, está um pouco mais conformado e pensa que chegou a hora de doar as roupas do filho. Cida resiste:

— Não consigo me desfazer delas, parece que estaria me desfazendo do Augusto. Cheiro a camisa, beijo. Sei que o próprio Augusto gostaria que eu doasse, mas é difícil. É uma saudade sem fim, algo que não cessa.

 

"Minha filha não voltou"

 

O quarto de Andrielle Righi da Silva, que morreu na Kiss com outras quatro amigas na noite em que comemorava o aniversário de 22 anos, também está cristalizado no tempo. Os bichos de pelúcia com os quais ela costumava dormir abraçada estão sobre a cama, na mesma posição em que ela os deixou. Fotos na parede, com jeito de moleca, também integram o cenário do quarto em que dormia a jovem. Entre as lembranças preservadas desde a tragédia está um tênis da garota, resgatado de dentro da boate e buscado na delegacia que reuniu os pertences das vítimas.

As pequenas alterações no cenário da casa são um violão de Andrielle (que a mãe, Ligiane, colocou sobre a cama) e um banner, feito após a morte, com foto da filha.

A jovem faria vestibular para Design Industrial, para orgulho dos pais, Ligiane e Flávio da Silva, empreiteiro na construção civil. Flávio diz que a vida desmoronou após a morte de Andrielle. Ele se preparava para montar com a mulher uma pequena empresa para vender salgadinhos. Pensou em dar entrada em uma caminhoneta. Após a tragédia, jogou-se de corpo e alma no movimento Do Luto à Luta. Viajou por conta própria inúmeras vezes a Porto Alegre, até a Brasília foi. Os planos ficaram para trás porque em três anos gastou R$ 32 mil.

— Perdemos saúde e dinheiro. E o pior é que só sairá decisão nesses casos quando nossos filhos estiverem encaminhados — lamenta Flávio, referindo-se à morosidade da Justiça.

A filha caçula, Gabrielle, ficou triste pela perda da irmã e com muito esforço consegue pagar a faculdade de Jornalismo. A mãe das duas, Ligiane, já substituiu o desânimo pelo vigor, mas desenvolveu pressão alta. E ingere tranquilizantes de forma constante.

— Não tem como esquecer. No primeiro ano, parecia que ela ia voltar a qualquer hora. Chegava a ouvir o barulho da chave na porta. Mas era imaginação. Minha querida filha não voltou.

 

Por que não se deixa o luto de um dia para o outro

O psicanalista Volnei Antonio Dassoler trabalha diretamente com familiares e sobreviventes da tragédia

Volnei Antonio Dassoler, psicanalista e coordenador do Acolhe Saúde, de Santa Maria (que lida com vítimas da Kiss e seus familiares), não estranha o apego das mães aos objetos dos filhos perdidos na tragédia. É que a morte de um descendente é uma perda para a qual os pais não encontram substituto equivalente, diz o especialista.

— Não se deixa o luto de um dia para o outro. Quando deparam com um livro, uma roupa, com a cama arrumada, com a comida preferida, com a fotografia, com lembranças e objetos da pessoa que morreu, por um momento parecem negar a realidade da própria morte. Por essa razão, esses objetos tendem a permanecer por um tempo disponível à família. A pessoa que se foi é encontrada nesses objetos — resume.

Dassoler avisa que a realidade se impõe, inexoravelmente, e, aos poucos e sem perceber, cada um começa a intervir mais ativamente nesse ambiente visando recuperar a autonomia que a morte retirou. Assim, começam a transformar a perda e a ausência em memória. As lembranças são analisadas pelo valor afetivo, pela condição de ligar-se àquele que se foi.

Alguns objetos, porém, revestem-se de caráter sagrado e não podem ser abandonados ou modificados.  Parece que por meio deles se poderia reencontrar o filho ou a filha que perdeu. Eles não podem ser escondidos, doados, guardados, estragados. São preservados por mais tempo ou mesmo indefinidamente.

O psicanalista adverte que esses são rituais individuais, muitas vezes incompreendidos e que causam estranheza e desconfiança entre aqueles que convivem sobre a sanidade mental da pessoa. É por isso que alguns mantêm os quartos intocados e guardam roupas, sapatos, lembrancinhas de bebê e cartinhas de amor escritas na infância.

— Podemos estranhar, mas, avaliamos o luto e seu processo não apenas por um único critério. Mães, mais do que pais, fazem isso, guardam. Mas, ao mesmo tempo, elas vão se desfazendo de outras coisas, se desligando. Elas não acumulam tudo, mas precisam de algumas referências para não se ver à deriva no mundo. O quarto intocado é o acesso mais direto e mais íntimo para a relação que se vivia.

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